Depois de escrever este post, quis saber de alguém que realmente conhece os alemães se a coisa era mesmo como falei. Então procurei a Frau Glaeser, que me mandou um e-mail interessantíssimo sobre a cultura alemã. Transcrevo com a autorização dela:
Oi Caminhante,
antes de conhecer “meu” alemao, eu morria de preconceito – alemaes sao frios, nao demonstram sentimentos, a língua é um horror, blablabla.
Na primeira visita, antes de casar, tive contato com alguns alemaes e me choquei com algumas coisas, como a apatia das criancinhas nos ônibus, fiquei chocada ao ver pirralhinhos de 4 anos de idade sentados, conversando baixo, como se adultos fossem. Vi um molequinho de 3 anos fechar a cara e perguntar pra mae pq eu estava acenando pra ele. E entendi menos ainda quando vi alemaes fazerem festinha pra cachorro, mas fecharem a cara pra criancinhas…
Logo no comeco do relacionamento offline com meu alemao, percebi o quanto ele ficava chateado se eu pedisse alguma coisa pra ele e nao falasse “por favor”. Pra mim era evidente que eu pedia um favor, pra ele era uma tremenda falta de educacao, como se eu estivesse dando uma ordem a ele. E percebi, em outras situacoes, o quanto um “por favor” muda as coisas. Alemao é uma língua gutural, a melodia é descendente, ao contrário do português, em que a mudanca de entonacao transforma uma ordem numa pergunta… Teste dizendo “Traz um copo de água pra mim.” e “Traz um copo de água pra mim?” em português, a entonacao faz a pergunta. Em alemao, nao. Soa igual, a nao ser que vc coloque um “Bitte” no final.
Em alemao fica muito claro o grau de intimidade entre interlocutores – existem pronomes diferentes e as regras de quando usá-los sao bem claras. Sie pra quem eu nao conheco, Du pra quem é família ou amigo do peito, ou pra quem nao liga muito pra convencoes. Interessante que criancas sao sempre Du, mas na adolescência passam a ser chamadas de Sie pelos professores na escola… Outra coisa que eu aprendi e acho muito interessante é que crianca é vista como um indivíduo, que merece respeito. Nao me lembro de ter visto adultos falando com voz diferente com criancas, ainda que pequenas. E os pais falam – e muito – com os pequenos, explicam os mais variados assuntos, em palavras simples mas nao imbecis. Já vi um telejornal para criancas, muito bem-feito, por sinal. E a Der Spiegel, maior revista daqui, tem uma versao infantil. E existem vários programas explicando o funcionamento de tudo o que se possa imaginar. Num domingo de manha vi como era fabricado o poliéster.
Por conta do respeito ao indivíduo, existe o direito a opiniao. E eu, sinceramente, precisei me acostumar a isso. As pessoas perguntam e realmente se interessam pela resposta, debatem o que concordam/discordam e, principalmente, nao se ofendem com o simples fato de vc ter uma opiniao diferente da delas. Pra quem passou a vida inteira fazendo malabarismos mentais e verbais ao ser confrontada com alguém que se ofendia com o fato de eu pensar diferente, foi um choque daqueles… Os alemaes sao beeeem diretos, o que pode ser confundido com grosseria, mas funcionam de uma maneira diferente. Se vc convidar um alemao pra ir à sua casa, ele vai ter perguntar dia e horário. E vai aparecer, ou pelo menos te avisar, com antecedência, caso nao possa. E vai se lembrar do seu aniversário, vai te mandar um email/sms/cartao/telefonar, vai te mostrar de alguma maneira que lembrou de você. E, dependendo do grau de intimidade, vai lembrar do seu aniversário de casamento, por exemplo. Ou te mandar um cartao postal a cada viagem.
Claro que sempre existe alguém sem-nocao que abusa do direito de emitir sua opiniao e fala o que nao deve. Ou de alguém que interpreta isso de maneira errada, mas, no geral, é menos complicado viver aqui. Um exemplo disso foi a festa de casamento no Brasil – convidei umas 80 pessoas, apareceram 60. Ao completar um ano de casados, fizemos uma outra festa, em Frankfurt, pros amigos alemaes que nao puderam ir. Foi uma festa super íntima, 25 pessoas. E dos convidados, apenas um nao pode ir, pq o filho pequeno tava doente e era algo contagioso. Bacana, né?
Por favor nao entenda isso como uma elegia aos alemaes, apenas o quanto me sinto aliviada por nao ter que me virar do avesso e tentar nao ofender alguém a cada meia hora…
Mais algumas coisas que admiro muito nos alemaes: a fidelidade aos princípios (isso vale pros abracadores de árvores, pros políticos, pras criancinhas escoteiras, pros membros dos clubes de carnaval, que fabricam suas fantasias e vao desfilar num frio de zero grau, só pelo prazer de desfilar), a eterna curiosidade sobre o mundo e seu funcionamento (todo telejornal tem pelo menos 30% de notícias sobre países estrangeiros, sempre; existem vários programas de ciências que mostram de maneira interessante o funcionamento de tudo o que se possa imaginar, como a eficácia de truques domésticos pro leite nao derramar ao ser fervido, p.ex.), o amor pelo debate (meu marido assiste mesa redonda de debate político fora de época de eleicao, dá pra acreditar?), mas o que eu mais admiro é o fato de saberem que seriedade nao se confunde com sisudez.
A última anotação que eu fiz (até agora) foi:
Para uma criança a cidade é um lugar sem alegrias. Mais tarde, quando se é mais velho e se está apaixonado, é a dupla visão de compartilhar que dá à experiência textura, forma e significação. Viajar sozinho é percorrer terras devastadas. Mas quando se ama o bastante, às vezes é possível ver por si mesmo e por mais alguém também. Foi assim também com Selma. Eu via tudo duplamente: a primeira neve, os patinadores deslizando no parque, os belos casacos de pele de meninos alegres e friorentos, a montanha russa em Coney Island, máquinas de chiclete nos subterrâneos, o mágico restaurante automático, as ilhas do rio e o brilho das pontes no crepúsculo, os sons de uma banda subindo no ar azul, o homem que todo dia no pátio cantava as mesmas canções foufentas e dissonantes, o conto de fadas de uma lojinha de dez cents onde se passava depois da escola para furtar coisas.
– Se você pudesse se ver através dos meus olhos, saberia a mulher linda que é.