Júlio Cortázar, La vuelta aluno día en ochenta mundos
Ninguém pode duv
idar de que as coisas recaem. Um senhor adoece, de repente numa quarta-feira recai. Um lápis na mesa recai seguido. As mulheres, como recaem! Teoricamente não ocorreria a nada ou a ninguém recair, mas dá na mesma, está sujeito a isso, principalmente porque recai sem consciência, recai como se nunca antes. Um jasmim, para dar um exemplo perfumado. Essa brancura, de onde vem sua penosa amizade com o amarelo? O simples permanecer é recaída: o jasmim, então. E não fa
lemos das palavras, essas recaientes deploráveis, nem dos bolinhos de chuva frios, que são a recaída em pessoa.
Contra o que acontece se impõe pacientemente a reabilitação. Nos mais recaídos sempre há algo que luta por se reabilitar, no cogumelo p
isoteado, no relógio sem corda, nos poemas de Pérez, em Pérez. Todo recaiente já tem em si um reabilitante, mas o problema, para nós que pensamos nossa vida, é confuso e quase infinito. Um caracol segrega e uma nuvem aspira; certamente recairão, mas uma compensação alheia a eles os reabilita, os faz subir pouco a pouco ao melhor de si mesmos antes da recaída inevitável. Mas nós, tia, como faremos? Como nos daremos conta de que recaímos se pela manhã estávamos tão bem, tão café com leite, e não podemos medir até onde recaímos durante o sono ou o banho? E se suspeitamos do reacaiente de nosso estado, como nos reabilitaremos? Há os que recaem ao chegar ao topo de uma montanha, ao term
inar sua obra-prima, ao se barbear sem um cortezinho; nem toda recaída é de cima pra baixo, porque em cima e embaixo não quer dizer grande coisa quando já não se sabe onde se está. Provavelmente Ícaro acreditava tocar o céu quando afundou no mar epônimo, e Deus te livre de um mergulho tão ma
l calculado. Tia, como nos reabilitaremos?
Há quem tenha afirmado que a reabilitação só é possível se alterando, mas esqueceu que toda recaída é uma desalteração, uma volta ao barro da culpa. O melhor que somos, somos porque nos alteramos, porque saímos do barro em busca da fe
licidade e da consciência e dos pés limpos. Um recaiente é então um desalterante, de onde se deduz que ninguém se reabilita sem se alterar. Mas pretender a reabilitação se alterando é uma triste redundância: nossa condição é a recaída e a desalteração, e eu acho que um recaiente deveria se reabilitar de outra maneira, que por sinal ignoro. Não apenas ignoro isso como jamais soube em que momento minha tia ou eu recaímos. Com o nos reabilitar, então, se talvez não recaímos e a reabil
itação nos encontra já reabilitados? Tia, não será essa a resposta, agora que penso? Vamos fazer uma coisa: você se reabilita e eu a observo. Vários dias seguidos, digamos uma reabilitação contínua, você está o tempo todo se reabilitando e eu a observo. Ou o contrário, se prefere, mas eu gostaria que você começasse, porque sou modesto e bom observador. Dessa maneira, se eu recaio nos intervalos de minha reabilitação, enquanto você não dá tempo à recaída e se reabilita como num filme ininterrupto, em pouco nossa diferença será enorme, você estará tão por cima que será uma beleza. Então eu saberei que o sistema funcionou e começarei a me reab
ilitar furiosamente, porei o despertador para as três da madrugada, suspenderei minha vida conjugal e as demais recaídas que conheço para que só fiquem as que não conheço, e vai ver que pouco a pouco um dia estaremos outra vez juntos, tia, e será tão bonito dizer: “Agora vamos ao centro e compraremos um sorvete, o meu de morango e o seu com chocolate e um
biscoitinho”.