Motoristas de ônibus

Quando eu visitei o Rio de Janeiro, fui e voltei de ônibus interestadual. Lá, ninguém buscou ou levou pra rodoviária, então fui e voltei de ônibus pela cidade. Quando coloquei os pés na rodoviária lá no Rio, vi um ônibus estacionado numa rua meio isolada, fui perguntar como chegava no meu destino e acabei pegando aquele mesmo. Quando precisei voltar, também de ônibus, perdi o ponto da rodoviária porque não reconheci sua fachada – nem poderia, porque não havia passado por ela. Todas as pessoas desceram, o ônibus ficou vazio e assim que a porta fechou eu perguntei pro motorista se a rodoviária era ali. Ele me perguntou se eu era de fora e se ia pegar o ônibus interestadual. Respondi que sim e, sem me dizer mais nada, o motorista levou o ônibus por algumas ruas escuras. Achei que ia morrer ali, que o sujeito ia me levar pra um terreno baldio e que levariam quase vinte e quatro horas pra notar meu sumiço. Isso durou pouco – o motorista estacionou exatamente na plataforma que eu precisava. Fiquei até com vergonha das coisas que eu pensei.

Quando eu saio de Curitiba, estranho os motoristas de outros lugares. Aqui, os ônibus param no ponto, nem antes e nem depois. Ai de quem insistir. Uma vez cheguei em São Paulo tão cheia de malas que assim que apertei pra descer, o motorista parou o ônibus e abriu a porta pra mim. Desci e agradeci, mas a verdade é que eu teria ficado mais perto se ele tivesse parado no ponto. Um motorista curitibano jamais faria uma coisa dessas, nem se eu estivesse morrendo. Quando começaram a circular novos ônibus de turismo com o segundo andar aberto, ele não tinha qualquer tipo de cobertura. Um dia um ônibus desses estava lotado de turistas e começou a chover muito forte. Dentro do ônibus quase não tem espaço, então os passageiros pediram pro motorista parar antes pra que eles pudessem se abrigar. Não teve jeito – motorista curitibano só aceita parar no ponto e a história foi parar no jornal. Foi depois desse episódio que colocaram um toldo atrás da parte de cima desses ônibus.

Minha mãe uma vez viu uma notícia dizendo que os motoristas de ônibus de Curitiba poderiam parar fora do ponto depois das 22h. Não sei se o jornal comunicava um direito antigo ou uma lei que estavam tentando implementar. Na época ela fazia falculdade à noite, e chegava em casa por volta das 23h. O prédio dela fica exatamente no meio entre dois pontos de ônibus, sendo que o que pára antes é na frente de um matagal, então o mais seguro é parar no ponto seguinte e voltar. Ela pegava sempre o mesmo ônibus e decidiu pedir pro motorista pra ele parar na frente do prédio. Resultado: o sujeito não apenas não parava, como cada vez que passava na frente do prédio ia bem devagarzinho…

Como se fosse futebol

O alojamento era uma porcaria, o curso foi frustrante e a amizade acabou. Aparentemente, da minha única longa estadia em Joinville pra fazer curso só ficaram lembranças ruins. Mas mesmo com todo aborrecimento e cansaço, havia um momento que desde então eu sabia que duraria para sempre, e que mudaria de maneira definitiva a minha maneira de encarar o comportamento que uma platéia deve ter: as apresentações no Teatro Bolshoi.

O teatro é tão grande que chega a não ter lugares bons. Quem está de frente fica muito longe do palco, que é alto, e não vê os pés dos bailarinos. Os lugares seguem por incontáveis filas, que faz o teatro ter o formato de um corredor. Nas laterais, três andares de arquibancadas. Era para elas que íamos, para o lado e bem pertinho do palco. No lugar mais alto da arquibancada mais alta, era possível se encostar na parede e assistir o espetáculo sentado no chão com as pernas esticadas sobre o cimento. Entre uma coreografia e outra, com as luzes apagadas, todos começavam a brincar com as luzes dos celulares. Nas coreografias, dançarinos; na platéia, dançarinos. Tanta gente jovem e tanta empatia fazia com que cada grupo bem ensaiado, cada passo difícil e bem executado, cada coreografia interessante ou solista inspirado, gerasse uma reações imediatas. As pessoas vibravam, aplaudiam os momentos mais difíceis; nos momentos de concentração, dava pra sentir a tensão do silêncio. A platéia entendia e valorizava o que estava acontecendo. Não era nem de longe um silêncio educado, era puro envolvimento. A partir daí percebi o quanto nos reprimimos como público de arte. Ver dança pode ser tão emocionante como assistir uma partida de futebol – mas só em Joinville, só durante o festival.

Auto-ajuda e timidez

Eu li muito livro de auto-ajuda na vida e acho que eles têm sua utilidade. O que eu gosto nesses livros é a idéia que está por detrás deles: a gente não É e sim que Está. Ao invés da postura Gabriela diante de vida – eu nasci assim, sempre fui assim, vou morrer assim, Gabrie-eela! – parte-se do pressuposto que se uma coisa que te incomoda, você pode tentar mudanças de hábitos e comportamentos até se tornar uma pessoa diferente. Pra algumas coisas pode ajudar, eu usei. O pressuposto da Programação Neurolinguística de que o inconsciente aceita qualquer coisa que a gente repita muito, mesmo que seja meio brincando, é algo que eu percebi que funciona. Passar o dia inteiro repetindo “eu tô gorda” só porque não gosta de algumas gordurinhas na barriga faz um mal tremendo…

Há algo muito forte em mim, que provavelmente tentei mudar, mas que terapia ou programação nenhuma consegue mover: minha timidez. Na adolescência, aquela fase que a gente se odeia, eu (provavelmente) lamentei pensar que nunca seria popular, nunca seria o centro das atenções nas rodinhas, nunca chegaria longe em funções que exigem que a pessoa fale com a maior naturalidade diante de qualquer platéia. Hoje não apenas não desejo essas coisas como sei que gosto muito de ser quem eu sou, e que ser extrovertido é uma faca de dois gumes. Chegar num grupo estranho cheio de segurança pode ser ótimo, assim como pode estragar tudo. A linha entre ser extrovertido e sem noção é muito tênue. Cansei de ver gente que chega num grupo novo e senta no melhor lugar, se mete a dar opiniões sobre o que está ouvindo pela primeira vez e já sai falando em nome da turma. Depois, quando nada dá certo, reclamam que as pessoas que sempre foram hostis com ela. Eu, como qualquer pessoa tímida, tenho necessidade de sentir o ambiente. Nunca me torno logo aquela que todo mundo gosta; em compensação, por observar antes de falar, não falo besteira, por ficar no meu canto não invado o espaço dos outros sem querer. Sempre dá certo. A extroversão é hiper-valorizada, isso sim.

Porque hoje é sábado – Andrew McCarthy

Eu ainda sinto meu coração acelerar quando vejo uma foto do Andrew McCarthy. Mas tem que ser ele assim, novinho.

Não que ele não tenha envelhecido bem, muito pelo contrário. Pra fazer este post procurei fotos dele pelo Google, e me surpreendi de ver tantas fotos recentes. Pra mim, era um daqueles astros teens que ninguém sabe por onde anda.

Olha como continua lindo! Mas não consigo sentir pelo Andrew de hoje o furor que sinto pelo Andrew adolescente. E não é porque sou papa-anjo.


Olhar as fotos antigas de Andrew McCarthy faz com que eu volte a me sentir uma adolescente. E, quando adolescente, bastava que ele estivesse num filme para ser um filme excelente.

O papel mais marcante pra mim foi o amigo bonzinho da Garota de Rosa Shocking. Ela insistia em gostar do amigo rico e pedante, que desperdício!

Andrew McCarthy nesse e em  vários outros filmes, nunca era o mais bonito, o mais popular. Ele era o melhor amigo, o cara tímido e doce, em quem a mocinha podia confiar e só se descobria apaixonada depois.

Ao contrário de muita gente, nunca me interessei pelos caras populares. Nunca tive um perfil cheerleader e minha insegurança me dizia que o cara mais bonito da turma só tentaria ficar comigo pra exibir minha calcinha depois. Talvez pra me proteger – e o Andrew sem dúvida tem sua responsabilidade nisso- eu sempre me interessei por homens tímidos.

Tal como nos filmes, eu jurava que era a única no mundo que suspirava por Andrew McCarthy. Ele era meio loser, meio bobinho. Não era o tipo que ficava sem camisa nos filmes. Minhas amigas gostavam do Tom Cruise, Rob Lowe, Downey Júnior, e outros que faziam papéis de bad guys.

Esses bad guys apareciam como reportagem na Revista Querida, eram Gato do Mês da Capricho. Andrew McCarthy não entrou pra história, não é lembrando como um dos mais bonitos dos anos 80. Dá pra perceber pelas fotos, é tudo da cintura pra cima, era tudo muito platônico.

Se saisse alguma reportagem sobre ele na época, eu teria lido com afinco. Por outro lado, tudo isso só aumentava a minha impressão de que só eu sabia o quanto seu sorriso era encantador, só eu suspirava por ele nos filmes. Eu tinha uma certa sensação de exclusividade. Como só eu o amava, quem sabe ele não tivesse uma legião de fãs para estragá-lo

e ele se mantivesse para sempre do jeito que eu o via: tímido e sensível, o meu namorado ideal.

Quase assalto

Quando a gente é assaltado ou quase assaltado, começa a conversar sobre isso com as pessoas e ouve as suas histórias de assaltos ou como evitá-los. Recebi sugestões úteis, de colocar na porta um mecanismo que dificulta o arrombamento e um tipo de sensor de alarme que dispara já no portão. Recebi também sugestões engraçadas, como um que, ciente de que sou escultura, que sugeriu fazer várias cabeças de aspecto apodrecido e espetar no portão. Com o castelo de Vlad III (ou Conde Drácula), em Brasov, deu certo.

Soubemos da história de um médico esquisito, que tinha na sua casa um baú muito bonito e misterioso. Ele nunca abria e nunca contou pra ninguém o que tinha lá dentro. Um dia ele chegou em casa e ela estava arrombada – portão aberto, porta aberta, baú aberto… e mais nada. Aparentemente, o ladrão foi direto pro baú, achando que encontraria coisas valiosas lá dentro e se assustou tanto com o que tinha que foi embora, nem quis roubar nada. O médico não revelou o conteúdo do baú.

Idéia para evitar assaltos: deixar um baú bem bonito na sala com uma Real Doll dentro.

Justiça

Quem tem twitter sabe que cada dia surge uma polêmica diferente e um clamor de justiça diferente. Pode tanto ser por causa de um cachorro quanto uma lei, não importa. Em pouco tempo a coisa se espalha como pólvora e está todo mundo gritando, reclamando, se posicionando. Algumas pessoas passam ao largo das polêmicas, ou comentam apenas as que parecem lhe tocar mais; outras parecem se sentir tocadas por toda e qualquer coisa, e enchem seus leitores de links, comentários e opiniões. Esse clamor de justiça facilmente adquire ares de bullying virtual – quando mexem com alguém que tem muitos seguidores e ele os conclama, chovem reclamações e xingamentos contra o sujeito “errado”, que rapidamente se torna uma vítima. Pouco importa o que aconteceu – muita gente fora do contexto se achará no direito de citar sua @ e xingá-la sem o menor pudor. Porque elas estão “certas” e isso basta.

Tantas certezas me colocam na defensiva. Um lado meu não consegue levar à sério gente que fica indignada e se posiciona o tempo todo. Fico com a impressão de que o que importa é a briga em si, que ter uma causa é apenas um pretexto para liberar sua agressividade natural. Agredir os outros porque se acha cheio de razão me faz pensar nas pessoas que agrediram os primeiros negros que entraram em universidades, as primeiras mulheres que se separaram, os primeiros gays que se assumiram. Esses primeiros negros, mulheres e gays eram pessoas à frente da sua época, enquanto seus agressores eram pessoas comuns. Os agressores não eram monstros, não na sua maioria; as pessoas foram atacadas por pais, mães, velhos, crianças e todo tipo de cidadão respeitável, às vezes de muito boa índole, e que acreditavam estar defendendo o que era justo. Era o que seus pais ensinaram, o que a tradição dizia que era pra ser, era o modo que o mundo funcionava, então porque não seria certo? Na sua época, aquele era o padrão. A nossa época possuiu outras certezas, e algumas delas também mudarão no futuro.

Por outro lado, quando a gente não reclama, pode estar sendo simplesmente omisso. Eu realmente não sei as respostas, qual seria o comportamento correto. Só sei que quando vejo as pessoas dispostas a agredir em nome de uma causa, me parece que continuamos os mesmos apedrejadores de sempre.

Precipitada

Tenho dificuldade em esperar. Me proponho a fazer algo e fico impaciente até poder colocar a minha decisão em prática. Se no dia fatídico acontece algum problema, ao invés de deixar pra depois, minha tendência é fazer do mesmo jeito. Porque eu já me programei, entende? Isso me levou a falar coisas que não pegaram bem, porque na hora já não cabia mais falar aquilo. Já paguei caro por coisas que poderiam ter saído mais barato se eu tivesse dado uma olhada na outra loja ou conversado com alguém que entende mais do assunto. Corri com prazos, me matei pra fazer tudo certinho e nem precisava. Ansiosa, ansiosa, ansiosa. Via nisso apenas uma incapacidade de mudar de programação e de esperar. Também é, mas existe um componente a mais, algo que talvez esteja na raiz: os precipitados sofrem de falta de fé, são pessimistas. Se algo puder dar errado… a sua resposta é dizer que dará? Não sou daquelas pessoas que contam com a sorte, muito pelo contrário. Cresci com o destino está jogando contra mim – coisas dadas como certeza escorreram por entre os meus dedos, fui a pessoa certa no momento errado, aquele contato que poderia mudar minha vida nunca chegou ou veio e não aconteceu nada. Por isso eu sempre acho que se eu pedir não serei atendida, que se eu esperar a coisa não estará mais. Fazer o mais rápido possível, assim que dá, é a única alternativa pra quem se sente sozinho no mundo.

Não seja impopular

Não somos – eu e o Luiz – populares, pessoas que recebem amigos em casa e que conhecem seus vizinhos. Mas, pelo menos, não somos impopulares. Hoje recebi duas provas do quanto a vida é mais bacana quando a gente pode contar com a boa vontade dos outros.

 

Hoje minha casa quase foi assaltada. De manhã, em plena luz do dia. Já haviam tentando assaltar a casa ao lado. Essa vizinha é uma louca, já falei aqui, das que trata todo mundo mal, humilha o filho do jardineiro e chama a policia pra reclamar do vizinho. Na casa dela, chegaram a entrar e arrebentar a porta, mas o filho estava dentro de casa e os assaltantes se mandaram. A minha casa estava vazia. Tem alarme monitorado mas eles não fizeram caso. A Dúnia, aquele baita cão de guarda, nem latiu pro assaltante. Mesmo assim, meu único prejuízo foi a perda do meu cadeado – os vizinhos estranharam a movimentação e foram aqui pra frente, e o cara se mandou. Quando cheguei em casa, já haviam colocado corrente pra mim e todo mundo trocou telefone pra se proteger. A gente fica sem palavras pra agradecer. A vizinha louca colocou cerca elétrica por tudo, por lugares que parece até provocação. Acho que ninguém quis trocar telefone com ela.

 

Depois de três meses de problemas, recebi meu sapato de flamenco e o dito cujo ficou apertado. Passei um mês fazendo aula e tentando dar certo, achando que o problema era ser novo, até que não deu. Estava com medo de ter que ficar no prejuízo, porque pouca gente compraria um sapato 35. Uma amiga ia comprar um sapato da mesma marca pra filha, que ainda está em fase de crescimento, e vendi pra ela. Toda turma estava a par do quanto foi enrolado receber esse sapato, do meu entusiasmo por ele ser tão lindo e sonoro, e é claro que estranharam quando eu voltei pro sapato antigo. Contei tudo e disse que ia comprar outro. O que eu não esperava é que as três pessoas que vão viajar pra Espanha se dispusessem a trazer um sapato pra mim. Novamente: fico sem palavras. Eu não teria coragem de pedir pra me trazerem, porque eu sei que bagagem de volta de viagem internacional a gente sempre vai contando cada grama. O que era pra ser uma perda acabou ficando vantajoso porque terei um sapato ainda melhor.

 

Na minha turma de flamenco tem uma que se acha muito: não aceita correções, fica colocando caco na coreografia pra aparecer mais, não desgruda do espelho. Ela faz isso porque acha que não precisa de ninguém, que ela é boa e pega algumas coisas com facilidade – isso é o que ela acha… Fico pensando se fosse ela com problemas com o sapato, se alguém se disporia a trazer um na mala. Eu não traria.

A dor da gente não sai no jornal

Eu só consegui levar adiante minha pesquisa com cegos quando eles me disseram – e eu acreditei profundamente – que o trauma, a dor que eles possuem só é diferente da dos outros por estar clara pra todo mundo. Apenas isso. A gente olha pra um cego e sabe da sua dor- ele não pode negar, ele não pode fingir, ele não pode disfarçar. Os outros podem; nós, os “normais”, usamos nossas máscaras e fingimos que tudo está e sempre esteve bem. Todo mundo sabe que chato e constrangedor é quando alguém começa a exibir suas dores à luz do dia. Isso me lembra muito aquelas situações que todo mundo fala mal de uma chefia ou organização, e na hora do vamuvê, um ingênuo decide falar a verdade. Em pouco tempo ele se verá sozinho, porque os outros não apenas não o apoiaram como são capazes de defender aquilo da qual todos mal. Aí a tal chefia tem a impressão que só aquele que abriu a boca pensa assim.

Ter uma dor pública ou escondida – eu realmente não sei dizer o que é pior. Quando ninguém sabe dos seus traumas, as pessoas se sentem no direito de te odiar e prejudicar sem pudores. Como se você não tivesse passado pela provação inerente à espécie humana, como se só pudesse ser feliz quem não um dia não sofreu. Concluem que você merece uma lição. De coisas simples à recompensa pelo trabalho árduo, tudo pode ser retirado do seu caminho, pelo simples prazer de prejudicar. São tantos querendo dar lições que é como se o mundo fosse uma grande escola, onde todos são professores e ninguém é aluno. Por outro lado, quando as pessoas ficam sabendo que você tem seus traumas, elas podem (nada garante) até parar de torcer contra. Só que isso terá o preço doloroso da piedade e das explicações reducionistas. Tudo o que você fizer será contaminado com a ótica do coitadinho. Nada mais será uma escolha, nada mais será uma preferência – todas as atitudes serão julgadas pela perspectiva de que foi um infeliz que fez. Se fracassar, tudo está explicado; se deu certo, deu certo apesar de. Uma visão coloca a pessoa como um ídolo a ser derrubado, e outra como ralé.

Minha curta experiência de vida, que conta com centenas de confidências – pessoas que não gostam de ouví-las as atraem – me diz que: todo mundo, nesse mundão, apanhou, apanha e apanhará. Ninguém tem direito de dar lição em ninguém. E ponto.

Paz

Tenho descoberto que viver em paz, como qualquer outro objetivo, exige empenho . Se você perguntar, todo mundo dirá que quer viver em paz – mas daí a agir pra ficar em paz é outra história. Em nome da minha paz, tenho me deixado fazer papel de trouxa. Ao saber que tem alguém falando mal de mim, deixo que falem, não me envolvo. Os outros têm o direito de reclamar e eu tenho o direito de não querer saber. Não posso tomar  ciência – não é apenas não deixar o outro saber que você sabe, e sim realmente ignorar o que está acontecendo. Tenho optado pela paz no lugar da curiosidade. Porque quem sabe toma atitude ou pelo menos se incomoda. A paz é um bichinho muito frágil, qualquer coisa estraga. Ela foge à qualquer idéia de disputa, se espanta com a menor vontade de ser mais, em qualquer coisa: a mais popular, a mais talentosa, a mais culta, a mais bonita, a mais… A vantagem de quem fica em paz é a própria paz. O malandro-esperto-jeitinho-brasileiro também não está procurando paz. Ele faz as coisas sabendo que está fazendo errado, e gente normal não consegue fazer isso sem uma certa tensão. Por isso que pra viver em paz muitas vezes você tem que se conformar em pegar a vaga mais distante, abrir a porta bem pouquinho ou até mesmo ter que entrar pela outra porta, porque o esperto de carro grande fez questão de estacionar torto. Quem vive em paz pode se dar ao luxo, porque respira um ar mais fresco e deixa o ar mais fresco por onde passa. Até mesmo alguns direitos acabei deixando de lado pela paz. Explico: assim como existem os direitos garantidos pela lei, existem também os direitos dados pelo bom senso, em nome da boa convivência entre as criaturas. É justamente nesse último que fica tão difícil, porque é gente demais pra consideração de menos. Algumas vezes invadiram o meu direito e eu bem que poderia ter exigido o meu espaço de volta. Mas, depois de um longo suspiro, ganhar ou disputar não me parecia tão importante, ou até tiraria todo o propósito de estar ali. Depois de muito brigar com o garçom, aprendi que quando o serviço começa a ficar ruim a melhor coisa é pedir a conta e comer um sanduíche. A comida nunca virá gostosa o suficiente. Tenho preferido manter o clima a ter razão; existe muita gente pronta para explodir e não quero ser uma delas. Não quero levar um tiro no trânsito, não quero ser paladina de qualquer coisa, quero apenas viver em paz.

Fofa

Todos eram unanimes em dizer: ela é uma fofa. Tínhamos muitos amigos em comum, e agora ela era namorada de um deles. Mesmo assim, nunca quis proximidade. Sou desconfiada com pessoas fofas. Adolescentes fofas, ainda vá lá; mas uma mulher com mais de trinta anos e fofa é algo que não me desce. Eu aceito uma mulher – aos trinta já passou da hora de se assumir como mulher – ser tranquila, bacana, gente boa, otimista, sociável… mas fofa não. Então quanto mais diziam que ela era uma fofa, menos vontade eu tinha de conhecê-la. Ela também não parecia ter vontade de me conhecer, embora eu soubesse que ela lia meu blog e meu perfil, tanto que vivia pegando as minhas citações pra colocar no seu próprio perfil. Sem créditos, o que é pior. Não que ela devesse dizer que pegou do meu perfil, não é isso, é que não faz sentido colocar um monte de citações entre aspas e não dizer que aquela era de Camus, a outra de Nietzsche e assim por diante. Se eu tinha colocado a autoria, ela que copiasse direito. Então além de ser fofa, ela não citava corretamente, o que irrita meu lado TOC profundamente.

Até que eles terminaram. Percebi de longe, com a ausência de mensagens carinhosas, mudança de status no perfil, o silêncio em torno dos pombinhos. Não sei se ele me disse que haviam terminado ou só deduzi. Era meu amigo e eu não tinha nada a ver com isso. Só que ela apareceu no meu blog, fez um comentário qualquer e colocou o msn, subitamente com vontade de ser minha amiga. Farejei que havia alguma coisa errada e não adicionei. Depois soube da confusão, por ele e por outros: ela havia reunido todos os amigos em comum do casal, em chats. Ela contou os podres dele, as incoerências, os xingamentos, ou seja, a face feia do meu amigo. As pessoas se envolveram e quiseram intervir. Ele, chamado para dar explicações, disse que não tinha nada para dizer. Aquilo foi considerado uma falta tremenda entre os nossos amigos, que passaram a considerá-lo um mau caráter e se afastaram; só restei eu. Das coisas que ele me contou, vi tanta insanidade e grosserias como em qualquer outro relacionamento intenso e doente. Não sei se tenho uma moral dúbia, mas nunca espero que meus amigos sejam namorados ou cônjuges perfeitos. Eu sei que num relacionamento ou entre quatro paredes as pessoas são outras coisas. O que eu achei realmente imperdoável nessa história foi uma mulher feita acabar com todo um círculo de amizades porque ela estava com raiva do ex. Muito fofa.

Anos depois, ela se tornou líder de uma torcida em prol de participante de reality show.

Manhã ensolarada

Eu me arrumei com o carinho de quem só tinha coisas agradáveis pela frente: ia devolver e pegar livros na biblioteca pública, levar três exemplares do meu livro para doar para a Biblipote, trocar uma compra na C&A e almoçar com o marido. Estava me sentindo bonita. Em casa estava fresquinho e o sol parecia convidativo. Coloquei uma roupa confortável porque andaria bastante, com tênis, calça leve e uma blusinha mais leve ainda, quase pelada, pra me aliviar do calor. Escolhi uma bolsa grande porque devolveria três livros e doaria mais três. Por isso a primeira parada era na biblioteca pública, de onde pretendia voltar com a bolsa mais leve. O horário estava tranquilo e fui sentada no ônibus. Nas janelas que quase não abrem, no ônibus, já senti que aquele dia seria bem quente. Fui até a biblioteca e nada do que eu havia planejado deu certo – o livro 1 que eu queria pegar não tinha, nem sinal do livro 2. Sem opções, passei pela literatura russa pra ver se a edição novinha da Anna Karienina da Cosacnaif havia voltado. Havia. Peguei, renovei um outro livro grosso e saí de lá com a bolsa pesando mais de cinco quilos. A distância entre uma biblioteca e outra, de umas dez quadras, nunca me pareceu tão longa. Tive o cuidado de fazer um trajeto diferente do caminho que fiz durante os anos que estudei na Reitoria, porque não queria encontrar conhecidos. Comecei a ficar com fome. A cada minuto, tinha que trocar a bolsa de ombro por causa do peso. Quando tentava levar os livros nos braços, sentia dor nos pulsos. Planejei chegar na Biblipote e aproveitar que é uma padaria pra pedir um suco de laranja. Com muito gelo, o que era especialmente importante. Quando finalmente cheguei lá, derretendo, ela estava tão cheia de gente que mal dava para entrar. “A biblioteca do Alessandro é mesmo um sucesso”, me espantei. Dei os livros pra mocinha do caixa e fui embora, porque até na escadaria tinha gente sentada. Voltei umas tantas quadras e fui pra C&A. Tinha uma hora pra bater perna na loja. Minhas pernas doíam e eu tinha que enrolar porque os restaurantes nem haviam aberto. Enquanto passeava pelas araras e achava tudo teen, vagabundo ou sem a minha cara, – a C&A do centro é um horror – meus olhares se cruzaram com os de uma mulher carrancuda pelos corredores. Era eu.

Quando a idade chega é assim: algum desconforto e já ficamos com cara de bruxa.

Macumba

Eu morava há poucos minutos à pé de um parque. Provavelmente pela tranquilidade das ruas e muita área verde, não era incomum encontrar macumbas pelo caminho: galinhas, cigarros, velas, fitas, cachaça. Se eu soubesse o significado de cada um desses elementos, ou a que Orixás eles se destinam, poderia ter feito uma pesquisa informal sobre o que pedem a pessoas aos seus pais de santo. Um dia vi um despacho que tinha apenas um bilhete escrito com uma letra muito feia e ovos, muitos ovos, mais de três dúzias. Deixei pra lá, como sempre, e fui embora. Na volta, pouco antes de chegar naquela esquina, encontrei um homem puxando um desses carrinhos de pegar papelão com uma expressão eufórica no rosto. Quando fui ver a macumba, não havia mais um único ovo dentro. Sem dúvida foi ele que pegou. Será que com tantos ovos assim a pessoa estava pedindo boas notícias, fartura, alimento, alegria? Pro catador deu certo.

Terceira via

Apesar do que dizem os psicólogos e todos os estudos de famílias desestruturadas, eu acho que foi da bagunça que foi a minha infância que eu adquiri minhas melhores características. Meus pais são loucos e se fosse preciso fazer psictécnico para ter filhos, nenhum dos dois teria passado. Se cada um deles tivesse realizado plenamente o que consideram a educação ideal, não sei o que seria de mim. Lembro do meu pai  tentando me arrastar pro carnaval, tentando me jogar pra cima dos meninos, querendo a todo custo me tornar extrovertida. Ele achava que não conseguia porque eu passava apenas as férias com ele. Vejo o quanto minha mãe é possessiva e controladora, e que ela teria adorado me dar carona a vida toda, jamais me deixar sair de casa ou conhecer alguém sem que ela soubesse – mas a pura e simples falta de grana a impediu. Meses sob a tutela de um e meses sob a tutela de outro fizeram com que nenhum dos dois tivesse totalmente controle. Filhos de pais separados descobrem muito cedo que existe mais de uma maneira de organizar o cotidiano e de lidar com as crianças. À medida que fui crescendo e os conflitos surgiram – com um e com outro, por motivos diferentes – eu já tinha clareza de que era uma terceira coisa.

Ex-amigos

Amizades nascem pelos motivos mais estranhos, e não é difícil, com o passar do tempo, perceber que aquela pessoa não tem nada a ver com você, que talvez tudo tenha sido um erro. Um é noite e outro é dia, um é gato e outro detesta bicho, um é vegetariano e outro é churrascaria. Procurei nunca, jamais, julgar as minhas amizades por coisas tão superficiais como gostos. Para mim o suficiente era perceber que gostavam de mim e me respeitavam. Mesmo quando as diferenças se acumulavam e eu olhava com receio a maneira como os outros amigos eram tratados – indiretas, brigas e reconciliações constantes, gritos – eu não tomava a iniciativa de terminar. Porque éramos amigos, e isso era tudo. Minha disposição para estar ao lado de alguém diferente era quase infinita.

Um dia meu amigo diferente me surpreendia me tratando muito mal, com algo fora de qualquer limite. A linha de respeito básica que eu sempre pedi era ostensivamente ultrapassada. Eu me perguntava se pareço tão trouxa assim pra acharem que isso não significaria o fim da amizade. Tudo terminava ali para sempre, sem apelação, e eu nem me dava ao trabalho de querer saber o outro lado. O ex-amigo que se mortificasse com a culpa de ter destruído uma grande amizade. Era o que eu pensava até pouco tempo. Algumas semanas atrás, tive um insight: vai ver que não é nada disso, vai ver que fazem por querer e ficam muito felizes. Minha infinita tolerância, minha disposição de manter uma amizade com tantas diferenças, tudo isso era uma merda. O outro não me queria por perto mas não achava meios de fazer com que eu me tocasse e fosse embora. Então resolveu fazer o intolerável, justamente por saber que finalmente conseguiria se livrar de mim. Ao invés de triste, deixei alguém muito aliviado.

Como a gente se ilude, meu deus.