Truques, dicas e quebra galhos

Nós tínhamos um livro em casa, que se não me engano se chamava “Truque, dicas e quebra galhos” e hoje acho que ele era mais prejudicial do que uma ajuda para nós, crianças. Nós nunca fazíamos o óbvio, íamos direto para a dica. Lembro de um dia que meu irmão veio até mim pedindo ajuda, desesperado, e dizendo que ele era “muito burro”. Ele me levou até o sofá da sala, um três lugares que fazia par com outras duas poltronas, e que naquela ocasião estava bege – ao longo dos anos, ele mudou de tecido várias vezes. No canto, quase para fora da almofada, havia uma mancha escura de uns 15 cm.

-Eu estava sentado e quando levantei, havia derramado cola no sofá – meu irmão me explicou-, então decidi pegar o livro de dicas para saber como tirava a cola do tecido. Dizia que era para colocar óleo. Então eu peguei a lata de óleo e ia colocar só um pouquinho, mas quando inclinei…

Apelamos de novo pro livro, agora procurando dicas para mancha de óleo, mas nada tirou aquela mancha dali. Eu e me irmão passamos semanas cobrindo a mancha com almofadas e escolhendo sentar bem naquele canto por qualquer motivo. Até que o inevitável aconteceu e minha mãe descobriu.

.oOo.

Fui doar sangue há poucos dias e, enquanto me atendia, a enfermeira derramou um pouco de sangue na própria roupa. Ela imediatamente pegou um líquido e jogou em cima. O que é isso, tive que perguntar. “Água oxigenada”. Ela ferve o sangue da roupa igualzinho faz no machucado. Cortei o dedo e tive a chance de aplicar a dica, porque pinguei sangue por tudo. Quem me dera ter sabido disso na adolescência, no tanto de vezes que manchei os lugares por onde sentava ou deitava com vazamentos. A dica, truque e quebra galho que eu conhecia antes era maisena, que absorve. Mas acho que ambas dicas só servem para assim que o acidente acontece.

.oOo.

Um dia estava lavando uma calça de um jeans molenga, e ele já estava naquele estado de amassar só de olhar, ou seja, o tecido já gasto de uso. Me veio lembranças antigas à mente: éramos aqueles parentes ajudados pela família. Por sorte, tenho muitas primas, então de vez em quando chegava um saco de roupas usadas para mim. Muitas vezes, esses sacos tinham roupas muito usadas, no estado de amassado semi permanente. Lembro da minha avó falando “é só colocar uma goma”, e minha mãe respondendo “é claro”. Só que, ao chegar em casa, nunca rolava a tal da goma e eu usava do jeito roupa velha mesmo.

Eram outros tempos, agora existe o Google! Fui pesquisar o que é a tal da goma, se é uma marca, se é de passar, se é de enxaguar… Quando li o que era, não pude deixar de rir. Tantos anos desejando o tal produto que disfarçaria a idade das roupas e era só colocar um pouco de maisena na água com as roupas de molho.

Este post é quase um publi, né?

Uma história sobre cabelo

Terapias ou trabalhos de auto-conhecimento, em geral, são muito impactantes no começo, nos primeiros passos. É assim que deve ser, porque é a fase dos maiores fantasmas e mais lixo para se jogar fora. Mas quando você se torna uma pessoa “terapeutizada”, que já praticou várias disciplinas, e se analisa constantemente por isso ter se tornado sua própria forma de ser, fica cada vez mais difícil perceber progressos. Eu tendo a achar que não estou indo a lugar nenhum e tenho as minhas disciplinas porque gosto de fazer. Há poucas semanas eu senti algo que vai parecer muito banal: eu me olhei no espelho e gostei do meu cabelo. Deixa eu dizer que eu não lembro a última vez que senti isso. Talvez, antes da adolescência.

Eu comecei a cortar o meu cabelo curto com quinze anos. Ameacei raspar várias vezes, o corte que eu mais tive era cortado à máquina. Em um mês o meu cabelo me irritava e queria cortar de novo. Ter cabelo me irritava. Sim, é difícil explicar, mas a ideia de ter cabelo me irritava, eu só queria me livrar dele, não ter que me preocupar com ele. Quando as pessoas diziam que ele é bonito, eu nunca entendi e nem acreditei. Quando eu era nova, eu achava que não gostava dele ser quase-preto e muito liso; mais velha, quando parei de pintar, comecei a achar que eu não gostava porque ele está grisalho. As pessoas elogiando o grisalho, me achando quase um símbolo, e eu me sentindo feia. Aí tinha que manter muito curto porque está grisalho. Feio porque muito liso e quase-preto, agora eu só não gostava porque era cabelo de velha. Eu sei, é difícil entender.

Quando e o quê mudou? Quando e o quê é capaz de mover uma ferida emocional? Sempre penso em borboletas, que têm a vida muito curta, e que somos tão curtos quanto. Se uma borboleta nasce com uma asa meio dobrada, com a vida tão curta que ela tem, será que vai dar tempo da asa desdobrar? Eu não sei se eu fiz alguma coisa ou se já estava programado dentro de mim que chegaria um dia que, seja lá o que o cabelo estava simbolizando para mim, iria ser curado silenciosamente.

Descobri que, ao contrário do que pensei a vida inteira, meu cabelo não é terrivelmente liso e sim que faz uns cachinhos simpáticos nas pontas. “Deixa assim”, começaram a dizer. Foi me dando uma sensação estranha de gostar de passar a mão na cabeça, dos desenhos dele em volta do meu rosto. O grisalho, misturado com o preto, me deixou como se tivesse luzes, como se eu fosse meio loira. Parei na frente do espelho, puxei pro lado, olhei meio de perfil e tive que assumir pra mim mesma que estava gostando, não queria mais que estivesse muito curto e nem que sumisse.

Procuro dentro de mim essa sensação de prazer antes. Lembro de ter uns 10 anos e de ter tomado banho no banheiro do meu pai e parar na frente do espelho e dizer que queria meu cabelo daquele jeito, todo para trás. Que eu preferia ele quando úmido, ele secava e não era a mesma sensação. As outras lembranças estão revestidas de uma falsa indiferença que me faz adivinhar que elas são parte do problema: a adoração de todos ao meu cabelo em Salvador, de meu cabelo chamar atenção, de ficarem impressionados do quanto ele era “bom”. O susto de um dia estar de pé com outras crianças e sentir pegarem no meu cabelo pela nuca e erguerem. Era um menino que era mau elemento e ele falou com o rosto muito perto do meu que o meu cabelo era lindo. Eu não entendi a expressão com que ele me olhou; meu irmão mais velho, que era também mau elemento, viu a cena e me falou muito seriamente para eu voltar para casa, que ficar ali não era bom pra mim.

Em Curitiba, nos dois últimos anos que passei em colégio particular, comecei a sofrer bullying. Os nossos lugares eram fixos por ordem de chamada, alternando meninos e meninas. Os meninos que sentavam atrás de mim começaram a me chamar de índia. Não era o que eles diziam em si, e sim a forma como faziam: lembro do riso maldoso cada vez que eu passava, os olhares procurando minha expressão insegura, de falarem que eu era igual as indiazinhas que mostravam nos documentários. De ficarem repetindo aquilo sem parar, porque o fato de eu ficar com vontade de chorar fez com que o apelido pegasse. Eles sentavam atrás de mim e não dava pra fugir e nem trocar de lugar. Tentei pedir ajuda pros professores, mas eles pareciam querer uma denúncia formal, que eu não tive coragem de fazer. No ano seguinte, eles estavam lá de novo, me perseguindo com o apelido. Eu era apaixonadinha por um colega e, quando vi, ele se juntou aos outros meninos e ficava rindo de mim também.

Eu nunca pensei em mim como alguém que foi afetada por apelido de colégio, ou que valorizarem tanto o meu cabelo de branca (porque é isso o que a expressão “cabelo bom” quer dizer) me incomodasse. Mais do que isso: estabelecer uma relação causal entre esses dois fatos e passar quase a vida inteira brigando com meu cabelo me desgosta. Acho exagerado, infantil, não sei. Fico querendo pensar num episódio mais chocante, num trauma bloqueado, ou uma explicação fantástica do tipo ser um alien de uma civilização avançada sem cabelos. O fato é que me afetou, que engoli em forma de ódio a mim mesma um não saber com a maldade dirigida a mim. Fico triste pela minha fragilidade que não assumi nem a mim mesma, da dor imensa que foram aqueles apelidos e que nunca mais quis lembrar. Que meia dúzia de crianças e admirações esquisitas possam ter gerado feridas de trinta anos.

Eu só consigo pensar: a gente é tão borboleta, a gente é tão bichinho assustado, a gente precisa muito muito muito mais conseguir se abraçar por dentro.

Deixando de ser leitor Médio e virando Difícil

Já são tão poucos os que gostam de ler a ponto de estarem sempre com algum livro começado, que a nossa vontade é de dar um abraço e cobrir de louros todos aqueles que leem. Mas venho aqui admitir que eu acho que é possível “escalar” como leitor e fico aborrecida quando percebo que muitos não o fazem. Uma pequena historinha para ilustrar esse ponto:

Na minha casa sempre havia palavras cruzadas. Minha mãe fazia as Difícil e comprava as Médio para as crianças. Eu devia ter uns 13 anos quando ela não comprou a Médio. Eu primeiro achei que ela não havia comprado pra mim, depois ela disse que era pra eu fazer a Difícil mesmo. Mas, eu, fazendo a Difícil? A resposta dela foi algo como “por que não” e “até quando você vai ser Médio”. Eu era escolarizada, lia e escrevia bem, achei que fazia sentido. Claro que meu desempenho fazendo Difícil não era tão bom quanto Médio, mas fiquei muito feliz de ter sido “promovida”. Nunca mais quis a Médio.

Eu fico meio impaciente quando vejo que as pessoas se propõem a ler eternamente os livros fáceis. Tem aqueles nomes famosos – Shakespeare, Borges e Knausgard são de comer? – que ficam numa prateleira distante, dos livros “importantes” que só os super cultos discutem… por que não ir lá pegar? Nem que seja só pra se exibir, pra sentir um sono danado porque a linguagem é difícil, pra poder entrar numa discussão podendo bater no peito e dizer que realmente leu. É como quem gosta de vinho docinho provar um dos caros, é como quem ouve música pop ver qual é a graça do tal do rock progressivo, reservar um dia pra a fazer uma receita bem complicada e não só arroz puro. A gente amplia os horizontes quando se arrisca, descobre coisas que nunca imaginaria sozinho, sutiliza os próprios sentidos. Em Shakespeare está um monte de frases que a gente ouve por aí e parece que nasceram junto com o mundo, Borges leva a imaginação e questões existenciais para caminhos inimagináveis, o Knausgaard é capaz de te fazer sentir que está andando na rua com ele. Se você gosta de ler os livros simples, posso garantir que existem prazeres ainda maiores no mundo, drogas ainda mais potentes.

Você não pode arriscar agora, não sabe de nada agora, não é culto o suficiente agora, vai ter condições de ler um livrão depois de quando?

A Dúnia original

Quem tem idade o suficiente pra isso, sabe que a moda de colocar o nome nos filhos de Enzo, um nome que nem existia porque o original era Lorenzo, tem início bem definido. O primeiro Enzo é o filho da Claudia Raia com o Edson Celulari. Do mesmo modo que Sasha começou a ser um nome feminino com a filha da Xuxa. Eu conhecia um Sasha na minha infância, era de uma família alemã vivendo em Salvador, e sempre penso nele. Imagina o transtorno que se tornou se chamar Sasha, um nome que sempre foi masculino até 1998 – e continua sendo, só que fora do Brasil.

Quando a Dúnia já estava bem velhinha, eu tive a sorte de que abriu uma pet na mesma quadra da minha casa. A porta mal abriu no primeiro dia, a moça trabalhando sozinha, ainda sem placa na frente, e eu já estava lá pra marcar banho. O banho era o grande luxo da Dúnia, porque ela tinha um pêlo muito grosso, impossível de lavar e secar em casa. Os banhos dela levavam 3 horas na mão dos profissionais, então imagina como seria se eu tentasse em casa.

Por isso, de certa forma, eu fui uma das clientes que apoiou a pet, que cresceu muito rápido. Até que um dia, uns dois anos depois de abertos e já bem concorridos, eu liguei para marcar um banho e me achei bem íntima, disse que era para a Dúnia. A funcionária quis saber “que Dúnia”, qual era o meu nome. Ora, que Dúnia, a Dúnia!

“É porque tenho quatro Dúnias registradas na agenda”.

Eu não resisti e comentei que, se hoje existiam tantas Dúnias na cidade, sem dúvida era por causa do meu blog, que estava a dez anos informando as pessoas que eu tinha uma cadela vira-lata muito amada e que se chamava Dúnia. Concordaram comigo com aquela expressão clara de quem está dizendo para si mesmo: alá, a louca.

Há umas semanas eu ouvi no podcast a história da procura pelo Ernesto, e apenas quando eles colocaram o contexto histórico eu entendi porque os blogs e seus comentários um dia foram muito importantes e hoje não são mais. Como tudo na vida e tudo na internet, foi uma janela de tempo, que deu uma importância tremenda a algumas coisas, que depois perderam totalmente a relevância. Se eu me propusesse a fazer uma coletânea mais de dez anos da minha rotina de pessoa anônima, ninguém gostaria de publicar porque ninguém se interessaria em ler. Mas, foi isso o que eu e outros blogueiros fizemos. Aí diziam: os textos são muito bons, tem que ter uma coletânea. Conheço blogs que fizeram tomos de vários posts, porque a gente realmente se entusiasmava com eles. Pasmem, eu cheguei a fazer uma coletânea, selecionei aqueles que eu achava os melhores textos: Prazo Expirado.

Não tenho mais ilusões a respeito da permanência dos textos. Eu acho que é como ter uma coleção de fotos, que nos parecem tão caras, e depois que você morre alguém joga aquela caixa inteira fora, sem culpa. Quer dizer, era assim, hoje é ainda pior, basta deletar. Talvez meu legado seja ter aumentado a população de Dúnias no mundo. Dúnia, aliás, que é o apelido do nome Avdótia. Dúnia era a irmão do Raskólnikov, o protagonista de Crime e Castigo. Pronto, agora dá pra explicar de maneira mais erudita a origem do nome, porque o nome da Dúnia original não foi inventado do nada por mim.

O lançamento do livro!

Foi muito legal!

Pra mim essa história de lançar livro sempre me pareceu tão assustadora quando dar uma festa. Então optei por colar meu lançamento com o Encontro de Arte do Perla Flamenca, assim as pessoas teriam muito mais para ver e se divertir do que apenas Euzinha. Esta foi a minha fala. Já vou avisar: não está cortado, eu não li trecho do livro! Desculpem ser do contra, é que eu achei que seria mais interessante contar os antecedentes.

Quedê livro? Aqui!

Pré venda do meu livro – finalmente este dia chegou

Com mais de duzentas páginas, meu sonho de publicar finalmente é uma realidade.

Como pessoa tímida que sou, colei o lançamento a um evento do Perla Flamenca, que realiza a cada bimestre um Encontro de Arte. Quem for conhecerá um pouco da cultura do flamenco, ouvirá canto e música ao vivo, verá uma apresentação de dança e me ouvirá ler pela primeira vez no universo um trecho do meu livro. Precisa reservar lugar, então entrem no Instagram @perlaflamenca.

O tal brinde artesanal é uma cobra feita de chita, inventada e costurada por mim. Desenrolada, ela tem cerca de 50cm. 🙂

Pessoas de outra cidade ou que de alguma forma precisarão do envio pelo correio: a forma mais econômica é o Registro Módico, mas ele só aceita livro dentro do envelope. Pensei em algumas alternativas:

  • Envio o livro pelo Registro Módico e guardo a cobra pra um dia que você possa vir, eu vou, alguém vem;
  • Envio o livro junto com a cobra por PAC;
  • Envio o livro pelo Registro Módico com um trucão, uma capa ou um marcador feito de tecido.

Cada um com as suas prioridades de lembrancinha e frete, por isso tratarei cada caso individualmente. Vai pensando aí.

Uma ambição

Eu cresci vendo as entrevistas do Jô Soares Onze e Meia e essa minha ambição foi crescendo imperceptivelmente ao longo dos anos por causa disso. Não, eu nunca sonhei em ser entrevistada pelo Jô.

Como eu disse, cresci vendo as entrevistas do JÔ, eu era pequena quando comecei. O Jô normalmente começava entrevistando uma pessoa famosa no primeiro bloco, que era mais longo, e depois vinham mais dois blocos curtos com os especialistas em alguma coisa, gente que publicou algum livro, enfim, os desconhecidos. O programa era tarde, então eu (e a maioria) só conseguia assistir a primeira entrevista e olhe lá. Como eu era criança, pra mim todos os primeiros entrevistados eram os “artistas de TV”. Se estavam na TV e eram famosos é porque eram bons. Dava para perceber que o Jô tratava os entrevistados, mesmo do primeiro bloco, de maneira diferente – com alguns ele brincava, podia até ser meio maldoso, enquanto que com outros ele se derretia e ouvia o entrevistado com prazer. Eu levei muito tempo para perceber qual era o padrão – não era por idade, não era por sexo, não era por horário de novela, pelo que era? Só mais tarde eu percebi que era o talento. Ele entrevistava de qualquer jeito aquele que por ora estava na mídia e em pouco tempo ninguém ouviria falar. Já aquele que tinha estofo, consistência, chama interior, etc., o Jô tinha alegria de estar com a pessoa porque via nele um igual.

Minha ambição tem a ver com esse olhar.

O Jô era incrível, a cultura, o talento, a inteligência, tudo. Somado à experiência de vida e tempo de TV, ele tinha olho para identificar o real do transitório. Uma coisa é ser educado e tratar bem, mas o brilho no olhar de admiração não é algo que se fabrique e se exija de alguém. Vi isso no documentário do Chico Buarque, por exemplo. Como ele, muito novinho, já conheceu os grandes artistas da época e foi incorporado a eles sem o menor problema. Um Vinicius de Moraes, já sendo um Vinicius de Moraes, olhou para aquele rapaz lindinho e o tratou de igual pra igual. Estou assistindo a série da Netflix sobre o Fito Paez e ele mal tinha chegado aos vinte e já foi parar na banda de Charly Garcia, uma mega super ídolo do rock argentino. Porque o Charly Garcia era bonzinho? Não, porque talento reconhece talento.

Quem é da mesma turma se reconhece. Em todas as áreas sempre têm os admiradores, os turistas, todos nós somos um pouco esses. Aqueles que fazem uma aula durante uma época da sua vida e param, até aqueles que praticam uma atividade durante parte da sua vida porque se sentem atraídos, mas nunca chegam a ser realmente bons nelas. Tem também o caso mais triste: praticar uma atividade seriamente na vida e ser sempre da turma dos normais, dos persistentes, jamais do time dos grandes. Meu sonho seria receber um olhar desses de admiração, igual do Jô, por algo que eu fiz. Seria um reconhecimento pra minha alma. Mas, como já me disseram mais de uma vez, eu sou ambiciosa demais. O possível era quando sonhávamos em ser entrevistados por ele e tá ótimo.

O amor que se espalha por todo ambiente

Eu pensei em colocar isso em alguma história, num conto, mas seria o punch mais sem graça do mundo. E o que é pior: moralista. Então a única maneira de não soar assim é falar disso na primeira pessoa, contar a verdade.

Mesmo nas minhas fases mais “científicas”, eu nunca deixei de conhecer pessoas místicas. Digamos que é algo a meu respeito que tentei muito me afastar, mas nunca tive sucesso. Ao mesmo tempo, sempre tive facilidade de ter amizade com ateus (os legais que não ficam te chamando de idiota por não ser, claro), porque meu temperamento, digamos assim, parece mais com o deles do que com o pessoal das místicas. Eu sou do tipo que ouve na segunda conversa sobre o contato da pessoa com ETs. Tenho amigos que tem uma intimidade com o “outro lado” que pra eles nem existe lado nenhum, é tudo a mesma coisa. Quantas giras eu já assisti e as pessoas do meu lado têm que ficar se segurando na cadeira pra não incorporar, ou que perceberam que havia coisas especialmente incríveis aquele dia, e euzinha só fico achando o batuque interessante. A verdade é que eu sou terrivelmente estável, como um bonequinho que você recorta e só munda o fundo – eu sou sempre a mesma, em todos os cenários.

O que eu senti aquele dia é esquisito justamente porque não sou uma pessoa que fica sentindo ambientes por aí, muito menos ainda quando vou comprar fruta. Explico: a pandemia e a necessidade de achar uma Pet Shop perto de casa me fizeram passar a frequentar um mini-centrinho. Anos morando naquela região e eu não fazia ideia de que havia uma parte de comércio barateza ali por perto. Passei anos achando que a minha única opção de comércio era uma padaria cara que tinha subindo a minha rua. Durante a pandemia, abriu um hortifruti entre a minha casa e a padaria. E é isso. Diziam que havia um comércio “pra lá”, apontando pra uma rua sem saída e uma região onde eu nunca passava porque não era caminho. Quando tive que procurar uma clínica pra operar a Dúnia, descobri que a rua sem saída tinha um caminho que passava pelo meio do mato e foi aí que meus horizontes se expandiram e achei o tal comércio, clínica, comércio barateza, Pet Shop e, como contarei agora, mais um hortifruti.

Dava uma meia hora pra ir e pra voltar pro Pet Shop, o ponto mais distante da minha caminhada. Eu gostava de ir sem pressa, olhava as lojas, as pessoas, esfriava a cabeça. Eu estava voltando com o pacote dos ossinhos e acho que até parei num supermercado pra comprar uma coisinha. Sabe aqueles dias que você está enrolando e não quer voltar pra casa ainda? Olhei de longe uma casinha meio feia, toda aberta, e umas frutas em promoção na frente. Estava sempre muito bem provida de frutas, mas aquelas estava bonitas, em promoção e tal, resolvi entrar. O lugar era muito simples. Uns dois ou três cômodos bem abertos, balcões com frutas, paredes de alvenaria nuas. Um homem sozinho estava atrás de um balcão feioso e acho que assistia TV. Eu peguei minhas frutas e, quando fui falar com ele, eu senti um amor tão grande, talvez o maior de toda a minha vida. Não que eu tenha sentido amor por ele, eu senti um amor imenso no ambiente. Aquele homem tinha uma vibração de amor tão grande e tão palpável que eu senti imediatamente e fiquei sem palavras. Era um dia normal, nem frio e nem quente, sem chuva. Eu não estava em crise, inferno astral, passando por processo terapêutico, nada. Não havia nada demais na aparência dele, era um homem com cerca de cinquenta anos e feições árabes. Ele viu que uma das frutas que eu peguei estava feia e trocou por outra. Era tudo tão simples e ele parecia gostar das frutas, gostar de trabalhar com comida, não sei. Lidar com alimento é algo sagrado, pensei. Conversamos um pouco, ele foi gentil, mas também nada demais. Até teria prolongado a conversa, mas não tinha porquê. Eu saí de lá tocada como quem viveu uma experiência mística.

Era meio fora de mão, então levei pelo menos um mês para voltar. Tentei ir com espírito científico, sem expectativas, e senti exatamente a mesma coisa – um amor imenso que preenchia todo ambiente. O que fazemos quando encontramos alguém assim? Eu fiquei pensando que, por ser meio árabe, quem sabe ele tenha atingido um estado de bhakti yoga (yoga devocional) muito forte. Era um pai de família, pensei que bacana deve ser ter um pai assim, um marido assim, um vizinho assim. Será que eles sabiam, ou será que viam apenas alguém que tinha um hortifruti feioso? Não seria possível, chegar perto dele e não sentir. Eu me perguntei se o correto era falar alguma coisa, mostrar que eu percebia quem ele era, mas tudo o que eu pensei me soou muito infantil – um pai de família, vendendo frutas e vem uma louca e diz que ele deve ser um grande devoto. Não alteraria a vida dele em nada e me deixaria com vergonha pra voltar lá outro dia. Ele me tratou com a mesma gentileza-educada-porém-nada-demais de antes, comprei minhas frutas e fui embora. Semanas depois, eu me mudei.

O carnaval das impossibilidades

Percebo que passei por três fases no que diz respeito a ser determinada pelo meu passado: na primeira, “Tudo é Passado”, e cada gesto e erro da minha família havia me traumatizado. Depois, “Nada é Passado”, eu como sujeito autônoma sou capaz de escolher tudo o que quero ser e fazer, o passado foi apenas um ponto de partida. Agora dá a impressão de que direi: finalmente chegou ao ponto da minha vida que equilibra as duas visões, etc. Só que onde cheguei agora é mais parecido com “Tudo é passado”. O que mudou é que não vejo mais como culpa e sim que o que eu vivi era a minha única referência. Referências, de certa forma, nunca são boas ou ruins, elas são o que são.

Eu levei muito tempo achando o Carnaval uma data horrível. Levei muitos anos pra descobrir que é um feriado apenas de terça, porque as coisas paravam de funcionar em Salvador muito antes. Meu pai e minha madrasta amavam o Carnaval e saíam de Pipoca. Pra quem não sabe, os trios cobram bastante caro para sair com eles dentro da estrutura de segurança e banheiros. As pessoas que pagam por isso ganham um abadá e ficam dentro de uma corda. As pessoas que pulam fora da corda, aproveitando o som sem pagar, são as Pipocas. Minhas lembranças de infância do período mais hard-core carnavalesco – tudo ia parando até chegar nos cinco dias finais – eram a de sair pra brincar e encontrar uma janta fria com um chocolate do lado me esperando no final da tarde. De manhã, a porta do quarto do meu pai ficava trancada a manhã inteira. Eu comia, saía pra brincar e quando voltava havia um prato de comida com chocolate do lado. Isso ia se repetindo até o quarta-feira. A promessa de que eu iria pular carnaval de rua se tornou uma ameaça que me aterrorizou e azedou minha relação com o meu pai durante anos, até dia que ele conseguiu me arrastar pra rua e me devolveu por volta da meia noite, do tanto que eu não entrei na festa e reclamei. Não, eu não dei uma de super chata, apenas queria sentar, comer e fazer xixi depois de algumas horas. Acho que ele se iludia pensando que baixaria algum espírito festivo até a manhã do dia seguinte, igual acontecia com ele.

Meus amigos curaram minha visão de Carnaval sem querer. Acompanhando suas redes sociais, eu me alegro com a alegria deles. A Iara com as suas makes maravilhosas, o Rodrigão que fica a cara do Fidel Castro, a Silvia que tem um adereço de cabeça muito lindo, a Regina que volta às suas origens nas ruas de Recife. Eu os vejo e os imagino tirando as fotos, andando, parando um pouquinho, bebendo um pouquinho, dançando muito e depois – uns mais cedo, outros mais tarde – voltando felizes pra casa, ainda mais amigos de seus amigos. Descubro que pra maioria dos foliões, aquele Carnaval do meu pai também é considerado meio intenso, não é todo mundo que iria. Ele viveu o suficiente pra saber que desfilei numa escola de samba, junto com o pessoal que dança comigo, então tive tempo de mostrar a ele que não me tornei o oposto de tudo o que ele representava, que nem tudo dentro de mim era trauma por ele ter tentado me tornar uma pessoa extrovertida. Este ano, cantando Trem das Onze numa roda de violão, lembrei novamente dele, que considerava isso o supra sumo de viver bem e ficaria orgulhoso.

Mas os meus dons carnavalescos se encerram aí, de verdade. Gente como eu não consegue. Eu sou realmente aquela que aproveita o carnaval pra ler. Posso afirmar: a gente fala com superioridade que prefere ficar lendo, mas não é uma escolha. Ontem os amigos da minha vizinha da frente interfonaram pra mim sem querer, e me percebi quase rugindo pra eles. Por mais que goste das pessoas, estar no meio delas me exaure. Nunca serei alguém que tem as portas abertas pros amigos. Uma das maiores vantagens de envelhecer é a consciência do que está e o que não está ao nosso alcance. Essa conversa sobre pureza de hábitos ou cultura que nos faz não pular carnaval é só conversa, é coisa de quem não consegue sentir essa felicidade – e tá tudo bem também.

(Outra maneira de terminar o texto seria: “É por isso que eu escrevo”. Vocês ficam querendo conhecer escritores, mas no geral é gente que sai na rua 5 min e depois escreve páginas e páginas, como se vivesse intensamente.)

Quando a Cia das Letras me leu

Todo ano eu passava no site da Companhia das Letras à procura das datas para recebimento de originais. Normalmente, eles abriam um mês para receber os originais. Daquela vez, estava escrito que eles não conseguiam ler as centenas de originais que chegavam todos os dias. Então, dia tal do mês tal às dez horas da manhã, eles receberiam 130 livros, apenas, e eles seriam lidos e avaliados para aquele ano. Ou seja, estava ali, implícita, a informação que durante todos aqueles anos de negativas, eu e outros provavelmente nem havíamos sido lidos. Daquela vez, pros selecionados, seria diferente.

Eu me preparei com antecipação. Fiz uma pasta onde havia, em formato PDF e títulos explicativos, todas as informações. Havia também o livro, formatado, pronto. Na frente do teclado, num papel, eu escrevi meu RG e CPF, porque às vezes confundo os dois. Havia também o nome do livro, pra caso eu ficasse nervosa e esquecesse, o número de páginas, o número de contos. No papel e no arquivo, eu antecipei todas possíveis informações que eles poderiam pedir, para poder digitar rápido.

Eu não lembro o dia e o mês, mas lembro que era exatamente às 10h. Eu acordei mais cedo do que o normal e já tomei meu café da manhã, pra não ter nada pendente quando eu me sentasse na frente do computador. Quase não consegui engolir. Fiquei zanzando, fazendo as coisas, mas já liguei o computador às 9h e às 9:30 já estava dando F5 na página da Companhia das Letras. Faltando cinco minutos, o site já começou a travar. Eu abri várias janelas, todas travavam, e eu pulava de uma pra outra em busca de alguma aba aberta. Às 10 em ponto nada abria. Às 10:01, uma das abas mostrou o formulário. Pedia meu nome, nome da obra, categoria, pedia os PDFs com dados e a obra em si. Estava tudo na mão. Eu tremia ao digitar e me deu tanto branco que eu acho que teria esquecido o nome da minha mãe se tivessem perguntado. Dei enter, mais demora, a página ressurgiu dizendo que eu não havia preenchido alguma coisa que eu preenchi. Fiz o processo de novo, mais demora, mais desespero, e quando a página carregou, havia uma mensagem dizendo que a seleção já estava encerrada. Foram 3 min intensos de adrenalina e tremedeira.

Abandonei o computador e fiquei frustrada o resto do dia. Meu consolo é que eu havia feito o que podia e o resto não estava sob meu controle. Poucos dias depois, vi um e-mail da Cia das Letras e fiquei de mau humor pensando que eles haviam aproveitado a minha tentativa pra me colocar na lista de newsletter. Em poucas linhas, eles confirmaram a Inscrição e que meu original seria avaliado. Sim, eu havia conseguido, fui um dos 130.

Era uma ótima notícia e, ao mesmo tempo, não era. Um Não sob essa seleção seria um Não definitivo, sem desculpas. Durante a pandemia, enquanto todos sofriam, eu vivi o período mais criativo da minha vida. Havia um ar de “não há o que fazer” e, naquela perspectiva de fim de mundo, eu abandonei todas as minhas preocupações e vivi para escrever. O que saiu foi o que considerei a melhor produção da minha vida. Foi esse material que eu enviei para a Companhia das Letras. Os melhores da vida, aqueles que reúnem ideias, vivências e os aprimoramentos de uns vinte anos de escrita e quase dez de tentativas, o meu milagre irrepetível.

Corta pra seis meses depois. Meu estado mental era o oposto daquele. Meu ex me pressionava cada vez mais pra não me mandar dinheiro e nenhum lugar me queria. Empregos que exigiam curso superior não me queriam, pois muito velha sem experiência, e empregos de curso médio ficavam assustados com a minha qualificação e não me queriam. Eu havia arranjado um emprego, cheio de indicações, exigências e elogios à empresa, que se revelou um puro e simples telemarketing. Como eu não ligaria para a casa das pessoas oferecendo nada, eu apenas receberia as ligações relativas ao site, achei que seria tranquilo. Eram seis horas e home office, então eu poderia continuar minhas outras atividades. A ideia era conseguir crescer naquela empresa, porque havia chefes e eles haviam trabalhado naquela função também, era possível. Na prática, eu nunca cheguei a trabalhar home office – íamos para a sede de máscara, frio de julho e todas as janelas escancaradas enquanto apenas nós, os peões, ocupávamos um andar. Tinha que bater metas de vendas, aguentar pessoas xingando. Ser fluente em espanhol me fez atender os piores casos: gente presa em aeroporto, gringa querendo dinheiro de volta, pessoas que não conseguiam receber o produto apesar de ter pagado. Não sei por qual política da empresa, se eles achavam que não iriamos ficar mesmo ou se era porque precisavam de “maturidade”, o que percebi é que eu e as outras pessoas mais velhas fomos colocadas nos horários mais tarde, sem opção, enquanto aos jovens eles deram horários flexíveis e quase sem problemas. Recebíamos os piores telefonemas. Meu horário era o último do último, até 21:15h, Nunca chegava em casa antes das 22h, nunca conseguia dormir antes das 24h. Eu tinha as manhãs livres e não conseguia fazer nada nelas. Eu ficava no sofá, enrolada em posição fetal, tentando acalmar meu coração e tomando coragem pra sair.

Quem me encontrou naquela época, diz que mal dava pra olhar para mim, que eu parecia estar com anorexia. Não sei dizer porque não me olhava no espelho, não me importava. Eu até tentava comer, fazia um sanduichão e engolia tudo correndo nos meus 15 min de almoço, mas não era suficiente. O telefone não ficava mais do que alguns minutos sem tocar, a ligação entrava de repente, não dava nem pra se afastar da mesa. Eu sentia minhas roupas caírem do corpo. Eu me arrastava até o trabalho, era maltrada por telefone, voltava pra casa e tinha dificuldades pra dormir. Lembro que, quando cruzava com estranhos, eu me encolhia achando que iam descompensar e gritar comigo, igual haviam sido as minhas últimas seis horas. Para muitos foi um período que eu apenas sumi, não tinha vontade de conversar com ninguém, eu sentia muita vergonha. Pela primeira vez na minha vida pensei em procurar um psiquiatra e pedir remédio pra não sentir mais nada. Quando o salário caiu na conta, não comprei nada pra comemorar porque não conseguia desejar qualquer coisa.

Foi nesse contexto que eu abri meu e-mail e vi a resposta da Cia das Letras. Informamos que a sua obra NÃO foi selecionada, algo assim. Eu apenas fechei o e-mail e não comentei com ninguém, não tinha com quem comentar, não quis mais pensar no assunto. Aquele e-mail naquele dia foi o ponto mais baixo da minha vida. Ali, ela parecia estar me dizendo: “você não serve pra nada. Teve a sua chance, pôde sentar e se dedicar apenas à escrever, e nem assim conseguiu fazer algo bom. Você não tem talento. Você não tem nada para dizer. Você não tem o direito de desejar mais do que um subemprego”. Eu credito pelo menos um mês a mais naquele inferno àquele e-mail. E sair não foi um empoderamento, meu corpo não suportava mais e minha mente dizia “mas você não presta pra NADA mesmo, hein?”.

Agora a vida veio me dizer que os contos são bons sim e que serão publicados.

Blog de comer gente

Ao contrário do meu padrão, daquela vez eu conheci a pessoa antes do blog. Nós tínhamos várias amigas em comum e acho que a porcentagem delas que o conheciam intimamente era grande. Os anos de divórcio já excediam os anos de casamento e não havia previsão de terminar. Era daqueles homens que conseguiam ter o melhor da vida de homem maduro e sem compromisso – vários contatinhos que mantinham as gônadas calmas e não atrapalhavam no dia a dia. Enquanto a adolescência havia sido um período cruel, com apelidos e falta de dinheiro, ele agora era considerado gato, estável, bom partido. Levou meses até que eu fui apresentada ao blog já desativado, a única coisa que eu sabia é que com aquele blog, ele havia “comido muita gente”.

Sempre alguma coisa acontece na passagem do real para o virtual. É como se fosse uma sala de espelhos, uma mudança de três para duas dimensões, uma passagem onde nunca é possível prever exatamente o que encontraremos do outro lado.

Eu conhecia pelo menos de ouvir falar quase todas as pessoas dos textos. A grande maioria das histórias falava da família e do amor imenso que ele tinha pelos filhos. Havia uma parte só de frases de amor, soltas e sem contexto, cada um que imaginasse o que era. Em grande parte daqueles textos ele estava comprometido, um dos poucos namoros que ele assumiu em mais de uma década. A relação dele com os filhos era maravilhosa, invejável; ele percebeu a importância do dia a dia e dos detalhes tediosos na construção de uma relação realmente íntima com os filhos, e colheu os frutos quando eles se tornaram adultos. Ele falava dos pais, que tinham um casamento longo e estável. Alguns textos eram tão cálidos que dava vontade de chorar. Eu entendi porque aquele blog fez ele comer bastante gente – eu mesma já me imaginei na fila. Ao mesmo tempo, alguma coisa estava errada.

Levei algum tempo mastigando as duas informações que eu tinha, a do divorciado que aproveitava a vida com diversos lanchinhos e a pessoa afetiva do blog. Uma parte de mim achava que era quase como uma propaganda enganosa, mas não sabia o porquê. Reli os textos à procura de informações e percebi que aquele amor imenso era todo dedicado à família. Que a gente lia e desejava fazer parte daquilo também, entrar na vida desse homem, amar e ser amada por ele. Mas isso não acontecia, a cota de pessoas amadas já estava preenchida.

Eu mencionei que a culpa é da passagem para o virtual e reafirmo. A linguagem escrita faz isso, inevitavelmente. Somos extremamente mentirosos falando a verdade. Ele nunca prometeu amor a ninguém e, ao mesmo tempo, prometeu.

Nem vim escrever esse texto pelo virtual em si. Esse tema reapareceu na minha vida: é tão difícil entender e saber como se posicionar diante de pessoas que são extremamente amorosas, caridosas, idealistas, interessadas – mas não conosco. Na minha cabeça, imagino um fã do Robin Hood que vai dar um abraço nele e é roubado. Leva algum tempo para descobrirmos que estamos fora do radar delas, tipo sair da área do wi-fi. É uma pessoa linda, de verdade, mas não pra você ou com você. Aí você precisa se proteger da mesma forma que faria com uma pessoa desonesta qualquer – quem sabe o que sentiríamos se mesmo cara que aplica golpe do sequestro pelo whatsapp escrevesse um blog falando da mãe dele…

Fatura renovada

Observando meu pai e um dos seus amigos mais próximos, o Matos – não ousaria declarar que algum deles era O Melhor Amigo. Meu pai tinha mais de um que virou para mim e disse: “Eu amo o teu pai, ele é como um irmão pra mim” – eu pensei na segurança, quem sabe arrogância e superioridade que a geração dele tinha sobre a minha. Quem sabe, mais vividos, eles tinham entendido que viveram numa outra época do país, a economia em ascensão, maior poder de compra, oportunidades reais. Meu pai saiu da faculdade de engenharia, duramente sustentada pela máquina de costura da minha avó, com emprego esperando por ele no país inteiro. Ele teve até a chance de dispersar uma oportunidade imperdível na Ford, que havia acabado de chegar no país, sem que isso tenha causado prejuízo real no seu futuro e finanças. Enquanto nós, os filhos, saímos de faculdade com diplomas que já não valiam muita coisa, com uma segunda língua necessária, salários achatados que mal permitem pagar aluguel, quando mais comprar casa, trocar de carro todo ano, viajar, ter muitos filhos. Meu pai teve vários empregos, conheceu o Brasil inteiro, ocupou muitos cargos de chefia, teve amigos importantes e foi a todas as festas. A sua saída da empresa que eu conheci, no Polo Petroquímico, foi um passo que ele achou muito calculado. Sabemos que ele se demitiu, mas eu lembro que ouvi conversas falando de amigos dele que tiveram que aceitar empregos com a metade do salário. Ele deve ter saído antes que saíssem com ele. Provavelmente meu pai se tornou daqueles executivos experientes demais, remunerados demais e o mercado achou mais fácil contratar alguém que sabia menos e também custava menos. Ele achou, que com a sua força e experiência, era capaz de superar qualquer adversidade e manter seu alto padrão de gastos. Foi iludido pela experiência de vida, mas como duvidar da experiência de vida? Não havia ele, menino pobre do Mato Grosso, enviado vários currículos e sempre o chamavam, e lá dentro sempre ia subindo na hierarquia? Os anos provaram que foi uma ilusão – sem a onda que o levou naquela época, ele não tinha forças para refazer o caminho.

Mas auto-estima é algo que se congela no cérebro numa idade perto da adolescência. Deve estar na mesma região da capacidade de escrever com a mão não-dominante, entender diferentes tons na escala musical e conseguir mexer a orelha. Não importa depois aprender a se vestir e a domar o cabelo, adquirir cultura e a capacidade de desenvolver qualquer conversa, olhar os antigos colegas nas fotos e achar que eles estão muito mais acabados do que você: quem foi da turma que sofria bullying no colégio, nunca consegue ser olhado por alguém bonito sem temer que seja alguma espécie de pegadinha. Nenhuma terapia resolve; adolescentes rindo em ônibus sempre nos transportam pra aquela época e nos dão a impressão de que a qualquer momentos eles rirão de nós, cientes de quem escondemos por dentro. Por isso que meu pai, o Matos e os demais amigos dele sempre mantiveram a sua segurança de homens que conquistaram o mundo – estava marcado no DNA deles. Nós, perto deles, sempre fomos filhos meio fracotes. Ao invés de ir pra praia e ficar torrando no sol de trinta graus de biquíni, como fazia minha madrasta e todas as mulheres que meu pai considerava femininas, ou eu ficava no mar pegando onda ou ficava estendida na rede. A diferença do frio de Curitiba para o verão soteropolitano me derrubavam. Havia uma rede na varanda, de frente da rua, que era o lugar mais provável de me encontrar a qualquer hora do dia. Lembro de ouvir provocações sofre o fato de estar tão perto da praia e não aproveitar. Lembro de observar o caminho que se estendia ao longe, debaixo daquele sol ofuscante, e perceber que eu não me importava o suficiente pra me mover.

Depois que saiu daquele emprego, meu pai ainda tentou consultoria, mais alguns negócios caseiros que sempre fracassavam e que antes nós considerávamos até meio folclórico. Mas antes, ele podia montar quantas empresas de fundo de quintal quisesse, porque sempre havia dinheiro entrando. Havia dinheiro, havia amigos e havia festas – só sobraram uns poucos amigos. Cada fracasso passou a tirar dinheiro de uma reserva que nunca seria reabastecida, até que um dia ela acabou. Depois vieram empréstimos, que também acabaram. O ruim da vida boêmia é que raramente a pessoa morre no auge, a vida a castiga com a velhice. Ele já estava na idade de avô quando fez mais dois filhos. “Quando eu deveria estar me livrando da fatura, eu arranjei outra”. Eu já era adolescente na primeira gravidez da minha madrasta. Ainda levaria mais uns dez anos até que os três primeiros filhos (eu incluída) terminassem as faculdades. Era pra fatura terminar ali, se meu pai algum dia tivesse sido razoável e previdente.

Eu já me sentia uma fatura há tempos. Ao contrário da minha infância, onde estar na casa do meu pai ou da minha mãe era radicalmente diferente, naquela época os dois tinham em comum a dificuldade indisfarçável com as contas. Minha contribuição foi fazer o curso mais rápido que eu consegui pra me formar logo. Acabei fazendo um pouco melhor ainda: casei pouco depois de arranjar o diploma. Não teve festa, não teve lua de mel, não teve nada, apenas a vontade de ir logo pra uma casa e sermos independentes. Quando meu pai disse que queria dar um presente de casamento, eu não havia nem cogitado ganhar algo dele. A casa já estava montada sem precisar da ajuda de ninguém – já tínhamos um pufe, um colchão e armários de cozinha. Mas ele insistiu. Ele era meu pai, sua única filha havia casado, tinha que me dar alguma coisa. Que eu escolhesse um jogo de sala, ou uma geladeira, e cobrasse dele. Eu me senti numa situação difícil. Já ouvi falar de uma história, que foi percursora do Dom Quixote, de um nobre decadente que é sustentando pelo seu empregado. O empregado fingia que ainda o servia, mas era ele quem pagava pela comida e sustentava a casa. Na primeira vez que ouvi, achei o conto apenas absurdo; quando meu pai me pediu o presente, eu finalmente entendi. Eu jamais poderia me recusar a um presente e ele me daria o que eu pedisse – pedindo dinheiro emprestado. Sob o argumento (verdadeiro) de que era muito importante pra mim e que é um item praticamente impossível de se arranjar aqui em Curitiba com qualidade (também é verdade), pedi de presente de casamento uma rede. Ele tentou reclamar, eu fui irredutível, até que meses depois meu irmão trouxe a rede na mala. Hoje ela é o objeto da casa que mais me remete ao meu pai e a infância estranha que ele me proporcionou, sentindo calor e cercada de coqueiros, tão diferente da infância das pessoas à minha volta.

O cheiro do novo

Eu sempre achei que a Dúnia tinha um talento não aproveitado de cão-farejador. O manual pode dizer que era preciso fazer passeios que cansam, fazendo com que o cachorro se adapte ao passo do dono; com ela, só consegui fazer com que gostasse quando seguíamos por muitos trechos de grama e toda paciência para que ela parasse para cheirar cantos aparentemente aleatórios. Depois da chuva, eu sabia que o passeio ficava mais demorado, ela parecia potencializar todos os odeores. No começo do nosso convívio, aquele cheirar constante me impacientava, até que pensei que era porque eu não tinha acesso àquele mundo. Se fosse a situação contrária, ela também ficaria impaciente com a maneira como passo horas olhando, imóveis, para telas brancas. Então nós tínhamos o nosso caminho, pouco alterado durante mais de uma década de convívio: íamos até o campinho de futebol, passávamos por uma rua de terra que contornava um terreno arborizado que servia de depósito, encontrávamos uma casa de esquina com vários cachorros e dobrávamos à esquerda, seguindo por um longo muro de um condomínio fechado. Quando a calçada do condomínio chegava ao fim, voltávamos pelo mesmo caminho.

Mas aquele caminho me servia para ir a outro lugares. Passando por ali, não lembro o motivo, encontrei com o dono da casa cheia de cachorros. Havia pitbull, pastor alemão, salsicha, vira-lata, todos esperavam o momento de latir quando eu passava por ali com a Dúnia. A pitbull estava com as tetas inchadas e o dono da casa me disse que ela havia acabado de dar a luz, e ficou deformada daquele jeito, que ele mandaria dar uma injeção que (pelo que eu entendi) secava as tetas. Acho que ele chegou a me perguntar se eu queria um filhote.

Esqueci o assunto. Na manhã seguinte, como sempre, estávamos eu e a Dúnia passando pelo caminho. Quando chegamos perto da casa, ela fez algo que nunca havia feito durante toda a vida e jamais voltaria a fazer: ela puxou a corrente e colou o focinho entre as grandes do portão. A casa parecia estar vazia e nenhum dos cachorros estava por ali. A Dúnia parou e aspirou longamente, com uma expressão indiscutível de prazer. Eu só entendi o que estava acontecendo por causa da conversa do dia anterior. Ela estava sentindo o cheirinho da vida, da maternidade, dos filhotes. O maravilhoso cheiro do novo.

O abismo olha para você

Você nunca mais é o mesmo uma vez que descobre que não há eu que não desmorone.

Andrew Solomon

Quem olhasse para mim subindo uma BR sete horas da manhã, de bicicleta, diria que sou o próprio retrato da saúde e disposição. Acharia que sou o tipo de pessoa que ama acordar cedo, ainda mais se eu dissesse que estava indo arrancar mato de uma casa que nem vivo mais, mas que preciso cuidar. No meio de caminho, enquanto subia, pensei que talvez muitos do que, como eu, estavam acordados àquela hora fazendo algum tipo de exercício tivessem a mesma motivação: não cair no buraco da depressão frente aos primeiros sinais. Eu acordei com a angústia característica quando o alarme tocou e sabia que, se dormisse um pouco mais, não seria capaz de mais nada e teria um dia miserável pela frente. Eu moro só e não teria uma única pessoa para perceber e me ajudar a sair do buraco. Então fiz o que sabia que injetaria ânimo no meu organismo para mais um dia. No dia seguinte, teria que fazer outra coisa. E assim é desde que meu organismo descobriu o buraco da destruição do meu Eu, um conhecimento da qual nunca se volta atrás, uma porta que nunca mais conseguimos fechar por completo.

Estou lendo e gostaria muito de recomendar a todos que um dia já foram quebrados, O Demônio do Meio Dia: Uma Anatomia da DepressãoAndrew Solomon. Por ser um escritor e ter vivenciado a depressão, ele traz insights e descreve maneiras de sentir que nenhum manual de psiquiatria consegue alcançar ou até mesmo nenhuma outra pessoa que já viveu uma depressão consegue dividir com você. Ele fala do peso que situações comuns adquirem, da humilhação de precisar de ajuda e não conseguir evitar, o pesadelo de estar preso num presente doloroso sem conseguir sentir como verdadeira nenhuma possibilidade de melhora ou felicidade futuras. Eu estava como livro me esperando há muito tempo e temia que os relatos me fizessem mal, mas o efeito foi contrário: a normalidade da minha anormalidade me consolou. Como o autor mesmo descreve, a depressão tem um equilíbrio complicado de orgânico e psíquico; você não pode deixar de lutar, mas ao mesmo tempo precisa ter paciência. A bioquímica de um deprimido necessariamente está uma bagunça. O primeiro episódio depressivo geralmente vêm de um stress muito forte, o segundo também de uma situação estressante, e do terceiro em diante pode não ter algo tão grave, pois o organismo ficou fragilizado. Eu imagino como um braço quebrado, que mesmo que façamos tudo o que é preciso – colocar no lugar, imobilizar, andar com gesso -, ainda leva meses para se fortalecer.

Eu tive um ano muito difícil e tive meu “braço” quebrado. Por fora, agi como era preciso, fui adulta e continuei funcional, mantive as contas em dia e tomei as providências. Chorando todos os dias, reagindo mal à dificuldades comuns, mas fiz. Tenho lamentado todas as manhãs o quanto a vida é longa e que pena que eu acordei. Lembro claramente do último dia que me senti alegre: eu havia marcado um exame e estava preocupada de me atrasar, no fim deu tudo certo e saí correndo pela rua. Lembro de estar feliz apenas por parecer uma doida, por correr segurando a bolsa, recuperando o fôlego entre sinais vermelhos. Há meses não sei mais quem é essa pessoa. O nosso tempo psíquico raramente é rápido o suficiente para o mundo e vinha me sentindo cobrada (por quem? Talvez apenas por mim mesma) de estar feliz e entusiasmada com o novo caminho que se abre à minha frente. Não sei de nada novo e legal, meu sentimento é de estar fugindo. Cumpro a tarefa ao manter rotinas para tentar fazer a depressão parar na porta. Busquei vários tipos de ajuda e Andrew Solomon tem sido uma delas.

Não existe orgulho que resista à dor: religião, terapia, remédios, companhia, videos de gatinhos, reativar vínculos, não apenas tudo é válido como geralmente fazemos tudo ao mesmo tempo. Lembro de uma amiga que fez um comentário que me doeu muito quando eu me separei: “você está super magra, quem fica deprimido engorda comendo salgadinho vendo TV”. Ela não sabia que era tão insuportável pra mim estar dentro de casa que eu passava facilmente cinco horas andando, inventava trajetos loucos a pé, tudo para chegar exausta demais para conseguir ficar acordada. Como já me fiz entender, exercícios me ajudam a me manter de pé e funcional, nem sei se estou bonita ou não, talvez emagreça até demais. Não importa qual a estratégia, o importante é ter uma e se agarrar para tentar atravessar a floresta o mais rápido que der – rapidez que parecerá lenta, porque os dias depressivos são muito longos.

O único adendo que eu faria do livro – e vou fazer isso muito rapidamente porque estou pisando em terreno que não é o meu – são os muitos estudos que ele cita sobre o efeito de medicação no cérebro. Tenho a impressão de que as pesquisas agora estão se voltando para o intestino, que seria responsável por quase toda dopamina do nosso corpo. Basta procurar “intestino segundo cérebro” no Google para achar bastante coisa, deixo aqui a recomendação desta série de vídeos. Então, quando ele fala do quanto a depressão vai piorando durante a vida, eu me pergunto se também não é porque raramente nosso intestino vai ficando mais saudável durante os anos.

Amar? Só se eu quiser

“Não compre, adote”. Pra quê cachorro de raça, dizem todos aqueles que já tiveram seu coração escancarado de amor pelos cachorros. Hoje em dia amar cachorros é muito comum, e eu veja se essa experiência não é algo que você viu ou até mesmo viveu: o primeiro cachorro escolhido é um de raça, uma raça que adoramos por um motivo qualquer. Depois de ter o primeiro cachorro, o de raça, o segundo, terceiro, quarto e todos cães que vierem já não precisam mais, pode ser o amarelinho, pode ser pelado, pode ser desproporcional. Todo cachorro vem com o kit de carinha pedinte, maneiras particulares de te fazer entender o que ele quer, capacidade de adivinhar quando você precisa de colo e um companheirismo inabalável. O convívio com o cachorro nos abre o coração de tal forma que percebemos que todos são lindos; se feios, passamos a amar tanto aquela feiura que para nós ele se torna ainda mais lindo por ser feio para os outros. O convívio e o amor incondicional deles são capazes de derreter quase todos os corações – ou a todos os que realmente têm coração.

Nossos parentes, aqueles de quem reclamamos tanto nas festas de fim de ano, mal e mal suportamos porque temos uma história em comum. Gostamos de nos pensar como muito sofisticados, mas a verdade é que basta estar viver algo junto com as pessoas para sentir que temos um laço com elas. Se essa experiência se repetir várias vezes e que ela nos coloque sentindo o mesmo, como por exemplo fazer exercícios na mesma sala, tanto mais nos sentiremos ligados. Apesar das reclamações sobre piadas do pavê e perguntas sobre as namoradinhas, as festas de fim de ano cumprem seu papel ao confinarem as pessoas no mesmo ambiente, partilhando da mesma comida e saírem de lá com as mesmas memórias.

Mas nós não precisamos mais deles e os encontramos cada vez menos. A crise econômica está trazendo os filhos de volta à casa dos pais, ou retardando sua saída, mas nada do que se compare à época que poderíamos ter três gerações vivendo na mesma casa. Quando indagado sobre tantas histórias picantes envolvendo famílias, Nelson Rodrigues se irritava com quem o considerava uma espécie de ficcionista pervertido, ele dizia apenas descrever a realidade. Ruy Castro, em Anjo Pornográfico, descreve essa realidade a qual Nelson se refere, de famílias atulhadas em cortiços, a privacidade dos casais preservadas apenas por paredes finas (quando havia), a proximidade que criava uma inescapável intimidade com os corpos e hábitos dos parentes. Nós nos vemos menos, escandalizamos menos, e também amamos menos. Os filhos se afastarem dos pais parece ser uma tendência inexorável do mundo moderno. Nós não suportamos conviver com o que antes poderia ser considerado aceitável, nossos horizontes são maiores e agora não precisamos mais, necessariamente, que nossa auto-imagem seja atrelada à nossa família de sangue. A internet pode nos tornar muito mais próximos de pessoas que estão do outro lado do mundo, enquanto as que estão da porta para fora nos desconhecem.

Hoje podemos, como nunca, escolher quem amar. Homens e mulheres não precisam mais de casamento para terem seu sustento ou vida sexual ativa. Conhecemos as pessoas predominantemente pela internet, então fica fácil aplicar vários filtros que nos fazem não correr o risco de nos apegar a alguém que tenha características erradas – gostar de gêneros musicais que abominamos, crenças religiosas que não compartilhamos, opções políticas diferentes das nossas, um tipo de alimentação com ingredientes esquisitos ou reprováveis. Mas também, graças à internet, podemos ser iludidos e passar meses conversando com alguém, nos envolvermos, e no fim era apenas um personagem. E mesmo quando a pessoa existe, e somos ambos sinceros, criamos um vínculo, às vezes acontece da outra pessoa apenas sumir. Ficamos sem saber se fizemos algo de errado, se a pessoa morreu, se o silêncio vai durar apenas algumas horas ou a história terminou ali, para sempre, sem a oportunidade de um adeus. Eu acredito que todos nós, em algum momento, já fomos essa pessoa que parte sem dar explicações. Hoje em dia é tão fácil apenas ir embora, que mesmo sabendo que não é correto, acabamos fazendo.

Fazer uma incitação ao amor e ao convívio é também convidar as pessoas a ouvirem piadas sem graça à mesa, se surpreenderem com hábitos domésticos estranhos, não serem mais donas do seu tempo e dinheiro. É também dizer para trazerem para dentro pessoas que não mereciam entrar; quem se abre sempre corre risco, e até mesmo o mais esperto pode ser enganado. (Acho que justamente os mais desconfiados e prevenidos costumam sofrer mais com farsantes do que os que são simplesmente abertos, mas é minha opinião…) Quando deixamos alguém entrar, e a pessoa fica, e dá tudo certo, nunca é um “felizes para sempre”, porque cada dia é um dia. E se dá certo demais, um amor de novela, em algum momento um dos dois vai partir. (Escrevo com a Dúnia aqui do meu lado, meio surda e cega, o momento dela ir embora não tarda.) Amar é maravilhoso, mas também dói. À medida que os anos passam, fica difícil não ver tudo com olhos que reconhecem padrões, e achar que já vimos de tudo, que cada pessoa é apenas um tipo que você já viu e, assim, perder a capacidade de se encantar. Crianças aprendem de tudo e se apegam a todos justamente porque tudo é novo e encantador. Quando velhos, deixamos de tomar decisões insensatas – a experiência faz com que nada mais valha o risco. Amar é um risco.

Mas não deixar ninguém entrar na nossa vida é, de certa forma, colocar como prioridade ter um sofá impecável. Ou se manter atualizado em todas as séries. Fazemos plásticas para nos manter jovens por fora e somos um verdadeiro museu por dentro. Eu te amarei, num futuro próximo, basta que você preencha esse formulário de dez páginas, traga um nada consta e cópia do contracheque… Difícil saber o limite entre a atitude prudente e saudável do caminhar em círculos, no pequeno metro quadrado impenetrável que forjamos para nós mesmos.