Uma história sobre cabelo

Terapias ou trabalhos de auto-conhecimento, em geral, são muito impactantes no começo, nos primeiros passos. É assim que deve ser, porque é a fase dos maiores fantasmas e mais lixo para se jogar fora. Mas quando você se torna uma pessoa “terapeutizada”, que já praticou várias disciplinas, e se analisa constantemente por isso ter se tornado sua própria forma de ser, fica cada vez mais difícil perceber progressos. Eu tendo a achar que não estou indo a lugar nenhum e tenho as minhas disciplinas porque gosto de fazer. Há poucas semanas eu senti algo que vai parecer muito banal: eu me olhei no espelho e gostei do meu cabelo. Deixa eu dizer que eu não lembro a última vez que senti isso. Talvez, antes da adolescência.

Eu comecei a cortar o meu cabelo curto com quinze anos. Ameacei raspar várias vezes, o corte que eu mais tive era cortado à máquina. Em um mês o meu cabelo me irritava e queria cortar de novo. Ter cabelo me irritava. Sim, é difícil explicar, mas a ideia de ter cabelo me irritava, eu só queria me livrar dele, não ter que me preocupar com ele. Quando as pessoas diziam que ele é bonito, eu nunca entendi e nem acreditei. Quando eu era nova, eu achava que não gostava dele ser quase-preto e muito liso; mais velha, quando parei de pintar, comecei a achar que eu não gostava porque ele está grisalho. As pessoas elogiando o grisalho, me achando quase um símbolo, e eu me sentindo feia. Aí tinha que manter muito curto porque está grisalho. Feio porque muito liso e quase-preto, agora eu só não gostava porque era cabelo de velha. Eu sei, é difícil entender.

Quando e o quê mudou? Quando e o quê é capaz de mover uma ferida emocional? Sempre penso em borboletas, que têm a vida muito curta, e que somos tão curtos quanto. Se uma borboleta nasce com uma asa meio dobrada, com a vida tão curta que ela tem, será que vai dar tempo da asa desdobrar? Eu não sei se eu fiz alguma coisa ou se já estava programado dentro de mim que chegaria um dia que, seja lá o que o cabelo estava simbolizando para mim, iria ser curado silenciosamente.

Descobri que, ao contrário do que pensei a vida inteira, meu cabelo não é terrivelmente liso e sim que faz uns cachinhos simpáticos nas pontas. “Deixa assim”, começaram a dizer. Foi me dando uma sensação estranha de gostar de passar a mão na cabeça, dos desenhos dele em volta do meu rosto. O grisalho, misturado com o preto, me deixou como se tivesse luzes, como se eu fosse meio loira. Parei na frente do espelho, puxei pro lado, olhei meio de perfil e tive que assumir pra mim mesma que estava gostando, não queria mais que estivesse muito curto e nem que sumisse.

Procuro dentro de mim essa sensação de prazer antes. Lembro de ter uns 10 anos e de ter tomado banho no banheiro do meu pai e parar na frente do espelho e dizer que queria meu cabelo daquele jeito, todo para trás. Que eu preferia ele quando úmido, ele secava e não era a mesma sensação. As outras lembranças estão revestidas de uma falsa indiferença que me faz adivinhar que elas são parte do problema: a adoração de todos ao meu cabelo em Salvador, de meu cabelo chamar atenção, de ficarem impressionados do quanto ele era “bom”. O susto de um dia estar de pé com outras crianças e sentir pegarem no meu cabelo pela nuca e erguerem. Era um menino que era mau elemento e ele falou com o rosto muito perto do meu que o meu cabelo era lindo. Eu não entendi a expressão com que ele me olhou; meu irmão mais velho, que era também mau elemento, viu a cena e me falou muito seriamente para eu voltar para casa, que ficar ali não era bom pra mim.

Em Curitiba, nos dois últimos anos que passei em colégio particular, comecei a sofrer bullying. Os nossos lugares eram fixos por ordem de chamada, alternando meninos e meninas. Os meninos que sentavam atrás de mim começaram a me chamar de índia. Não era o que eles diziam em si, e sim a forma como faziam: lembro do riso maldoso cada vez que eu passava, os olhares procurando minha expressão insegura, de falarem que eu era igual as indiazinhas que mostravam nos documentários. De ficarem repetindo aquilo sem parar, porque o fato de eu ficar com vontade de chorar fez com que o apelido pegasse. Eles sentavam atrás de mim e não dava pra fugir e nem trocar de lugar. Tentei pedir ajuda pros professores, mas eles pareciam querer uma denúncia formal, que eu não tive coragem de fazer. No ano seguinte, eles estavam lá de novo, me perseguindo com o apelido. Eu era apaixonadinha por um colega e, quando vi, ele se juntou aos outros meninos e ficava rindo de mim também.

Eu nunca pensei em mim como alguém que foi afetada por apelido de colégio, ou que valorizarem tanto o meu cabelo de branca (porque é isso o que a expressão “cabelo bom” quer dizer) me incomodasse. Mais do que isso: estabelecer uma relação causal entre esses dois fatos e passar quase a vida inteira brigando com meu cabelo me desgosta. Acho exagerado, infantil, não sei. Fico querendo pensar num episódio mais chocante, num trauma bloqueado, ou uma explicação fantástica do tipo ser um alien de uma civilização avançada sem cabelos. O fato é que me afetou, que engoli em forma de ódio a mim mesma um não saber com a maldade dirigida a mim. Fico triste pela minha fragilidade que não assumi nem a mim mesma, da dor imensa que foram aqueles apelidos e que nunca mais quis lembrar. Que meia dúzia de crianças e admirações esquisitas possam ter gerado feridas de trinta anos.

Eu só consigo pensar: a gente é tão borboleta, a gente é tão bichinho assustado, a gente precisa muito muito muito mais conseguir se abraçar por dentro.