Curtas de um ano ou nem sei

O facebook me lembrou que há um ano eu estava na passeata #elenão. Vizinhos, pessoas do ponto de ônibus, nas conversas, homens paqueráveis, ninguém parecia compartilhar do meu voto. Eu lembro de ter pensado que eu estaria sozinha na rua XV. Iria porque a vontade de dizer não era grande demais, eu que nunca havia ido pra protesto nenhum. Aí, no ônibus, haviam umas adolescentes que pareciam ir, assim como haviam uns rapazes que olhavam para elas de uma maneira que dava medo. Aí encontrei as amigas, fomos pra lá, e como tinha gente. Eu me senti tão feliz, tive esperança. Não impedimos a besteira, mas foi um momento importante pra história do país e que orgulho de ter feito parte.

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Minha ex-sogra esperava o filho (meu ex) se afastar pra me dizer umas coisas de cortar o coração. Nunca entendi porque ela me tornou sua confidente naquele momento. Ela se casou com meu ex-sogro na adolescência, foi daqueles casamentos exemplares, os dois se davam muito bem. Fazia alguns meses que ele havia morrido. Ela me disse: “faz tão pouco tempo que ele morreu e parece que está tão longe, como se fizesse anos. É assustador”.

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Sobre a pergunta de como eu gostaria que fosse o fim do mundo (tô falando do programa do Porchat), eu só consigo pensar que eu acho que já foi. Acho que acabou em 2012 e estamos presos na nossa mente. Devemos ser uma recriação holográfica de ETs que querem entender o que havia aqui antes da chegada deles, milhões de anos depois da destruição da chegada do meteoro. Acho que li Philip K. Dick em demasia.

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Então, tem as moças da padaria. Uma delas estava com uma cara péssima um dia. Mas no dia seguinte, voltava a ser feliz. Aí ficou com uma cara péssima, e no dia seguinte também, e também, de maneira que agora eu olho pra ela e digo o básico. Tudo porque um dia quis brincar quando ela não estava bem e senti que fui invasiva, além de não estar bem ela tinha que rir de piada de cliente que quer ser íntima. Enfim. Tem outra também, sempre muito séria. Ela teve um ano péssimo, o pai morreu em acidente, está tendo problemas pra vender seu cavalo. Eu chego lá e tem as duas moças, sérias. Me pego com vontade de falar algo que o meu pai me dizia nessa fase da vida, e eu detestava tanto: sorria, não vale a pena ficar assim. A vida é curta.

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Miguel Araújo diria: Dança até ser dia/ que a vida são dois dias.

Pequena sabedoria de vida

Uma das sabedorias de vida que adquiri foi a questão dos horários de exames de sangue. Fui fazer meus exames de rotina e tinha de sangue, logo, eu tinha que ficar em jejum. Antes, pra pegar o laboratório vazio, eu ia bem cedo, beeeem cedo, antes das oito da manhã. Resultado: tinha que me contentar com o café solúvel e bolacha seca que oferecem no laboratório, só pra gente não desmaiar na escada. Agora vou pouco antes das nove, pra sair e encontrar tudo abrindo e tomo um café da manhã gostoso em alguma lanchonete. Foi o que fiz. Estava tomando meu café gostoso num quiosque da rua XV. Estava frio, o sol começando a despontar, então peguei meu café e me sentei no sol. Ali, descobri que talvez deva acrescentar mais uma sabedoria de vida, agora referente a comer no centro: mesinha na rua não dá.

A moça surgiu contra o sol e me deu bom dia. Eu respondi, ela disse como era bom ouvir alguém dar bom dia em Curitiba. Depois mudou de lado e ela que ficou contra o sol. Era uma moça jovem, que falava muito bem, cabelos bem do jeito que eu acho bonito, encaracolados meio soltos. Ela tinha uma carinha de anjo e belíssimos olhos azuis, bem abertos. Ela se acocorou ao meu lado e perguntou de onde eu era, me disse que era curitibana mas que viajava há tanto tempo que nem se considerava mais de lugar nenhum. Ela e o namorado estavam vindo de São Paulo, eram mochileiros e daqui iriam para o Uruguai. Para conseguir dinheiro, ela mostrava a arte dela, que eu não me sentisse obrigada a pagar nada, ela só queria me mostrar.

Por um milésimo de segundo, eu pensei/desejei que a arte dela fosse alguma performance, que ela declamasse ou dançasse na minha frente. Ao invés disso ela abriu o que parecia ser uma lata, com a tampa toda preta por dentro. Contrariando a beleza do resto, as unhas dela estavam todas pretas e suas roupas não cheiravam amaciante. Uma família amou muito essa menina, eu pensei, e se entristeceria com aquelas mãos. Ela me perguntou se eu preferia água doce ou salgada para relaxar, eu respondi que salgada, então ela começou a falar sem parar enquanto enfiava a unha na tampa preta. Era uma tinta. Ela desenhou rapidamente com os dedos um sol, céu, ondas, areia, uma palmeira numa lasca de azulejo. Com o cachecol tirou a tinta das bordas, fazendo uma moldura. Eu olhava para aquele azulejo quebrado, o coitado do cachecol, a tinta preta, me perguntava quantos anos ela tinha, que tal namorado era aquele que havia ensinado a “arte”. Ela me deu o azulejo pintado, eu disse que estava bonito, ela acrescentou que eu poderia contribuir com o que eu quisesse pelo presente. Por que, por que aquela moça estava andando na XV de unhas sujas pra abordar estranhos com tinta numa lata. Uma moça que veio de algum lugar distante da rua. Quem sabe a família odiasse o namorado, jogava a culpa nele. Um lado meu duvidou se seria possível retomar meu café da manhã depois que ela fosse embora (foi). Um lado meu quis que ela fosse pra uma casa, pusesse as roupas na máquina, esfregasse uma escovinha nas unhas, jogasse aquela lata fora.

Mostrei a ela a carteira quase vazia e lhe dei cinco reais. Eu morro de medo de me tornar uma pessoa amarga que condena o que não faria. Morro de medo porque vejo isso todo dia. Ela e seu cachorro (“não sou eu que o tenho, ele que me tem”) foram embora. Não tinha nem como levar o azulejo molhado pra casa e torci pra que ela não voltasse lá pra descobrir o presente no mesmo lugar que ela deixou. Morro de medo porque sei que sou candidata: é fácil ser feliz e aberto quando você é jovem e parece que vai conseguir tudo o que quer; eu faço parte da quase totalidade da população que envelheceu e descobriu que não era grande, que não era a exceção, e que as alegrias que me restam são aquelas que se compram com cartão de crédito. Eu dei dinheiro para apoiá-la, quero apoiar o novo, quero apoiar a Greta. Eu sou a burguesa tomando café, é o que eu posso fazer.

pra onde

Três de tecnologia

Estou por aí igual uma pregadora recomendando a pequena série de três documentários Netflix sobre o Bill Gates. Uma das diferenças culturais que noto entre nós e os norte-americanos é que nós brasileiros temos uma antipatia – inveja ou esquerdismo? – à figura de empresários bem sucedidos. Então, nada mais natural que eles façam um documentário, assim como nada mais natural que ninguém queira seguir a minha recomendação. Eu mesma não teria clicado se não tivesse visto a entrevista que a mulher do Bill Gates, Melinda Gates, deu ao Letterman no Meu Próximo Convidado (também Netflix). Vi e pensei – que mulher! Terminei bem fã dele. Não é só que eles doam dinheiro para a caridade, é um colocar seus recursos, acesso e inteligência para tentar ajudar o mundo. A gente não apenas fica fã do casal como sai até convencido de que energia nuclear é possível.

As outras duas recomendações são meio juntas. No 21 Lições para o século XXI, Harari faz algumas “previsões” baseadas no que há de mais atual em pesquisas. Lá ele fala de fim de profissões, não apenas aquelas que já estamos acostumados a pensar porque são repetitivas, mas também algumas que consideramos nobres, como médicos e advogados. Também saí falando do livro do Harari, mas sem a menor credibilidade pra falar de fim de advogados por aí, sabe como é a repetição da repetição. Neste vídeo o Maurício Ricardo me ajuda, ele fala da mesma sensação quando tenta alertas as pessoas e lê um texto sobre alguém velha guarda descobrindo o futuro que se desenha. Eu reconheci muito umas pessoas que eu conheço naquele texto. Acho que você também vai reconhecer (ou se reconhecer). Se gostar do vídeo, aproveita e engata também no Bill Gates e quem sabe até o Harari?

 

Simprona

Eu esqueço que as pessoas me acham pobre. Claro, não estou dizendo pobre de verdade, pobre base da piramide. Porque se me vissem assim, seria como se o meu CO2 contaminasse o ar, como se o meu toque sujasse e minha voz fosse insuportável, de modo que eu seria uma presença tão destacada e perniciosa no ambiente que as pessoas começariam a se queixar. Quando eu digo pobre, quero dizer sem importância, uma pessoa cujo saco não precisa ser puxado, alguém de quem nunca se vai precisar de qualquer favor. Ninguém se importa em me agradar e falar mal de mim pelas costas, podem se mostrar como são na minha cara mesmo. Só quem é visto como pobre sabe como poucos resistem ao apelo do dinheiro e mudam de atitude diante de quem o tem, às vezes quase sem sentir. É uma posição que arrebentaria o coração dos que sempre foram ricos e – por isso – populares. Eu acho um privilégio ter uma visão mais realista das pessoas. E um privilégio ainda maior saber que os que estão ao meu lado o fazem realmente pela minha companhia.

Existe a teoria que quem diz que gosta de pegar ônibus, feijão com arroz e pobrices em geral, o faz porque sabe que não tem perspectiva de um dia ser rico, então entra num estado de negação. Eu não sei, se for um mecanismo psicológico o meu está bem implantado. Eu não me sinto pobre. Bourdieu me abriu os olhos quando disse que não existe A Elite e sim elites. A elite intelectual e a elite financeira nem sempre coincide. A elite financeira acha que arrasa pagando ingresso caro pra ver peça de ator global no Guaíra, com as suas peles cheias de naftalina; a elite intelectual conhece o círculo artístico, os atores talentosos e as peças adorada pelos que realmente entendem de teatro. A elite financeira não me faz inveja, eu não quero ser um deles.

Com mais dinheiro, eu me imagino fazendo as mesmas coisas, mas de maneira mais relaxada. Carregar compras no muque é um saco, mas fazer longos trajetos a pé é vida. Andar de tênis é uma necessidade, tenha ele amortecimento ou não. Eu poderia me apaixonar por uma roupa e comprar na hora ao invés de esperar mudar o mês – mas, pra ser sincera, nem me acontece porque não ligo muito para roupas. Eu não gostaria de me vestir de uma maneira tão ostensiva que as pessoas comuns deixassem de falar comigo de igual pra igual. Sim, pra continuar amiga das atendentes da padaria, da minha e de futuras padarias, eu não me imagino jamais vestida de modo perua. O único carro que eu acho bacana é o Smart, mas aí me explicaram que ele custa caro. Eu jurava que ele ele custava o mesmo preço de um carro popular, por ser pequeno. Nem sei dizer quanto custa um carro, seja ele popular ou não, Mas, ok, muito rica quem sabe eu tentasse dirigir um Smart. Se eu fosse capaz de dirigir, nunca mais peguei num carro depois de passar no teste, uso a CNH temporária há anos e só como documento. Andar de ônibus cheio é um saco, voltar para casa de ônibus à noite pode ser perigoso, mas eu considero andar de ônibus (e transportes coletivos em geral) algo tão importante para o caráter que duvido que deixaria de andar mesmo se virasse estrela de Hollywood. Taí Keanu Reeves para provar que existe a possibilidade de ser assim. 

Quando eu descrevi esta tirinha pra uma amiga e disse que era eu, ela me olhou com pena. Não sei se vocês vão ficar com pena também, mas a próxima tirinha sou eu.

poor

Bebedouro

copo d´água

A Dúnia percebeu antes de mim – ou melhor, se ela não tivesse percebido eu não me daria conta – que eu bebo um copo d ´água antes de sair. É como fazer o último xixi, pra evitar de sentir vontade quando estiver na rua. E como uma das vezes que eu bebia água coincidia com o nosso passeio, ela associou o barulho da água a sair de casa. O barulho da água caindo no copo imediatamente ativa um rabo balançando, que vejo pela janela. Tentei estabelecer uma nova regra, de beber água e começar a falar com ela, tudo para não dar alarme falso. Não adiantou muito; eu bebo água e ela fica de orelha em pé, olhando na minha direção, à espera do segundo ato. Passei a desenvolver várias estratégias pra tomar água sem criar expectativas: coloco água no copo e saio, encho o copo enquanto estou lavando louça, encho o copo agachada para que ela não me veja. E, claro, penso duas vezes antes de beber água.

Donos de bicho vão ficando todos meio loucos.

Ramayana

Foi quando eu tentei ver o filme do Mahabharata, numa madrugada qualquer na tevê aberta, que eu descobri o porque de nunca ter virado a noite estudando. O filme começou pouco depois da meia noite e foi até às três da manhã – provavelmente cheio de cortes, porque é longuíssimo. Eu dormia durante os intervalos e me forçava a acordar quando voltava, porque a vontade de conhecer a história era muita. Na manhã seguinte, a única – ÚNICA – lembrança que eu tinha do filme eram as duas famílias diante de um tabuleiro.

Até hoje não consegui ver o filme, então vou recomendar outro. O Ramayana não é tão importante quanto o Mahabharata, mas também está cheio de histórias deliciosas que só a mitologia hindu tem – deuses que crescem de tamanho, promessas que têm que ser cumpridas à risca, noções de fidelidade extremadas, rituais como forma de tecnologia, etc. Eu li o livro na adolescência e um monte de detalhes haviam me escapado. Finalmente entendi porque Hanuman é representado segurando uma montanha. De outras coisas eu lembrava bem como, por exemplo, que o fim não é exatamente o mesmo do desenho. Sabe o Senhor dos Anéis que tem o tal do Expurgo do Condado mas o filme termina antes? Por aí.

É desenho, vai! Eu me emociono, sei lá. Acho tão rico.

Acabarão as fitinhas

senhor-do-bonfim

Eu faço controle de contas, tenho caderno de citações, cadernos de anotações diversas. E todos eles são marcados com uma fitinha do Senhor do Bonfim. Um dos cadernos acabou, e fui com urgência na livraria comprar outro bem bonito, porque seria mais um dos que vai me acompanhar durante anos, passeando entre os cômodos, recebendo anotações no sofá. Escolhi com todo carinho e quando cheguei em casa e fui correndo colocar a fitinha. Aí me deu aquele agridoce: eu tenho vários pacotinhos de fitinhas porque meu pai me enviou. Um dia – não sei nem dizer há quantos anos – eu mandei uma mensagem pro meu pai dizendo que estava sem fitinhas e se ele poderia me mandar algumas. Pouco tempo depois chegou uma caixa de correio com uma quantidade tão exagerada de pacotes, cada um deles com umas dez de cores diferentes. Tenho usado há anos sem me preocupar em contar, sabe quando você tem tanto de alguma coisa que é como se nunca fosse faltar? Foi um gesto de carinho de quem estava longe, de quem gostaria de oferecer muito mais e já não tinha como. “Acabaram as fitinhas”, eu pensei, como se já fosse passado. Não acabaram fisicamente, mas acabou. Já disse, assim que ele morreu, acabou Salvador, acabou tudo. Não que eu não tenha como comprar, não que eu não tenha quem me envie, mas acabou. Quem já se despediu de uma fase da vida sabe como é ver, pouco a pouco, as coisas se renovarem – peças de roupa que perdem cheiros, eletrodomésticos que ficam superados, lugares e hábitos totalmente inéditos. A cada mudança, vai embora uma testemunha da nossa história que nunca mais voltar.

Lembrar e projetar

memória e imaginação

Se a pessoa tem removida ou prejudicada a parte do cérebro relativa à produção de memórias recentes, ela também está condenada a não conseguir fazer planos para o futuro. Não apenas porque os planos são a projeção de memórias, mas também porque as nossas memórias são plásticas. Pesquisaram memórias de várias pessoas relativas ao que elas estavam fazendo no 11 de setembro e, à medida que o tempo passa, as memórias não apenas perdem detalhes como podem até se confundir com outros dados, relatos de outras pessoas, memórias do que aconteceu na época. As partes do cérebro ativadas com lembrar e imaginar o futuro são praticamente as mesmas, como mostra o print aí em cima.

De multiversos ao fato de na astrologia védica ler mapa do ponto de vista da Lua (que representa a mente), tudo me parece apontar pra necessidade de fazer as pazes com o passado. Terapia, meditação, florais, ho’oponopono, perdão – no fim desses estudos científicos sempre descobrimos que não é coincidência que esses sistemas antigos nos deixam tão mais felizes. Ocidentais e pretensamente científicos que somos, tendemos a achar que os fatos são os fatos, regidos por leis da física, cuja flecha do tempo vai apenas numa direção. Mas nós não somos rochas, somos mentes, somos versões de fatos mediados pela linguagem, e dentro de nós passado, presente e futuro são uma coisa só. Se você cada vez que você reconta a lembrança ela fica diferente, no fim ela pode ficar totalmente irreconhecível. Sem dúvida existem limites, mas a possibilidade de recontar também é a possibilidade de tornar nosso passado um lugar melhor. Lembranças diferentes também mudam as peças que usamos para projetar o futuro. Curar o hoje muda passado e futuro ao mesmo tempo.

Pam bam bam bambam

Era uma parte coberta que ficava nos fundos de uma casa, grudada no muro lateral. Em frente a ela, um pequeno jardim, com um banco. Já havíamos comido todos os doces e salgados trazidos pelas meninas e bebido os refrigerantes trazidos pelos meninos. Começamos a parte de dançar. Foi minha primeira festa de dançar. Não tínhamos muitas opções de discos e só queríamos músicas lentas. Por ser a primeira ou a última faixa de um disco de coletânea de sucessos internacionais, colocamos Take My Breath Away. Cada vez que a música terminava, iam lá – acho que apenas o dono da casa, mexer em vitrola era uma operação sensível – e colocavam a música de novo. Na pista sem qualquer luz especial, meus colegas de sala se transformaram em pares. As bonitas. As legais. A gordinha engraçada. Numa distância que me parecia de quilômetros, meninos do lado oposto, no banco do jardim descoberto. Eles se olhavam, cochichavam, até tomar coragem e convidar alguém. A que estava de pé, a da esquerda, a da direita. Até que a música continuava e o banco deles estava vazio. Eu olhei para o lado e havia uma menina da minha idade, com a mesma expressão que a minha. Ela foi embora logo em seguida. Sorte dela – eu passei o resto da noite (que deve ter durado, no máximo, até meia noite) ouvindo Take My Breath Away, enquanto o sofá crescia cada vez mais.

A benção-chantagem

nossa-senhora

Chegou aqui um envelope dourado brilhante, igual saquinho de presente. Dentro veio uma Nossa Senhora em papel duro e brilhante, breguinha. Embaixo, uma faixa onde se lê o meu nome estampado no coração e que ela vai me abençoar e à minha família. Em outra carta, uma chantagem dizendo que já que eu ganhei uma linda Nossa Senhora, eu vou mandar uma contribuição. Assim, nesse tom imperativo. Dizia que era de um padre sei lá das quantas, de uma paróquia que nunca vi e não sabia que padres arranjavam dados sigilosos da gente. Rasguei a carta na hora, invasivo e com cara de picaretagem. Mas a Nossa Senhora tá ali parada, sei lá que fim dar praquilo – tremendo mau agouro jogar fora um papel com meu nome e benção, não sei o que fazer.

Os humores dos deuses

mó fita

Da série de coisas que se tornam óbvias depois que alguém nos fala: um dos astrólogos crush que eu sigo disse que, quando tudo vai bem, acreditamos que os deuses estão felizes conosco; quando tudo vai mal, achamos que os deuses estão nos punindo. Não é assim. O fazer certo e errado nem sempre coincidem com o que estamos passando. Pra citar um exemplo muito simples, pense numa pessoa apaixonada. Acontece muito: o indivíduo se apaixona de um jeito que descuida de tudo. A paixão pode levar uma pessoa a abandonar seu grupo de amigos, acabar com suas economias, se descuidar do trabalho, enfim, estragar todos os outros setores da vida porque tem olhos apenas para uma pessoa. Dá para esperar de camarote e ver que todas as coisas que foram deixadas de lado vão cobrar um preço depois que a paixão acabar – nem estou dizendo que o casal precisa se separar, paixões são estados exigente que não duram anos. Mas para ele, naquele momento, a vida é a mais feliz possível. A medida dos deuses não é a nossa, os deuses são imperscrutáveis.

Eu havia me decidido há uma semana…

… numa conversa de whats que não tinha nada a ver com aquilo. Pensei, esperei, tentei sozinha, pedi ajuda, precisei de outro fim de semana e finalmente, numa segunda, estava tudo preparado. Eu repassei na memória – era aquilo mesmo, tinha certeza, daria certo? Eu fui duvidando até o último minuto. Abri a aba do computador com o celular do meu lado e fiz. Em seguida, me afastei da mesa. Coração acelerado, mão tremendo. E agora, e agora. Eu me sentia caindo num vazio. Tomo um floral? Andei um pouco meio sem saber o que fazer, se olhava pra janela ou o quê. No fim de sentei no chão, meio iniciando uma oração sem sentido – deveria agradecer a Deus ou pedir ajuda, porque pode ser que tivesse acabado de fazer uma grande cagada? Deitei por cima das minhas pernas, o rosto para baixo, sentindo minha mão direita tremer no chão. Eu precisava me acalmar e aquela posição, chamada Postura do Servo, faz muito bem para a lombar e eu deveria fazer sempre. Respirei, pensei, entendi: eu havia acabado de fazer uma grande transferência bancária. Nenhuma fortuna diante do que existe no mundo, mas MINHA fortuna. E esse negócio de pegar numerozinho daqui, abrir aplicativo dali, de um internet banking pra outro mais virtual ainda me deixou em pânico. A falta de uma pessoa, um recibo, não sei, alguma fisicalidade em meio a uma soma de dinheiro tão difícil de juntar, me deu um desamparo muito grande. As tais decisões adultas – meu dinheiro, faço o que quiser, etc. “Você está é velha”, disse quando saí daquele estado. Finalmente entendi o problema dos velhos com caixas eletrônicos.

codigo de barras

Uma vitória pessoal que me deixa muito feliz

saída natação

Alguém aqui lembra que eu disse que aprendi a saltar na piscina depois de velha? Tem a primeira parte aqui e a segunda parte aqui. De lá pra cá, eu persisti. Duas coisas que aconteceram meio juntas: o FB estava com um lance de mostrar desafios. Tinha uns que queriam aprender a dançar, outros que queriam ser alongados e encostar o dedo dos pés. Eles se filmavam e mostrava em alguns minutos a evolução de meses e todos ficavam melhores com a persistência. E eu li também o Outliers, e nele percebi o quanto estamos numa cultura que não valoriza o esforço; como brasileiros e até como ocidentais, tendemos a acreditar muito mais no talento, o que nos leva a nem tentar muito caso não tenhamos facilidade desde o começo. Me impus a um programa de sair da minha aula e dar um pulinho ou dois de cima do bloco. Só isso, quase que como para constar, como quem assina um livro ponto.

Uma coisa que eu notei, e que demorou muito, foi o sentimento de vergonha. Uma vergonha, uma humilhação, como quem se dá um castigo. Nos campeonatos, caída na água e disparava, sentindo meu rosto vermelho debaixo d´água e com isso queria que pensassem: ela deu uma barrigada, mas em compensação é boa pra caramba! Em dias ruins, quando estou triste e sem confiança, ainda hoje não vai. Meses e meses de sentir que estava me castigando. Subia no bloco achando uma porcaria, pra dar um salto porcaria. Enquanto essa sensação irracional persistiu, eu avancei muito pouco. Ou sentia que não avançava nada. Percebi a importância de onde eu olhava, mudei minha posição no bloco, sentia que não conseguia colocar força nas pernas. Só percebia, não que eu conseguisse fazer. Mas do que trabalhar a técnica, eu estava enfrentando uma barreira psicológica bem dura. Eram como os anos que o cara do Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zeno conseguia nem segurar o arco direito.

Um dia, numa outra piscina que não a que eu nado sempre, percebi que saltei melhor. Era uma questão visual – como aquela piscina estava cheia até a borda e a minha tem uma distância, naquela eu me sentia menos alta. Aquilo me deu um clique. De repente eu percebi que estava dando certo, que eu podia fazer. A sensação de humilhação passou. Ao invés de um salto e olhe lá, algumas vezes tentei muito mais – eu estava sentindo prazer. Prazer de voltar pra água, prazer de pular, prazer de tentar de novo. Meu desempenho melhorou instantaneamente.

No último meeting que participei, já nem estava mais preocupada com saída nenhuma. Desde que mudei de categoria, passei a quase nem ganhar nada, tem muita gente melhor do que eu, melhor num nível que eu não ganharia delas nem de pés de pato. Mas gosto de participar ainda mais do que antes. De todas as provas que iria disputar, a única que eu tinha chance de pegar um terceiro lugar – porque tinha menos fortonas concorrendo – era a dos 100 metros livre, e mesmo assim seria um terceiro disputado. Fui pra prova com sangue nos zóio e consegui meu terceiro. Dias depois, quando fui para aula, meu professor perguntou se alguém comentou sobre a minha prova de 100 metros. Comentou?

-Olha, você fez a melhor saída da sua vida! Foi muito bom, você caiu muito longe, foi incrível. Eu e o Eduardo estávamos acompanhando e, assim que você caiu na água, nos dois soltamos um grito. Lá é campeonato, o bloco era melhor, tem um monte de fatores, mas mesmo assim! Pra gente que te acompanha desde o começo…

Os deuses e os joões

Quero presenteá-los com um vídeo incrível e dar um pequeno pitaco sociológico.

Eu sei que é uma mulher, você também. Eu sei que ela vai pra aula, que veste jeans, que come e vai ao banheiro. Sei que escolheu esta música por um motivo bem banal, porque gostou e porque estava acessível, e que cada pedaço da coreografia foi construído aos poucos. Escolhas foram feitas durante o processo; movimentos que poderiam ficar ainda melhores não foram colocados porque ela não conseguia fazer, porque não encaixavam na música, ou apenas nem pensou neles. Apesar dela ser uma pessoa com história, nome, maquiagem, roupa encomendada, no momento que vemos o vídeo é como se ela encarnasse uma deusa. Vi inúmeras vezes e em todas eu me arrepio.

O pitaco: ganharemos mais quando as análises deixarem de se focar apenas no João da Silva. Seja o João da Silva um juiz poderoso que cometeu atos ilícitos, seja o João da Silva um segurança que cometeu um ato violento. O João da Silva é ele mesmo mas é também um grupo, uma forma de encarar, uma causa e uma consequência. O João da Silva reflete a forma que outros João da Silva agiria no mesmo lugar. Eliminar um João da Silva sem levar em conta o contexto significa apenas trocar um João da Silva por outro.

O vaidarmerdômetro

decepção

Um conflito inevitável de gerações é que os mais novos não sabem que instrumento preciso e afinado se torna o detector de “vai dar merda” – ou vaidarmerdômetro – com os anos. Na juventude, temos que quase parar no hospital para nos convencermos de algo, enquanto que a maturidade nos faz detectar um problema quando ele é apenas um pontinho preto na linha do horizonte. Para os mais jovens soa cruel que um simples adesivo no carro ou o modo errado de dar risada possa fazer alguém ser cortado de antemão de qualquer círculo íntimo; mal sabem eles que, no passado, muitos outros adesivos e risadas erradas existiram, ganharam chance, erraram, foram perdoados, repetiram. Não sabem que a primeira impressão costuma ser a primeira intuição, e que ela é muito mais sábia do que qualquer QI pode alcançar.

Um vaidarmerdômetro que não falha nunca – e vou falar aqui porque poucos deles podem ser expressos em palavras – é o do restaurante que atende mal. Se você entra no restaurante, o garçom não te vê, não anotou o pedido achando que lembraria e não lembrou, os pratos das outras mesas chegam e nada do teu… dê as costas e vá embora. Sem medo. Só piora. E o humor da gente também, por culpa da fome. Aconteceu comigo uma vez tudo o que eu citei no começo do parágrafo, mais o fato da comida que chegou para ele (o meu pedido foi ignorado) era um conjunto de frituras envelhecidas. Eu já estava pedindo para ir embora faz tempo. Quando o meu pedido chegou, uma hora depois, havia um cabelo no peixe. Devolvemos para a cozinha e fomos acusados de ter plantado o cabelo para criar caso. Nem aconteceu em Curitiba, foi uma viagem que fizemos até o litoral para comer algo típico. Quase duas horas pra chegar, mais de duas horas no restaurante, saímos com fome, eu de péssimo humor por causa do comida e de não ter sido ouvida, comemos sanduíche e voltamos para Curitiba.