Deixando de ser leitor Médio e virando Difícil

Já são tão poucos os que gostam de ler a ponto de estarem sempre com algum livro começado, que a nossa vontade é de dar um abraço e cobrir de louros todos aqueles que leem. Mas venho aqui admitir que eu acho que é possível “escalar” como leitor e fico aborrecida quando percebo que muitos não o fazem. Uma pequena historinha para ilustrar esse ponto:

Na minha casa sempre havia palavras cruzadas. Minha mãe fazia as Difícil e comprava as Médio para as crianças. Eu devia ter uns 13 anos quando ela não comprou a Médio. Eu primeiro achei que ela não havia comprado pra mim, depois ela disse que era pra eu fazer a Difícil mesmo. Mas, eu, fazendo a Difícil? A resposta dela foi algo como “por que não” e “até quando você vai ser Médio”. Eu era escolarizada, lia e escrevia bem, achei que fazia sentido. Claro que meu desempenho fazendo Difícil não era tão bom quanto Médio, mas fiquei muito feliz de ter sido “promovida”. Nunca mais quis a Médio.

Eu fico meio impaciente quando vejo que as pessoas se propõem a ler eternamente os livros fáceis. Tem aqueles nomes famosos – Shakespeare, Borges e Knausgard são de comer? – que ficam numa prateleira distante, dos livros “importantes” que só os super cultos discutem… por que não ir lá pegar? Nem que seja só pra se exibir, pra sentir um sono danado porque a linguagem é difícil, pra poder entrar numa discussão podendo bater no peito e dizer que realmente leu. É como quem gosta de vinho docinho provar um dos caros, é como quem ouve música pop ver qual é a graça do tal do rock progressivo, reservar um dia pra a fazer uma receita bem complicada e não só arroz puro. A gente amplia os horizontes quando se arrisca, descobre coisas que nunca imaginaria sozinho, sutiliza os próprios sentidos. Em Shakespeare está um monte de frases que a gente ouve por aí e parece que nasceram junto com o mundo, Borges leva a imaginação e questões existenciais para caminhos inimagináveis, o Knausgaard é capaz de te fazer sentir que está andando na rua com ele. Se você gosta de ler os livros simples, posso garantir que existem prazeres ainda maiores no mundo, drogas ainda mais potentes.

Você não pode arriscar agora, não sabe de nada agora, não é culto o suficiente agora, vai ter condições de ler um livrão depois de quando?

A Dúnia original

Quem tem idade o suficiente pra isso, sabe que a moda de colocar o nome nos filhos de Enzo, um nome que nem existia porque o original era Lorenzo, tem início bem definido. O primeiro Enzo é o filho da Claudia Raia com o Edson Celulari. Do mesmo modo que Sasha começou a ser um nome feminino com a filha da Xuxa. Eu conhecia um Sasha na minha infância, era de uma família alemã vivendo em Salvador, e sempre penso nele. Imagina o transtorno que se tornou se chamar Sasha, um nome que sempre foi masculino até 1998 – e continua sendo, só que fora do Brasil.

Quando a Dúnia já estava bem velhinha, eu tive a sorte de que abriu uma pet na mesma quadra da minha casa. A porta mal abriu no primeiro dia, a moça trabalhando sozinha, ainda sem placa na frente, e eu já estava lá pra marcar banho. O banho era o grande luxo da Dúnia, porque ela tinha um pêlo muito grosso, impossível de lavar e secar em casa. Os banhos dela levavam 3 horas na mão dos profissionais, então imagina como seria se eu tentasse em casa.

Por isso, de certa forma, eu fui uma das clientes que apoiou a pet, que cresceu muito rápido. Até que um dia, uns dois anos depois de abertos e já bem concorridos, eu liguei para marcar um banho e me achei bem íntima, disse que era para a Dúnia. A funcionária quis saber “que Dúnia”, qual era o meu nome. Ora, que Dúnia, a Dúnia!

“É porque tenho quatro Dúnias registradas na agenda”.

Eu não resisti e comentei que, se hoje existiam tantas Dúnias na cidade, sem dúvida era por causa do meu blog, que estava a dez anos informando as pessoas que eu tinha uma cadela vira-lata muito amada e que se chamava Dúnia. Concordaram comigo com aquela expressão clara de quem está dizendo para si mesmo: alá, a louca.

Há umas semanas eu ouvi no podcast a história da procura pelo Ernesto, e apenas quando eles colocaram o contexto histórico eu entendi porque os blogs e seus comentários um dia foram muito importantes e hoje não são mais. Como tudo na vida e tudo na internet, foi uma janela de tempo, que deu uma importância tremenda a algumas coisas, que depois perderam totalmente a relevância. Se eu me propusesse a fazer uma coletânea mais de dez anos da minha rotina de pessoa anônima, ninguém gostaria de publicar porque ninguém se interessaria em ler. Mas, foi isso o que eu e outros blogueiros fizemos. Aí diziam: os textos são muito bons, tem que ter uma coletânea. Conheço blogs que fizeram tomos de vários posts, porque a gente realmente se entusiasmava com eles. Pasmem, eu cheguei a fazer uma coletânea, selecionei aqueles que eu achava os melhores textos: Prazo Expirado.

Não tenho mais ilusões a respeito da permanência dos textos. Eu acho que é como ter uma coleção de fotos, que nos parecem tão caras, e depois que você morre alguém joga aquela caixa inteira fora, sem culpa. Quer dizer, era assim, hoje é ainda pior, basta deletar. Talvez meu legado seja ter aumentado a população de Dúnias no mundo. Dúnia, aliás, que é o apelido do nome Avdótia. Dúnia era a irmão do Raskólnikov, o protagonista de Crime e Castigo. Pronto, agora dá pra explicar de maneira mais erudita a origem do nome, porque o nome da Dúnia original não foi inventado do nada por mim.