Um absurdo

Não lembro exatamente o motivo, sei que um dia eu e o Luiz fomos almoçar no Estação num fim de semana e encontramos uma amiga. A praça de alimentação estava cheia e ficamos felizes pela oportunidade de sentar na mesa com ela e suas colegas de pós. Ajeitamos nossas bandejas e fomos todos devidamente apresentados. Eram todas da faixa dos vinte anos, com excessão de uma senhora com falsos ares aristocráticos (ou seja, uma curitiboca). Os jogos pan americanos do Rio tinham acabado de começar. Para quebrar o gelo, o assunto surgiu:

– E o Pan, hein? (sentença neutra, ótima para começar uma conversa e sentir o clima no meio de estranhos)

Antes que qualquer um falasse, a curitiboca dominou a mesa. Que era um absurdo, um desperdício. Que o Brasil era um país subdesenvolvido e não deveria se propor a fazer uma coisa dessas com tanta gente passando fome, com tantas crianças fora da escola. Que com a fortuna que aquela abertura custou, dava para construir não sei quantas casas populares. Pra minha surpresa, minha amiga se juntou às queixas, à todas as queixas. De absurdo a absurdo, ambas falaram da falta de cultura do povo brasileiro, do carnaval, do futebol e alcançaram o ápice no BBB – “um jornalista como o Pedro Bial, que cobriu a Queda do Muro, se sujeitar a fazer um programa daqueles”.

Quando elas terminaram de massacrar o mundo, o resto da mesa se olhava, atônito, e totalmente sem assunto. Eu e o Luiz fugimos, absurdados.

Palavras

Talvez a culpa seja da psicanálise, que nos fala do inconsciente, da livre-associação e do quanto o dito revela nas entrelinhas sobre o não-dito. Algumas vezes eu acho que é um erro feminino, oriundo de nossa vontade de encontrar amor em qualquer banalidade. Aí eu vejo que é um erro comum em todos aqueles que gostam de pensar estratégicamente e nos que enxergam a realidade como um jogo de influências. Da mulher apaixonada ao manipulador, há sempre uma vontade de controlar a realidade, um pensamento analítico que aumenta os fatos de tal maneira que às vezes eles se tornam irreconhecíveis. Estou falando da nossa incapacidade de ouvir as coisas tal como elas são ditas.

É como se a informação clara demais despertasse tantas suspeitas que se tornasse dúbia. Nada é exatamente daquela forma. Puxamos para melhor ou para pior de acordo com a nossa conveniência. Não existe mais literal, apenas entrelinhas; esperto daquele que sabe lê-las. Lembro que há séculos, nos tempos do ICQ, conversei no bate-papo do UOL com um “Feio”. Ele me disse que esse nickname era porque ele realmente era feio, mas as mulheres vinham falar com ele achando que era modéstia, crítica ao mundo de aparências e até que ele era lindo. Quer dizer…

Depois de fazer tudo ao contrário, de insistir numa suposição sem fundamento, um dia você olha para trás e lembra: você foi avisado, só não ouviu. Muitas vezes um charuto é apenas um charuto.

Com o pé esquerdo

É lugar comum, mas também é uma grande verdade dizer que a primeira impressão é praticamente definitiva. O problema é que nem sempre estamos preparados para a importância daquele primeiro momento. Podemos estar mal vestidos, imaturos, mal humorados, preconceituosos. Uma oportunidade de ouro pode ser jogada no lixo se não estamos preparados para ela. Quando nossa vida cruza com a de alguém, fazemos o que é possível fazer naquele momento. Não sou do tipo que maltrata velhinhos e chuta gatos, mas também nem sempre sou uma pessoa super-legal-e-disponível.

Meu irmão tinha um ex-colega de faculdade, da qual eu sempre ouvira falar. Ele escrevia bastante e tendia para a polêmica. Logo que comecei a visitar blogs, fui no dele porque era constantemente atualizado e fazia muito sucesso. Num dos posts, ele falou sobre um artista brasileiro. Eu na época trabalhava num atelier e eu e o artista em questão tínhamos um contato em comum. No blog, esse amigo do meu irmão falou um conjunto de lugares comuns, entendendo erroneamente que esse artista era um outsider, um louco, sendo que na verdade ele é pop e vende muito bem obrigado. Eu desci a lenha no post. O amigo me xingou, de maneira bem pesada e várias vezes. Por pouco não o processei. Sobrou até pro meu irmão, com quem briguei por não ter se posicionado a favor de ninguém.

Hoje eu tenho blog e sei qual é a sensação de ler um comentário ofensivo, do nada. Por mais público que seja, blog é meio como a casa da gente. Ninguém pode entrar xingando e achar que vai ser bem recebido. Eu, como mulher educada que sou, jamais xinguei um leitor. No máximo, excluí o comentário e/ou reclamei. Mesmo assim, entendo melhor a atitude dele. Hoje, ele não apenas ainda é amigo do meu irmão, como temos amigos em comum. Pessoas excelentes o adoram – sinal de que não é uma pessoa tão ruim assim. Quem sabe sem aquele post nós tivessemos nos transformado em amigos.

Exceções

No curso de sociologia eu aprendi uma expressão que adotei imediatamente, e que de certa forma resume bem o pensamento sociológico. É “a exceção que confirma a regra”.

Eu estava conversando com um amigo de longa data, que se foi meu professor de piano por alguns meses. Larguei o piano há muitos anos, pensando que voltaria numa época de vacas mais gordas e acabei deixando o assunto de lado. Nunca tive ilusões de que um dia seria uma concertista porque sabia que o tempo e minha constituição física estavam contra mim (hum, déjà vu… ). Ele quis desmentir minhas crenças:
– Tem uma velhinha que aprendeu a tocar piano aos 70, lá no leste europeu. Ela se saiu tão bem que aos 80 tornou-se uma concertista. Isso prova que qualquer um, em qualquer idade, pode começar a tocar piano e virar concertista.
– Não, isso indica justamente o contrário. Ela é a exceção que confirma a regra. É tão raro alguém que comece mais velho se tornar concertista, que uma única velhinha no mundo conseguiu esse feito. Foi tão extraordinário que a notícia correu o mundo e você está me contando essa história agora, sem nem ao menos ter certeza do país ou saber o nome dela. Alguma das velhinhas pra quem você deu aula por acaso chegou perto disso? Ou algum dos teus alunos adultos?

Assim são as exceções. Quem sabe tenha corrido por Curitiba a história de uma mulher que começou a dançar ballet com 30 e até fez umas apresentações. Posso ter simbolizado erroneamente que o ballet é para todas, de qualquer tipo físico e idade. Homens não-inseguros se queixaram de que eu não os valorizei na minha postagem. Entendo a indignação deles: as mulheres os condenam pelo comportamento que não compartilham, e entre outros homens são taxados de gays ou trouxas. Seja no piano, no ballet ou na masculinidade, regras não gostam de ser contrariadas e punem quem se afasta delas. Vida de exceção não é fácil.

Tatibitati

Na descrição, as duas parecem bem diferentes. A começar pela idade: uma tem quase sessenta e outra tem vinte e poucos. A primeira exagera porque gosta de estar sempre em movimento, enquanto a segunda é uma preguiçosa convicta, que por qualquer motivo já se queixa de dor. A primeira tem um corpão, depois de uma vida dedicada a coisas como equitação, ballet clássico, patinação artística e tênis. A segunda vive um efeito sanfona e é aquela bela mais cheinha, com seus longos e bem tratados cabelos loiros. A primeira faz artesanato e vende. A segunda faz canto, línguas, desenha, viaja e vários prazeres que ser casada com um marido abonado e generoso consegue garantir. O que elas têm em comum? Ambas falam como se tivessem cinco aninhos.

O modo de falar não é nada e é tudo. Se uma voz não nos diz nada, apenas a registramos como a voz de fulano. Mas quando uma voz nos chama atenção, é impossível não reagir a isso. Quantas pessoas nos pareciam belas e tudo desmoronou quando a ouvimos falar. Ou outras cujo modo de falar ou sotaque interessante é a metade do seu charme. Nesse caso – das duas mulheres com voz de criança – as vozes as deixam impopulares. Parecem pedir constantemente um colo e uma atenção que ninguém está disposto a dar. Denunciam um desejo, uma atitude, uma inadequação. Quem brincará ou quem cuidará dessas mulheres crianças? Eu é que não. Se quisesse filhas, geraria as minhas. Há no mundo necessidades demais e colo de menos.

Masculinidade

Quando a gente diz para um homem que eles gostam de mulheres burras, ele nega veementemente. Dirá que nunca gostou de mulheres burras, que só quer a seu lado mulheres cultas e inteligentes. Mas todas as mulheres cultas e inteligentes sabem que isso não é exatamente verdade. Os homens não gostam de mulheres tão burras que os façam passar vergonha; mas também não querem mulheres tão cultas e inteligentes a ponto de eles começarem a pensar que não são os gênios da relação. Ou seja, a mulher deve ser culta e inteligente – mas menos do que ele.

E assim é com quase tudo. O segredo é que enquanto nós mulheres somos capazes de (e até desejamos) olhar para um homem com admiração, os homens não gostam de se sentir inseguros ao lado de suas mulheres. Não gostam que elas sejam mais engraçadas do que eles, e sim que riam de suas piadas*. Não gostam que elas tenham um passado sexual mais variado do que o deles, e usam como desculpa que esse tipo de mulher não é confiável. As qualidades desejáveis numa mulher são as mesmas de um absorvente: fininha, discreta, flexível, protetora, adaptável, suave. Não podemos ganhar mais, ter mais amigos, ser mais populares ou ocupadas. As únicas coisas que podemos ser nitidamente melhores são nas ocupações tipicamente femininas, sendo o Ser Bela a mais importante delas. Eles não se sentem mais no direito de nos cobrar valores antiquados de recato e exclusividade, mas quanto mais nos aproximamos disso espontaneamente melhor.

Uma senhora muito vivida uma vez quis me dar um conselho, porque sabia que eu estava com problemas pra desencalhar. Ela me falou com uma franqueza que na época eu não entendi e não gostei. Hoje entendo o significado mais profundo daquelas palavras:

O seu problema é ser inteligente demais. Homens não gostam de mulheres tão inteligentes. Quando conhecer um homem, se faça de burra. Deixe ele pensar que sabe mais do que você, que ele é melhor do que você. Com o tempo, quando ele já estiver apaixonado, deixe ele descobrir a verdade aos poucos.

De outra forma, o que eu ouvi de um homem cuja namorada estava prestes a abandonar família e emprego no Rio para viver com ele:

Eu te amo, você é uma mulher incrível. Você tem qualidades muito mais admiráveis do que a Paty. Mas é com ela que eu vou me casar porque daria mais certo. Porque eu sei que se eu um dia chegasse de mau humor e começasse descontar em você, você responderia no mesmo tom. Já a Paty é do tipo que fica quieta, que engole as ofensas…

* Saiu uma pesquisa que dizia isso, anos atrás. Claro que não achei o link de jeito nenhum.

Ópera

Uma vez um li um texto muito bom, que falava de uma método infalível pra saber se os alunos gostavam de ler. Bastava pedir a eles pra desenvolverem o tema “porquê ler”. Se eles falassem que a leitura enriquece o vocabulário, nos coloca em contato com grandes nomes da literatura, ajuda a pessoa a se expressar por escrito, seriam todas respostas válidas… e todas de pessoas que não gostam de ler. Porque quem lê o faz por dá prazer, sem nenhum motivo nobre por detrás disso. O resto vem como consequência.

Do mesmo modo, não sei dizer porque gosto de ópera. Se for contar com influência familiar, nem de música clássica eu deveria gostar. Não conheço outra família como a minha: ninguém canta, ninguém toca, ninguém representa, ninguém pinta. No máximo, temos arquitetos. Desde muito cedo me apaixonei por piano e tocava quando tinha bolsa, durante a faculdade. (claro que com uma família dessas, ninguém tem piano em casa e nem fazia questão de me ajudar) Na época ganhei de um professor de canto um CD da Jessye Norman novinha e o ouvia esporadicamente. No ano retrasado me deu a louca de comprar uma coletânea da Maria Callas e fui fisgada. Foi instantaneo, fulminante. De lá pra cá, Maria Callas e eu nos tornamos grandes amigas, dessas que precisam uma da outra toda semana. Ela faz parte da minha vida.

Sou inculta – conheço apenas os interpretes mais pop, sei vagamente o enredo das principais óperas. Não ligo e acho que faz parte do processo descobrir essas coisas aos poucos, à medida em que as oportunidades aparecerem ou amigos me mostrarem algo bonito. Como o fez a Tina Lopes, involuntariamente, ao colocar no blog a mesma Jessye Norman (muito melhor com os anos) interpretando Carmen. Com a ópera, meu universo ficou maior, meu coração descobriu uma cosquinha nova. Hoje, ao voltar pra casa, tenho mais uma fonte de prazer. Muitos nem desconfiam, mas a grande graça da cultura é o que ela tem de mais solitário.

Caminhante´s weekend

Caminhante´s Weekend é uma série e eventos comemorativos que acontecem todo mês de junho e marcam o dia mais importante do ano, que é o aniversário da Caminhante Diurno, vulgo eu. São dias de fogos, felicidades, união. Preparo aqui um pequeno guia para cada um saber como aproveitar melhor essa data especial:

O que fazer?

Como ninguém fica feliz trabalhando, no dias 12 a grande maioria das pessoas receberá folga, com excessão para prestadores de serviço. No dia 13, as folgas seriam ampliadas. Então, aproveite para ir a restaurantes, levar o cachorro pra passear, visitar lojas de sapatos, etc. Esteja atento apenas à necessidade de fazer reserva, porque todos sairão às ruas para comemorar o Caminhante´s weekend e movimentar a economia.

O que vestir?

Se você estiver no sul, casacos são essenciais. Este ano, as lojas foram orientadas a investir muito nas cores amarelo – que representa riqueza e durante muitos anos foi Caminhante´s Colour – e o verde – o verde porque deu na telha. Sugiro que você se vista de amarelo e verde para demonstrar toda sua felicidade. Acredito que você não terá dificuldades em achar acessórios assim para vender.

O que ouvir?

O ideal seria ouvir uma bela ópera, para engrandecer o espírito e estar totalmente de acordo com o que a própria Caminhante tem ouvido. Mas, como nem todos têm o privilégio do bom gosto, liberamos uma musiquinha aí com uma cantora aí. O clipe foi aprovado só porque ela dança bem, mas na verdade a Caminhante nunca conseguiu passar do primeiro minuto do clipe:

É de bom tom presentear?

Sim, é. Seria muito bom você presentear este blog que te enche de alegrias o ano inteiro e nunca te pede nada em troca. Cada um pode dar o que tiver no seu coração: produtos Vudu de Pano, Melissinhas, camisetas transadas, CDs de música erudita, mão-de-obra escrava, etc. Como sabemos que nada disso vai acontecer (humpf!), presenteie uma pessoa sexualmente atraente que você confia e admira. Mas, por favor, nada de fazer sessão porn, salvem os vizinhos!

O que comer?

Temos o mais que maravilhoso pinhão e todos os pratos maravilhosos feitos com ele. Aqui em Curitiba há tacos e empanadas da Feirinha Gastronomica. Igualmente versátil, é recomedável qualquer produto derivado do milho verde. Você sentirá uma vontade irresistível de comer pipoca. Para os mais sofisticados, pratos indianos. Tudo, claro, acompanhado de Matte Leão, sabores natural ou limão, vulgo A Bebida dos Deuses.

Devidamente instruidos, bom Caminhante´s Weekend para todos e tem post novo na segunda!

Deixe em paz meu coração

É difícil saber a hora de mudar. Por mais que seja doloroso ver gente totalmente fora de forma e de propósito persistir num caminho que lhe trouxe alegrias, também é muito difícil saber o momento de ir embora. Não dá vontade de fazer no auge… e como saber que o ficar mais um pouco está se transformando em ridículo, em decadência? Lembro d´O Lutador, do Mickey Rourke e do quanto me emocionei com ele. Eu sei o que é se dedicar a algo por amor, contra tudo o que parece sensato para quem está de fora.

 

Se chamamos de anjos aqueles amigos que nos ajudam a encontrar o caminho certo, o que dizer daqueles que nos expulsam do caminho errado? Assim como alguns nos estimulam, outros nos levam a desafios maiores com seu desdém, por não confiar no que fazemos, por encherem nosso caminho de pedras. Sentimos ódio… e decidimos fazer mais, nem que seja só pra ver a cara da outra pessoa cair ou só pra provar que ela não nos derruba. Vestimos uma armadura toda manhã, nos conformamos com um ambiente que nos trata com frieza, ficamos sós. Quando finalmente a batalha termina, descobrimos que foi melhor assim. Que éramos maltratados por nossas qualidades e nosso destino estava em outro lugar.

 

Eu que amava apaixonadamente o ballet, hoje não consigo nem olhar. Faço questão de não ir a qualquer espetáculo, não vejo mais videos. Tenho mau estar, péssimas lembranças, coisas entaladas. Fico feliz cada vez que passo por certos lugares e não cruzo com certas pessoas. Ainda não consegui me recuperar da idéia de que eu sou “gorda pra palco”. Só agora, tantos meses depois, tirei a meia calça rosa do fundo do armário – só porque está frio e não tinha outra. O ballet mudou minha vida e sei que pego as coisas rápido no flamenco é por causa desse… passado? Apesar da mudança ter sido tão positiva, não sei se um dia deixarei de sentir mágoa daquela acabou com meu amor pelo ballet.

Meu Krishna

Eu nem posso dizer que as coisas estavam de mal a pior porque nosso namoro sempre foi nesse clima. Ele estava indo pro Ashram de Sai Baba, uma viagem que na época me parecia fabulosa. Nós dois éramos místicos, ele de uma linha ligada à magia e eu à teosofia e à yoga. Ele iria na fonte! Por ele ser meu namorado, eu tinha direito a pedir alguma coisa da Índia, qualquer coisa. Pedi para que ele me trouxesse um Krishna tocando flauta. Ele já tinha me dado um Ganesha de bronze. De todas as imagens de deuses indianos, era a de Krishna adolescente a minha preferida. Nem era por qualquer doutrina; gostava de desenhá-la, achava bonita, só isso. Por algum motivo, nunca a encontrava à venda; ou encontrava Krishna com as Gopis, ou criança, ou fazendo qualquer outra coisa que não tocar flauta. Eu queria um simples Krishna tocando flauta.

 

Quando ele voltou a Índia tudo aconteceu muito rápido. Ele me acusou de ter ficado com inveja da viagem, me acusou de tê-lo traído, me acusou de várias outras coisas e brigamos à exaustão. Depois de uma semana de brigas diárias, acabou. Mas ainda havia alguns detalhes burocráticos pra acertar, duas peças dele que estavam comigo e…

– Tenho que entregar o Krishna que você me pediu.

Eu não quis. Só o tom de ódio com que a frase foi dita já era mais uma acusação. Recusei, ele não era mais meu namorado, não era mais nada meu. Ele insistiu, disse que não tinha o que fazer com aquilo, que comprou só por minha causa. Eu disse para fazer o que quisesse, porque eu não iria aceitar. Eu não tinha nada a ver com aquele Krishna.

 

Mais de dez anos depois, casada e não mais mística, entro numa loja pra comprar um anjinho de presente pra uma amiga. Olho pra uma prateleira e dou de cara com um Krishna tocando flauta. Bem do jeitinho que eu sempre quis, lindo. Baratinho e acessível também. Sorri e me dei ele de presente. Depois de tanto tempo, finalmente meu Krishna chegou.

Mais complexo e mais caro

Eu sempre acreditei nas receitinhas caseiras e tenho muitos livros da Sonia Hirsch. O emplastro de inhame dela tem feito milagres pela minha pele, que de uns tempos pra cá tinha passado a ter espinhas perpétuas sempre na mesma região do rosto. Antigamente eu passaria essa receita pra todo mundo, pra dividir com as pessoas como algo simples e barato pode ajudar. Hoje não faço mais, só falo se me pedem claramente. Porque eu cansei de ser olhada com desdém, como A Pobre ou A Crédula porque gosto de soluções simples. Imagine se uma batata vai cuidar melhor da minha pele do que um tratamento estético carésimo numa clínica de dermatologia…

 

E isso é com tudo. Já recomendei profissionais ótimos, mas que foram desprezados porque são pessoas comuns. Cobram um preço justo por uma consulta e fazem o trabalho deles. Pra esses profissionais, as pessoas acham muito custoso ir – agora, pra um que atende no bairro mais chique da cidade, ou que se diz mensageiro de mestres anões orientais, as pessoas se propõem a pagar fortunas. Ler um livro, fazer em casa ou julgar através do bom senso é simples demais. Parece que as pessoas só sentem confiança naquilo destrói o orçamento familiar e envolve muitas etapas incompreensíveis. Como tratamento, substâncias tão desconhecidas quanto caras. Isso sem falar na pitada de humilhação, pra conseguir finalmente chegar perto do profissional/mago.

 

E depois é a religião que tem culpa de tudo, pff.

Lágrimas contidas

Nós tínhamos uma amizade virtual intensa. Todos sabiam o quanto éramos próximos. Era tudo muito público, já que ele raramente entrava no MSN. Uma amizade baseada em bom humor, ironias, comentários ácidos. Um dia surgiu a oportunidade imperdível de viajar, me hospedar, fazer turismo, conhecer vários amigos virtuais e ele também. Mas tinha que ser pra já, em poucos dias, como se fosse um portal prestes a se fechar. Conversando com vários outros amigos, consegui, aos trancos e barrancos. Viajei com as maiores expectativas e quase todas se cumpriram. O único senão foi que meu amigo começou a agir de maneira estranha assim que soube que eu iria. Que não dava, que não era possível, que não deixaria – ele começou a me cortar, como se eu fosse uma fã invasiva. No encontro que achei que seria o de grandes amigos que se adoram, encontrei uma pessoa que me tratou com indiferença e mal me dirigiu a palavra. As horas passaram lentas. Quem estava presente achou o comportamento dele comigo “inexplicavel”. Para mim, era como se a cadeira onde eu estava ficasse cada vez maior, até me engolir. Voltamos juntos no taxi, em silêncio. Fiquei olhando para a janela, disfarçando os olhos úmidos. Fiz tanta força para não chorar na frente dele que não consegui nem depois.

 

Pela primeira vez vivia a adrenalina da montagem de um grande espetáculo. Todos faziamos o mesmo papel, e no espetáculo haveria uma única solista. Era o papel de autoridade máxima. A coreografa fazia questão de não nos dizer nada. O tempo passava, as especulações aumentavam e não se falava de outra coisa pelos corredores. Tentavamos encontrar sinais nos mínimos gestos, em cada mudança. A outra turma – que tinha outro espetáculo e outra coreografa – soube que o meu nome era um dos cotados para o papel principal. Com o espetáculo quase pronto, quando não era mais possível segurar a informação, nossa coreografa revelou um nome que não era o meu. Era justamente a que eu pessoa que eu considerava mais merecedora, fiquei feliz por ela. Mas entusiasmada com a comoção que criou, a coreografa pediu pra saber que nomes eram suspeitos pela turma. O meu não foi citado e ela fingiu que não pensou em mim. Pra compensar, passou o dia me elogiando. E eu que gostava tanto dela! Passei a dar longas voltas, para chegar apenas em cima da hora. Evitava as pessoas, sentava longe. Um dia eu estava olhando pela janela e ela se aproximou furtivamente. Perguntou em tom de brincadeira o que é que eu tinha. Senti um nó na garganta e antes que as lágrimas me sufocassem, respondi com rudeza: “nada”.

Empata feriado

Passei alguns anos numa turma de ballet só para adultos que nunca chegava a ter mais de dez alunos. Fiz muitas aulas de personal ballet, porque chegava lá e ninguém mais tinha vindo. Por causa disso, sempre que um feriado se aproximava, os professores nos perguntavam com uma certa antecedência quem ia viajar. Porque se não viesse ninguém, eles não se dariam ao trabalho de vir – e poderiam viajar também. Sempre um ou outro dizia que estaria fora, que pra ele tudo bem… e eu era sempre a que nunca viajava. Com o tempo comecei a me sentir a Empata Feriado, a que obrigava a escola a abrir só pra ela.

 

Vendo tantos blogs silenciosos, me sinto de novo aquela que nunca viaja. Poderia inventar algumas desculpas, dizer que gosto de viajar fora de temporada, que é o Luiz que não recebe folga e etc. Mas a verdade é que eu costumo me afastar pouco da minha casa. (suspiro)

Diga-me com quem andas

Tenho mais de um amigo gay, assim como tenho mais de um amigo crente. Mais de um amigo ateu, mais de um amigo místico. Amigos antenados e amigos que só tem vagas notícias do mundo exterior; nerds e aqueles que nem sabem ligar o computador. Adolescentes, vegetarianos, mães, doutores, bailarinos, boemios, artistas… Com tanta gente diferente, aprendi que todo radical só viveu entre pessoas que pensam como ele. De intelectuais a bissexuais, sempre existe a possibilidade de viver num gueto. Esse tipo pode dizer que não sentaria na mesma mesa que um gay porque nunca chegou perto disso (ou fez várias vezes e nem ficou sabendo). O preconceito deles não foi colocado à prova, nunca se viram simpatizando com alguém “errado”. Aí começam a achar que as escolhas no colchão, na roupa, na comida ou no livro definem quem a pessoa é. Porque ouviu falar, viu nos jornais. Como se dar o cu tivesse a ver com caráter e cor da pele com cultura; como se cuidados com o corpo atrofiassem a mente, ou que relação com o divino revelasse como alguém trata o vizinho.

Quando eu vejo alguém radicalmente-qualquer-coisa, digo: é assim porque pode.