De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse

Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha
de alta classe
De dourado eu lhe vestia pra que
o povo admirasse
Eu não sei bem com certeza porque
foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia

Chico Buarque/ Quem Te Viu, Quem Te Vê

Será que já aconteceu de um dia uma dessas mulheres que sabem se maquiar, andam de salto agulha e se sentem à vontade de blusa de seda no dia a dia dizerem para si mesmas: “acho que este tipo de roupa não me mostra do jeito que eu quero ser vista, gostaria de ser mais básica e não consigo!”. Porque eu sei que o contrário, da mulher básica se cobrar porque gostaria de ser mais elegante e feminina, acontece o tempo todo.

Comigo o “queria me vestir de maneira mais feminina” é uma crise recorrente. Já tentei mudar minha forma de vestir muitas vezes e somente quando, há poucos meses, fui testemunha da crise de uma amiga minha, me dei conta de que não é um problema exclusivamente meu. Minha amiga trabalha sozinha a e está quase se aposentando. Eu a conheci na academia, então achava normal vê-la sempre de roupas de ginástica. Depois comecei a perceber que ela também estava de legging e camisetas dry-fit no supermercado, na concessionária, no trabalho… Ela se arruma nas poucas vezes por ano que precisa ir a algum evento noturno, e vê-la de vestido, jóias, salto e cabelo de salão acaba sendo estranho. Há poucos meses, em meio à mudanças de vida, ela decidiu que não queria mais ser tão básica, que iria usar “um monte de roupas bonitas mofando”. Ela tirou saias e vestidos do armário, tentou novas combinações, usou de forma diferente o que já tinha… Só que, mais algumas semanas sem encontrá-la (pandemia, folks), e vejo foto dela no Facebook com a legging e a camiseta dry-fit de sempre…

O que me frusta nessa história não é o vestir-se em si e sim a questão do livre-arbítrio. Se não conseguimos mudar algo tão simples como a nossa maneira de vestir, o que dizer do resto? Como acreditar em se tornar uma pessoa melhor, descobrir em si um desajuste e tentar arrumar, ter vindo de um lar desequilibrado e tentar ser saudável apesar disso, abrir-se para um mundo novo de possibilidades? Comecei a pensar sobre a questão da roupa, do porquê parecer simples e na prática não ser, o que o tal fracasso revela.

O modelo de mulher vestida de roupas femininas exige tempo e dinheiro pra conhecer as maquiagens, as modas, as diversas opções de combinações, os cortes mais adequados à nosso tipo físico, que roupa vestir em que ocasião. São roupas que têm cortes mais elaborados e feitas de tecidos amassam, puxam fios, duram pouco ou precisam ir pra lavanderia. E existe aquele ideal que vai além da mera combinação adequada de todos esses elementos chamada “ter estilo”… A crise sobre como se vestir não acontecer com a mulher saia-salto-agulha e ser comum pá nóis – que andamos de transporte público e compramos na C&A em vezes – é bem revelador. Esta crise pode revelar uma incapacidade de geral de mulheres com determinados perfis (de renda, de idade, de cotidiano, etc) em se ajustar a um modelo elitizado. Ou seja: é pra ser caro, pouco acessível e nos deixar em crise mesmo. O ser “básica” é o fazemos mais naturalmente, as roupas que são mais fáceis de comprar e combinar, o que é confortável, o que dá pra vestir sem ter muito dinheiro ou passar muito tempo na frente do espelho. O tênis não machuca o pé, enfrenta qualquer tipo de chão, dá pra correr com ele; a mulher de salto praticamente só pode andar devagar porque é o único que dá pra fazer.

Uma curiosidade: sabem que os pés pequenos das chinesas não eram exatamente um fetiche por pés, né? Eles ficavam quase todo tempo enfaixados, porque doíam. A graça estava no fato da mulher ficar com pouco equilíbrio e ter um andar mais ondulante. Quando deu a revolução cultural, as mulheres com pés pequenos nem ao menos puderam tentar fugir, não dava. Nossa versão ocidental tampouco era confortável: os espartilhos não apertavam apenas a cintura como espremiam as costelas e tornavam a respiração superficial. Não é à toa que as mocinhas desmaiam com tanta facilidade e existem tantos quadros com mulheres languidamente deitadas em chaises-longue. Interessante pensar que tornar a mobilidade feminina algo difícil – tanto literalmente quanto figurativamente – seja um atributo que torne as mulheres mais atraentes aos homens.

Às vezes as pessoas tentam aproveitar uma grande mudança na vida para melhorar o resto. Por exemplo: muda de emprego e já aproveita pra chegar no lugar novo com outro corte de cabelo e uma nova forma de vestir. Tenho uma amiga que aproveitou uma mudança de cidade para chegar como alguém que bebe álcool, porque ela vinha de um meio místico que considerava isso errado e a olhavam feio se bebia um vinho. Os novos amigos já a conheceram agnóstica e não tinham nada contra bebida alcoólica. Tudo porque o convívio faz com que as pessoas tenham um julgamento fechado a seu respeito, e contrariá-lo sempre provoca alguma reação. Os “olha que bonita que ela está hoje”, “pra onde é que você vai desse jeito”, “está toda arrumada, deve estar querendo impressionar alguém” não têm nenhuma intenção consciente de punir ou fazer a pessoa voltar ao que era, mas muitas vezes acabam soando como uma reprimenda por não se estar do jeito como sempre esteve. Para alguns, chegar novo num lugar, sem saberem quem somos e nenhuma ideia preconcebida do que gostamos é uma grande oportunidade. Se hoje podemos desejar ser estrangeiros em algum momento das nossas vidas, nas histórias antigas era comum o estrangeiro ser recebido com desconfiança, porque ele era potencialmente mau e sedutor.

Ser estrangeiro era estar numa posição delicada, que exigia prudência por parte do estrangeiro e cautela por parte de quem recebia. Os locais se perguntavam: ele pode ter saído do país dele porque fez algo de errado e fugiu, ele pode seduzir as mocinhas do lugar e ir embora de novo, como saber o que ele está pensando? Então “quando um homem está viajando e é, portanto, estrangeiro, deve evitar ser rude ou arrogante. Ele não dispõe de um grande círculo de relações e não deve, portanto, se vangloriar.” (Hexagrama 56 do I Ching, O Viajante) Não saber como classificar alguém, não ter como puxar um histórico que permita prever o comportamento, pode gerar ansiedade – mesmo que seja apenas Juliette Binoche chegando na cidade pra fazer Chocolate. O estrangeiro pode até ser visto como alguém sem amarras, mas ele sabe o que carrega dentro de si. Será que o estrangeiro que saiu fugido consegue realmente chegar numa terra nova e se estabelecer em novas bases? Ou será que recairá no seu antigo comportamento e quem sabe tenha que fugir de novo? Pensando nas roupas: será que conseguiremos escolher o novo e transformaremos nosso estilo ou pouco a pouco iremos repetir tudo o que fazíamos antes, usando tudo o que já usávamos, recomprando aquilo da qual nos livramos?

Foram as grandes cidades que, de certa forma, nos transformaram a todos em estrangeiros. Esta sempre foi uma das vantagens das cidades e o que as tornavam atraentes: a impossibilidade de conhecer todos leva a não se conhecer nem os vizinhos, então cada um pode ser o que quiser. Cidades como NY se tornaram lendárias, sinônimos de vanguarda, porque todos os que se sentiam sufocados nos seus lugares de origem podiam ir pra lá e sair do seu armário sexual, comportamental ou artístico. Ao contrário do raciocínio que se poderia ter hoje, a uma criada de uma sociedade tradicional de nada serviria tentar usar as roupas lindas de uma dama. Houve época que as roupas eram estritamente ligadas a posições sociais – um nobre se vestia como um nobre, um servo se vestia como um servo. Tentar usar uma roupa que não pertencesse à sua classe soaria apenas absurdo – a quem se poderia enganar se todos conheciam seus lugares na sociedade? A mensagem que a roupa passava e a maneira como cada um deveria se vestir já era muito clara, então não havia muito o que se discutir. Querer que a roupa manifeste algo profundo e pessoal é uma maneira bastante nova de olhar para o assunto, possível pela união de pelo menos dois fatores: flexibilidade dos papéis sociais e uma concepção de um Eu como ser independente. Então, hoje temos uma inquietação com roupas que não existe na humanidade desde sempre; nós achamos que há um diálogo entre a nossa maneira de vestir e a nossa essência.

Essência? Não vou nem entrar nessa questão se há ou não essência, do caminho que foi construído ao longo da história para que hoje seja senso comum acreditar que cada ser humano tem uma, vou apenas soltar que somos – independente do que se acredite em termos de individualidade – um conjunto de hábitos bastante estabelecidos. Antes do hábito é preciso aprender, e para aprender é preciso vivenciar e repetir. Há quem diga que são pelo menos umas dez mil horas de prática para que se possa realmente ter domínio de alguma arte. Talvez quase todas as tentativas de mudar de estilo pessoal fracassem porque partimos de uma abordagem essencialista: eu reflito sobre meu estilo, acredito que busco algo diferente e tento transformar isso em ação; outra forma de abordar o assunto poderia ser behaviorista, de tentar mudar o comportamento através do comportamento e o estado psíquico acompanhará a mudança por consequência. Uma vez eu li (impossível dizer aonde) que mexer no computador, que hoje nos parece tão natural, é uma aprendizagem que leva cerca de seis anos. Para quem nasceu em meio à tecnologia, os seis anos passam sem sentir – uma experiência bastante diferente para os mais velhos, que sofrem preconceito por não conseguirem fazer algo tão “natural“. De maneira semelhante, pessoas que gostam de moda costumam estar sempre informadas a respeito de moda, se expondo às informações em revistas, vitrines, artigos e conversas com amigos, enquanto as que não gostam praticamente só se preocupam com uma roupa na hora de comprá-la. Visto desta maneira, o vestir-se ou não com “estilo” ou o fracasso em mudar não passa por “relação com a própria feminilidade” ou “sensibilidade estética” – como qualquer mudança de hábito, ela é muito mais um não saber fazer, ainda.

Crianças e dentistas de biquíni

Uma vez, naquela época selvagem e saudosa em que estar cercado de pessoas era apenas desagradável, eu estava sentada no ônibus e observei uma criança que sentou perto de mim. Naqueles poucos minutos que nossas viagens coincidiram, ela sentiu a textura da janela com as mãos e a língua, rolou no banco e se deitou com a cabeça apoiada nele, engatinhou pelo chão do ônibus, passou a mão por tudo e também no próprio rosto, boca, olhos e dentro do nariz, enfim, quem já viu uma criança sabe do que eu estou falando. Sentada de pernas juntinhas no meu próprio banco, eu comecei a me perguntar o que fazer com a criança quando chegar em casa, que mandar pro chuveiro era pouco, ideal seria colocar na autoclave. O pensamento de tocar em metade daquelas coisas era totalmente nojento pra mim, e pra ela também seria quando chegasse na minha idade. Em pouco anos, ela também seria uma pessoa imóvel dentro do ônibus, tentando ter o mínimo de contato possível com tudo o que há dentro dele.

Há um livro de sociologia muito interessante, que talvez tenha sido determinante para me fazer querer fazer esse curso e, mais tarde, esse mesmo autor e sua teoria se tornaram centrais no meu mestrado. O nome do livro é O Processo Civilizador e seu autor, Norbert Elias, é um judeu que estava para se tornar professor quando o nazismo ganhou força e proibiu os judeus de ocuparem cargos públicos. Ele fugiu para Inglaterra (seus pais se recusaram e morreram em campos de concentração) e chegou lá mais do que um recém-formado e menos do que um catedrático – e como é difícil quando alguém não se encaixa com a idade certa de se fazer as coisas. Meio sem ter para onde ir e o que fazer, ele começou a vasculhar uma biblioteca universitária (imagine o que não tem na biblioteca de uma Oxford ou uma Cambridge!) e lá encontrou manuais de boas maneiras medievais. Esse é o ponto de partida de O Processo Civilizador.

São dois volumes e o primeiro volume, que cita o que está nos manuais, é divertidíssimo. Nos modos à mesa, aprendemos que se você sente vontade de cuspir, não deve fazê-lo por cima da mesa e sim embaixo ou para a parede. Que é feio devolver a comida mastigada para o centro da mesa, só porque você não gostou ou porque estava muito quente quando você colocou na boca. Também não se deve colocar essa comida no prato da pessoa do lado e nem pegar o que está no prato dela. Os talheres eram usados, quando muito, apenas para colocar a porção no prato. Inclusive citam o caso de um casamento entre nobres onde foi sabido que a moça usava demais os talheres, e aquilo foi entendido como muito arrogante por parte dela. Quando lemos esses exemplos, temos a clara impressão de que os medievais agiam à mesa como crianças. Os comportamentos “infantis” dos medievais não se restringiam à mesa; o que chamamos de civilização tem a ver com uma maior contenção nos gestos, com a preocupação com o olhar do outro, o auto-controle acima da espontaneidade. De castelos ao Palácio de Versalhes, percebemos que não existiam banheiros nas construções da época e que para ir de um cômodo a outro era preciso atravessa-los. Reis despachavam decretos enquanto faziam cocô, não havia problema nenhum em ser visto fazendo sexo (eu ia escrever “ser flagrado”, mas “flagra” implica numa proibição que não existia). A civilização é também uma noção de privacidade, de que algumas partes nossas – especialmente as mais fisiológicas- devem ser mantidas longe dos olhos dos outros.

Mas também me parece que a noção de privacidade de até dez anos atrás está se desfazendo rapidamente. Eu ouvi a mesma história, uma delas de uma dentista da minha idade e outra de outra dentista, só que esta dez anos mais velha do que eu e que atende em outra cidade. Ela(s) me disse: “Eu vi algo tão absurdo. Eu estava com uma estagiária de Odontologia e eu a sigo no Instagram. Ela só tem uma conta, a que eu que sou chefe dela sigo, os amigos e os clientes. E a criatura fica postando foto com pouca roupa! Dia desses colocou foto saindo do mar, de biquíni. Não é totalmente inadequado?” Perguntei a idade das tais estagiárias e as duas tinham na faixa dos vinte. E respondi: não sei mais se é inadequado. É algo que eu e elas não faríamos, jamais deixar que nossos chefes e clientes vissem uma foto nossa de biquíni, e não apenas por pudor da idade ou vergonha dos nossos corpos. Nós entendemos fotos de biquíni como uma quase nudez e que isso não pode ser conciliado com uma imagem profissional – ou alguém nos deseja ou nos respeita no nosso trabalho. Mas elas só têm vinte anos e se sentiriam tolhidas no seu direito de serem jovens e admiradas se não pudessem colocar foto de biquíni em redes sociais, dizer pra elas que não pode ia apenas soar velho e repressor. Eu acredito que recém-formadas-de-biquíni-em-redes-sociais terão que lidar com consequências que eu considero desagradáveis, como receber comentários sobre seus corpos e cantadas de clientes; pode ser que com o tempo concluam que o melhor é não mostrar, mas pode ser também que elas achem que vale a pena. O que me parece claro é que estamos em plena mudança de mentalidade.

E o que dizer das lives? Uma das melhores coisas de assistir as lives é o entorno, poder ver a intimidade da pessoa. Teve mulher do Fábio Porchat passando pelada atrás dele durante a entrevista com Boulos, tem rinhas de estantes, os gatos adoram aparecer junto dos donos. Agora que influenciar se tornou uma profissão, o sonho de se tornar uma celebridade ficou muito mais acessível. É só descobrir um assunto novo – de coloração pessoal à medicina alternativa – que descobrimos que há várias referências famosas apenas naquele nicho com milhares de seguidores. Então, nesse sentido, as dentistas-de-biquíni estão corretas, porque agora consumimos tudo: pessoa, profissão, cenário e produto são parte do mesmo pacote.

A pandemia também levou muitos empregos para casa e provavelmente não vai tirar de dentro delas todo mundo, porque descobriram que é muito mais econômico. Os que têm como, montam lindas estações de trabalho totalmente isoladas do resto da casa, com luz e móveis adequados, enquanto quem não pode se vira deixando a cama de fundo, ou a sala que também é acoplada com a cozinha – outra mudança de privacidade que afeta a arquitetura – e num só relance conseguimos ver toda vida de alguém em forma de móveis e objetos. Já li em algum lugar que home office não é trabalhar em casa e sim morar no trabalho. Na prática, é difícil separar: atendemos whats do chefe durante o banho, usamos roupa social aonde a câmera pega por cima da calça de pijama, afastamos o teclado para comer. Alias, se agora o meu computador é uma estação de trabalho que ocupa espaço na minha casa, o certo não seria a empresa pagar a internet e nos fornecer todo equipamento? Isso sem falar na conta de luz…

Mas eu volto à criança no ônibus: nem tudo o que ela fez é contido pela socialização, como lamber o vidro; algumas coisas que ela fez foram inadequadas apenas porque era um lugar público. Nas nossas casas, em bancos que são nossos, sujeiras que são nossas, e bactérias que são nossas, lá andamos no chão e deitamos a cabeça no banco sem que seja sujo. O público e o privado não é apenas dentro e fora dos nossos corpos, mas também pessoas que fazem parte da intimidade. Existem o que nos são íntimos porque nascemos deles, então a intimidade se forma automaticamente; podemos nos tornam íntimos de parentes mais distantes, colegas de apartamento, namorados, amigos. Um requisito fundamental para a intimidade é nos fecharmos num pequeno mundo de regras próprias. Assim como objetos/sujeiras/bactérias se tornam os nossos, os segredos se tornam nossos; se de um lado baixamos a guarda e julgamos com menos severidade os que são “nossos”, também temos um compromisso de preservação com eles. Clientes de home office e público de lives não são essas pessoas. Então arrumamos a bagunça, compramos iluminações especiais, criamos uma maneira de falar diferente quando a câmera está ligada. Postamos muito em redes sociais, mas quem realmente posta TUDO? Mesmo o mais desligado nas redes sociais usa alguns truques para deixar a foto que o representa mais bonito. Ao mesmo tempo que se projeta uma imagem de intimidade em redes sociais, ela é maquiada e protegida, então talvez não seja realmente uma intimidade – ou, pelo menos, não uma intimidade completa, se é que isso existe. Acrescentamos camadas em cima de camadas do que seria nossa intimidade.

Já fui longe demais no meu caminho de destruição

O monge olhou para Angulimala como se ele uma pessoa íntegra e digna de respeito.

Angulimala perguntou: “Você é o monge Gautama?”.

O Buda consentiu.

Angulimala disse, “É uma pena não encontrei você antes.

Já fui longe demais no meu caminho de destruição.

Não é mais possível voltar atrás”.

Não é verdade que nunca é tarde para voltar atrás. Não é verdade nas leis da física – o conceito de Flecha do Tempo fala que o universo caminha de uma baixa entropia para uma alta entropia, por isso que os acontecimentos caminham sempre na mesma direção, a que chamamos de Futuro. Voltar no tempo seria como tentar pegar várias partes explodidas e tentar juntá-las de novo, a “bagunça” excederia o volume do objeto original. Voltar atrás tampouco é uma verdade orgânica. Biologicamente, o máximo que se pode fazer é tentar retardar o envelhecimento. Um órgão de uma pessoa de quarenta jamais voltará a ser o mesmo de quando tinha vinte anos, porque aos vinte estamos numa curva ascendente e depois dos trinta começamos a decair. O que se faz hoje é tentar diminuir a angulação dessa curva, tornar menos acentuada, mas sabemos que a direção inevitável é a decadência. Por fim, quanto mais velhos ficamos, mais difícil é a aprendizagem. É muito pequena a janela na infância onde tudo pode ser aprendido, desde a interpretação de estímulos luminosos serem transformados em imagens até habilidades muito especiais e refinadas, como tocar um instrumento musical. Não estou dizendo que, depois que essas janelas passam, é impossível e proibido aprender certas coisas, sempre existem os casos de pessoas que começaram tarde e se tornaram muito boas, etc. O que quero dizer que não é tudo na vida que você pode acordar, tenha trinta, quarenta ou sessenta anos de idade e dizer pra si mesmo: “nessa nova fase da minha vida, serei violinista. Nunca estudei música, mas basta contratar um bom professor e me dedicar bastante e tudo é possível.” Existe um discurso que diz que com força de vontade tudo é possível, e não é verdade.

O mundo adora os jovens, e mais ainda os prodígios. O próprio termo prodígio só se aplica a jovens, se você parar pra pensar. Um adulto que seja muito bom em algo, de certa forma, não faz mais do que a sua obrigação, porque se dedica a uma determinada atividade há muito tempo. E mesmo que ele se revele muito bom em algo que não fazia antes, vamos encontrar atividades correlatas que de forma indireta contribuíram para que ele tivesse um bom desempenho. Os jovens prodígios têm tantos feitos alardeados, que às vezes os feitos infantis se sobrepõem até mesmo ao que produziram de melhor, depois – porque o impressionante é fazer quando criança, depois de adultos era obrigação. Penso sempre em Mozart, que é tão famoso por ter sido prodígio, por ter composto a primeira não-sei-o-que na idade que nós ainda arrancávamos cabeça de boneco com os dentes. O que ele compôs naquela idade é completamente irrelevante, ninguém nem ouviu, as obras maduras de Mozart que são interessantes, mas gostamos muito de repetir a história da infância. A fixação nos prodígios faz com que nós, reles mortais, tenhamos sempre um sentimento de insuficiência. Os prodígios fizeram pelo menos dez anos antes o que você só começou a se interessar agora. Quem mandou demorar pra pensar, quem mandou querer namorar quando adolescente ou brincar quando criança, perdeu tempo!

Verdade seja dita, gostamos muito de pessoas mais velhas que voltam a estudar, talvez porque nem encaremos isso como uma volta. Conhecimento é sempre algo novo. Pensamos em pessoas que tiveram que se dedicar às famílias e ao trabalho e que só depois de tudo resolvido é que finalmente podem ir atrás do que deveria ter lhes pertencido por direito. Queremos pais e avós em universidade, que ter curso superior se torne comum. Eu adoro séries de arquitetura, como As casas mais extraordinárias do mundo e Grand Designs, e acho que não é à toa que nunca apareceu nenhuma casa brasileira por ali. Falta de milionários dispostos a ter casas fabulosas é que não deve ser, nem tudo é questão de dinheiro. Vejo nessas séries técnicas de construção e cálculos elaborados em várias etapas; aqui, o conhecimento é tão verticalizado que imagino que tremendo telefone sem fio seria conseguir fazer metade do que foi pensado pelo projetista chegar lá na outra ponta, na obra propriamente dita. Mas, para o nosso mercado de trabalho, parece que só fazer conta e ler instruções tá ótimo. É muito bonito alguém se formar já maduro, é um enriquecimento pessoal e etc., mas que ele pretenda usar o diploma que acabou de obter para entrar na profissão é outra história. Um recém-formado velho e sem experiência, o pior dos mundos.

As últimas eleições para presidente foram dominadas por fakenews transmitidas predominantemente por whatsapp, mas elas não são um fenômeno isolado, um “privilégio” brasileiro, elas estão relacionadas a um movimento anti-cientificista global. As pessoas não querem mais confiar em especialistas, que fazem afirmações baseadas em algo que só eles mesmos entendem. Por que devo confiar no que diz um livro sobre o formato da Terra se, quando olho para o horizonte, o que vejo é plano? Recomendo muito o documentário A Terra é Plana, da Netflix. Achar simplesmente é que é um bando de gente ignorante, burra e teimosa não ajuda em nada a entender o fenômeno. No documentário vemos que o terraplanismo – e podemos supor que as conclusões valem para teorias conspiratórios em geral – apenas aproveitou uma brecha que já existia na sociedade: pessoas com desajuste social e que encontram sentido de pertencimento em teorias fora do mainstream, com inteligência e espírito investigativo que não encontra meios de expressão no seu dia a dia. Como os próprios cientistas entrevistados no documentário refletem, a emergência das teorias conspiratórias também não deixa de ser um atestado de fracasso à nossa maneira de compartilhar o conhecimento científico, que de tão misterioso e isolado acaba se tornando quase mágico. E, crença por crença, o indivíduo pode se sentir mais empoderado em produzir a sua.

Acho que esta reportagem que saiu na BBC, sobre QAnon e teorias conspiratórias em geral, vai no cerne sobre o problema de se arrepender quando diz:

“Para as pessoas que estão totalmente envolvidas com uma teoria da conspiração, se o que está previsto para acontecer pela teoria não acontecer, não importa. Às vezes é aí que as pessoas se comprometem ainda mais fortemente com a própria conspiração. Isso porque, neste ponto, as pessoas investiram tanto tempo e energia nisso, danificaram suas relações pessoais em nome disso. Virar as costas à teoria da conspiração seria uma admissão de que o último ano, dois anos ou três anos de sua vida foram um desperdício”, explica Young.

O problema de voltar atrás é que nunca realmente se volta atrás, a Flecha do Tempo vai sempre para frente. Eu costumo imaginar a vida humana como uma régua, onde começamos no zero e vamos passando pelos números até chegar ao fim. Reconhecer que estamos errados é como estar lá pelo número trinta e riscar um zero em cima. Quantas vezes na vida conseguimos recomeçar a graduar no Zero sem que isso nos afete pessoalmente, sem o sentimento de vida jogada fora ou de fracasso? Em teoria, é possível reconhecer e apagar continuamente, inclusive é bastante raro que alguém não tome uma decisão que não foi a mais acertada pelo menos uma vez. Ao mesmo tempo, se tudo bem estudar uma graduação e depois trabalhar em outra coisa, se tudo bem ter um relacionamento longo e ele chegar ao fim, se tudo bem parar numa sala de aula com o dobro da idade de todos que estão lá… mas quantas vezes isso é viável? Quem suporta encher a régua da sua vida de zero, riscar aos vinte, aos trinta, aos sessenta, quantas vezes suportamos decidir, arrepender e mudar?

Meu pai bebia muito e a aposentadoria lhe deu tempo livre para beber o quanto quisesse, sem amarras. Aí ele dizia que tinha dificuldade de arranjar companhia, porque ninguém acompanhava o ritmo dele. Mesmo aqueles que, no passado, bebiam tanto quanto ele, já haviam se endireitado; os mais novos, que bebiam o tanto quanto, não viam a menor graça de ter um velho bêbado com eles. Eu lembro de mim mesma aos trinta, no meio de meninas de quinze, fazendo balé. As mães me lançavam olhares espantados e as professoras não sabiam direito o que fazer de mim, tanto que o último ato que me fez largar foi quando a Diretora nem ao menos me avaliou. Fizemos um dia inteiro de prova, fomos testadas de várias maneiras, algo bem rigoroso. Depois, tivemos uma conversa séria de avaliação, que continha não apenas as notas como comentários sobre o desempenho na prova e no ano inteiro, sugestões, perspectivas de futuro. Ouvi durante horas todas as avaliações das outras meninas, fui deixada por último. Quando finalmente chegou a minha vez, a Diretora disse: “não tem en dehors” e dispensou a turma. Não tinha, é biológico, e eu não tinha mais como desenvolver, não tinha corpo pra balé, pra quê perder meu tempo falando mais – foi isso o que ela disse sem dizer naquela frase curta. Entendo pessoalmente sobre começos e recomeços, então sei que até para se arrepender e se “endireitar” existem expectativas – sobre quem você é, quais as suas obrigações, quantos anos você tem. Depois de certa idade, não é mais pra passar vergonha bebendo ou querer fazer balé. A sociedade espera que determinadas mudanças de rumo aconteçam até certas fases; depois que “época certa” termina, deixa de achar interessante e passa a ver como ridículo, motivo de vergonha.

Ao mesmo tempo, o desejo de voltar atrás seja um dos sentimentos mais básicos, aqueles que nos tornam mais humanos. Não estamos sempre chafurdando a vida dos nossos ídolos através de biografias e/ou revistas de fofoca para descobrir seus pés de barro, que um grande talento por um lado também acompanha grandes problemas em outros setores, algo que também para o ídolo não foi tudo perfeito e em algum setor da vida ele diferente? Ou, dito de outro modo, alguém é capaz de acreditar na estrela que é rica, talentosa, boa pessoa, come rúcula, é feliz no amor e sempre amorosa com os filhos? Sabemos que ninguém passa incólume pela vida. Queremos descobrir as imperfeições não necessariamente para criticar, e sim para humanizar. O arrependimento é tão humano existe uma categoria especial de pessoa que faz qualquer tipo de atrocidade e nunca se arrepende: o psicopata. E a eles temos horror.

A existência de um sacramento como a Extrema Unção (que agora é chamado de Unção dos Enfermos) mostra que até o último minuto é possível se arrepender, e que mesmo sem a menor oportunidade de transformar o arrependimento em atitudes, ele tem valor. Angulimala virou monge, protegido por Buda, mas ainda assim teve que lidar com a fúria das pessoas pelo que fez. É a finitude da vida humana que tornam o voltar atrás ao mesmo tempo apavorante e bonito. Para Anne Rice, em Entrevista com Vampiro, a perspectiva de uma vida infinita literalmente matava os vampiros de depressão, porque depois de algum tempo o tédio era insuportável. Borges, em O Aleph, nos faz acompanhar um explorador em busca da fonte de juventude eterna, e ele por fim descobre que os bárbaros que estavam por ali eram os Imortais. Embrutecidos, imóveis e sem ambições, a eternidade era para eles uma maldição. “Encarados assim, todos os atos são justos, mas também indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a Odisséia”. (p.20). Nós só nos arrependemos porque agimos, só agimos porque vivemos; só nos arrependemos porque o tempo que nos resta é pouco, e é o pouco tempo que temos que torna a vida preciosa.

Enquanto os meus olhos vão à procura

Imagine a sensação de aparecer na sua vila, no seu bairro, um assassino tão cruel que as pessoas chegam a duvidar que seja um ser humano. Não é pra menos – além de ser extremamente grande e forte, o sujeito ainda faz questão de colecionar os dedos das pessoas que matou e usar todos unidos num cordão fedorento em volta do pescoço. Ele estaria em busca de um último dedo muito específico para tornar sua fama ainda mais amedrontadora: iria matar sua própria mãe. Com a possibilidade de encontrar esse sujeito na rua e morrer por pura bobagem, aí sim as pessoas praticaram isolamento social e não saíam de casa pra nada. Menos um forasteiro, um peregrino. Ele continuou seu caminho como se nada soubesse, e quando ouviu a voz retumbante do assassino que o mandava parar, respondeu:

-Eu já parei há muito tempo, Angulimala, você que ainda não parou.

Essa é uma história budista famosa e você a encontra facilmente no Google. O assassino veio ferozmente até Buda, que lhe falou de compaixão e perdão, até que Angulimala se converteu. Depois, já monge, Angulimala quase apanhou até a morte, por familiares de suas vítimas, e não revidou. Mas eu quis retirar a parte mítica da história porque eu acho que o que converteu Angulimala não foi nada do que Buda falou, e os budistas não gostam de vê-lo como uma espécie de deus com poderes. Se não foi pelo texto ou pela mágica, o que Buda fez de especial com Angulimala foi olhá-lo. Ele foi o único capaz de ver o ser-humano por debaixo do colar de dedos e se conectar com ele. Essa história me remete a outra, bem mundana, que Gilvan Moura, da Beatles School, contou em um dos seus vídeos (impossível saber qual, foi uma citação rápida). Numa discussão qualquer entre Paul McCartney e John Lennon, as coisas estavam cada vez mais tensas, até que John tirou os óculos e olhou bem nos olhos de Paul e disse: “Sou eu, John”. John, aquele que te conhece desde a adolescência, que sabe tudo a teu respeito e de quem você sabe tudo a respeito, frequentamos um a a casa do outro, brindamos juntos, sofremos juntos. Paul entendeu e se acalmou. Há, no olhar, uma capacidade mágica de trazer de volta, de nos aterrar.

Eu li uma vez – novamente citação sem referência, ter muita cultura inútil é assim – que na cadeia o criminoso mais temido era aquele que havia matado a facadas ou estrangulamento. Numa escala de mortes, até mesmo aquele que desvia merenda escolar ou recursos pra saúde é uma espécie de assassino. Existe quem contrate matador ou deixe o carro da vítima sem freio, mas de todas formas de matar, até mesmo se pensarmos em empurrar uma pessoa da escada ou dar um tiro, nenhuma exige tanto brio quanto ficar na distância de um braço; chegar perto, compartilhar do mesmo ar, sentir o atrito com o corpo, poucos conseguem. Mas acho que o que há de pior nessas mortes é enfrentar o olhar da vítima. Ler nos olhos dela a decepção, surpresa ou seja lá o que ela sentiu, e ler também refletido no olhar dela o seu próprio gesto e se encarar: ASSASSINO. Mesmo que segundos depois aquela consciência deixe de existir, alguém na terra carimbou com o olhar uma verdade que nunca poderá ser esquecida. Acho que ninguém consegue ser mais o mesmo depois de romper o tabu de tirar uma vida.

Nos meus maiores momentos de solidão, a música que mais me tocava era London London, do Caetano. Eu nunca tive vontade de morar fora e sempre tive a impressão de que quem sonha com isso viaja, na sua imaginação, direto para a casa de cerquinha branca e ruas tranquilas, reunido com família e amigos em volta da lareira. Eu não, eu penso nos primeiros meses, andando nas ruas que são tranquilas- todas ruas estrangeiras devem parecer muito seguras para brasileiros -, mas que não são as minhas ruas tranquilas. I cross the streets without fear/Everybody keeps the way clear/I know, I know no one here to say hello. Quando deixei de ser casada, eu descobri o quanto ter outra pessoa do seu lado é ter perspectiva. Outra pessoa é basicamente aquela companhia durante a viagem pra você apontar algo interessante e dizer: você viu? No casamento (e com as amizades muito antigas), os dois viram. Mesmo que nada seja dito em palavras, a existência de outra pessoa confirma a sua visão. E muitas das coisas que vocês viram juntos não existem mais fisicamente, seja porque todo entorno mudou ou até pessoas que foram levadas pela morte. Quanto mais avançamos no tempo, mais as coisas tendem a existir apenas nas nossas lembranças e pessoas que as compartilharam conosco ficam cada vez mais importantes.

Existem coisas que só vimos com poucos e íntimos, mas existem visões inteiras que são divididas culturalmente. Todas as pessoas que gostam dos Beatles, todas as pessoas que viram o show do Paul McCartney. Lembro de uma propaganda muito antiga onde se descobria um alien disfarçado no meio de astronautas do mundo inteiro porque a Coca-cola era uma referência em comum. A língua que compartilhamos cria uma identidade imediata. O que todos nós vimos por termos a mesma cultura, a mesma idade, as mesmas paixões? Eu lembro de estar numa balada na Espanha e tocar uma música específica que fazia todos cantarem com grandes gestos. Eu achei que fosse algum sucesso e descobri mais tarde que não, era uma música antiga e muito brega, então aquelas pessoas todas cantavam aquilo de forma irônica. É difícil não saber o básico, olhar e não ver porque, como aquela não é a sua história, você não consegue decodificar os símbolos. I choose no face to look at/ Choose no way/ I just happen to be here/ And it’s okay.

Quanto mais extrema a solidão, mais a gente percebe o quanto o olhar de reconhecimento é importante. Na falta do reconhecimento cheio de amor, serve ser conhecido de alguma forma, o importante é ser notado. Qualquer cachorro sabe que qualquer atenção é melhor do que nenhuma atenção e qualquer dono de cachorro descobre que precisa arranjar um jeito de punir seu filho peludo sem correr atrás ou gritar, porque isso apenas os estimula… Quando eu vi o filme A Rede, de 1995, que se pretendia futurista, logo achei o argumento básico furado. A personagem de Sandra Bullock é uma pessoa que trabalha online o tempo todo, então quando o governo a persegue e muda seus registros, não há ninguém que possa reconhecê-la porque nenhuma das suas interações era face a face. Hoje, ainda mais com a pandemia, é muito comum não precisar de nenhum contato face a face para trabalhar, pedir comida ou fazer amigos – mas nós fazemos questão. Nem que seja pedir comida sempre do mesmo delivery e encontrar sempre com o mesmo entregador, há uma necessidade humana de reconhecimento. Nós gostamos que o entregador veja a nossa cara, queremos ser tratados pelo nome, bilhetes escritos à mão em agradecimento nos comovem e nos fidelizam. As grandes empresas já descobriram que a melhor maneira de conquistar o consumidor é tratá-lo da mesma maneira que as pequenas, ou seja, de forma pessoal.

Mas, em termos de tempo conectados e possibilidades de falsear alguém, estamos ainda piores do que o filme poderia imaginar. Quando vejo os trabalhos de Bauman sobre relações e modernidade líquida, eles me lembram muito os trabalhos da Escola de Chicago (de sociologia e não aquela da economia) que descreviam a solidão nas grandes cidades. Tudo é muito familiar, a maneira como eles falam das pessoas andando na rua com olhares indiferentes, porque é muita gente e é cansativo e impossível ser pessoal. Há muito já encontramos diariamente mais pessoas do que um homem medieval via em toda sua vida, a novidade é o volume ainda maior de informação e contato virtual. O mundo descrito pela Escola de Chicago nos anos 20 já se estabeleceu, do mesmo modo que a liquidez descrita por Bauman, então não adianta mais lamentar o que perdemos. Então, já somos muito menos capazes de investir nas relações, nos faltam a paciência e maleabilidade das gerações anteriores que tinham duas opções de jeans na única loja do bairro – então bastava comprar um e o assunto estava resolvido, não havia outra opção possivelmente mais barata, vantajosa ou que manifestasse melhor o estilo pessoal. Para elas o casamento tinha que funcionar, os amigos precisavam ser perdoados, o emprego era aquilo mesmo, etc.

Enquanto todas as projeções apontavam para um mundo cada vez mais virtual, a pandemia deixou claro para todo mundo que imagens em tempo real e microfones são incapazes de substituir de maneira satisfatória o corpóreo. Podemos cometer a insanidade de achar que mil amigos no Facebook significa ter amigos, alimentar nossos egos através de Likes, mas a necessidade de encontrar pessoalmente não apenas não deixou de existir como se tornou um privilégio. Àqueles que queremos bem, não nos conformamos só com o virtual e queremos marcar encontros, e se for preciso até viajamos pra isso. E, sabemos, por experiência confirmada e reconfirmada, que milhares de mensagem de texto informam muito menos do que cinco minutos diante de alguém. Sabemos que digitar lindas mensagens e dizer que ama é fácil, mas que demonstrar com gestos e estar presente é outro patamar. Os videos de cachorros que latem furiosos quando separados e que se calam assim que o pequeno obstáculo é removido resume bem a internet. O anonimato e a possibilidade de ofender de maneira irresponsável têm exposto o que há de pior nas pessoas. É difícil conciliar que aquela tia de cabelo branquinho que faz blusas de tricô pros netos é a mesma que compartilha links preconceituosos de cheios de ódio. Apesar de parecer pura covardia, eu considero o fato de sermos tão mais ferozes no anônimo do que seríamos capazes pessoalmente é mínimo sinal de sanidade. Poucos de nós conseguem ser assassino à distância de um braço. Apesar de tudo, ainda é possível olhar fundo dos olhos de uma pessoa e fazê-la parar.