Fatura renovada

Observando meu pai e um dos seus amigos mais próximos, o Matos – não ousaria declarar que algum deles era O Melhor Amigo. Meu pai tinha mais de um que virou para mim e disse: “Eu amo o teu pai, ele é como um irmão pra mim” – eu pensei na segurança, quem sabe arrogância e superioridade que a geração dele tinha sobre a minha. Quem sabe, mais vividos, eles tinham entendido que viveram numa outra época do país, a economia em ascensão, maior poder de compra, oportunidades reais. Meu pai saiu da faculdade de engenharia, duramente sustentada pela máquina de costura da minha avó, com emprego esperando por ele no país inteiro. Ele teve até a chance de dispersar uma oportunidade imperdível na Ford, que havia acabado de chegar no país, sem que isso tenha causado prejuízo real no seu futuro e finanças. Enquanto nós, os filhos, saímos de faculdade com diplomas que já não valiam muita coisa, com uma segunda língua necessária, salários achatados que mal permitem pagar aluguel, quando mais comprar casa, trocar de carro todo ano, viajar, ter muitos filhos. Meu pai teve vários empregos, conheceu o Brasil inteiro, ocupou muitos cargos de chefia, teve amigos importantes e foi a todas as festas. A sua saída da empresa que eu conheci, no Polo Petroquímico, foi um passo que ele achou muito calculado. Sabemos que ele se demitiu, mas eu lembro que ouvi conversas falando de amigos dele que tiveram que aceitar empregos com a metade do salário. Ele deve ter saído antes que saíssem com ele. Provavelmente meu pai se tornou daqueles executivos experientes demais, remunerados demais e o mercado achou mais fácil contratar alguém que sabia menos e também custava menos. Ele achou, que com a sua força e experiência, era capaz de superar qualquer adversidade e manter seu alto padrão de gastos. Foi iludido pela experiência de vida, mas como duvidar da experiência de vida? Não havia ele, menino pobre do Mato Grosso, enviado vários currículos e sempre o chamavam, e lá dentro sempre ia subindo na hierarquia? Os anos provaram que foi uma ilusão – sem a onda que o levou naquela época, ele não tinha forças para refazer o caminho.

Mas auto-estima é algo que se congela no cérebro numa idade perto da adolescência. Deve estar na mesma região da capacidade de escrever com a mão não-dominante, entender diferentes tons na escala musical e conseguir mexer a orelha. Não importa depois aprender a se vestir e a domar o cabelo, adquirir cultura e a capacidade de desenvolver qualquer conversa, olhar os antigos colegas nas fotos e achar que eles estão muito mais acabados do que você: quem foi da turma que sofria bullying no colégio, nunca consegue ser olhado por alguém bonito sem temer que seja alguma espécie de pegadinha. Nenhuma terapia resolve; adolescentes rindo em ônibus sempre nos transportam pra aquela época e nos dão a impressão de que a qualquer momentos eles rirão de nós, cientes de quem escondemos por dentro. Por isso que meu pai, o Matos e os demais amigos dele sempre mantiveram a sua segurança de homens que conquistaram o mundo – estava marcado no DNA deles. Nós, perto deles, sempre fomos filhos meio fracotes. Ao invés de ir pra praia e ficar torrando no sol de trinta graus de biquíni, como fazia minha madrasta e todas as mulheres que meu pai considerava femininas, ou eu ficava no mar pegando onda ou ficava estendida na rede. A diferença do frio de Curitiba para o verão soteropolitano me derrubavam. Havia uma rede na varanda, de frente da rua, que era o lugar mais provável de me encontrar a qualquer hora do dia. Lembro de ouvir provocações sofre o fato de estar tão perto da praia e não aproveitar. Lembro de observar o caminho que se estendia ao longe, debaixo daquele sol ofuscante, e perceber que eu não me importava o suficiente pra me mover.

Depois que saiu daquele emprego, meu pai ainda tentou consultoria, mais alguns negócios caseiros que sempre fracassavam e que antes nós considerávamos até meio folclórico. Mas antes, ele podia montar quantas empresas de fundo de quintal quisesse, porque sempre havia dinheiro entrando. Havia dinheiro, havia amigos e havia festas – só sobraram uns poucos amigos. Cada fracasso passou a tirar dinheiro de uma reserva que nunca seria reabastecida, até que um dia ela acabou. Depois vieram empréstimos, que também acabaram. O ruim da vida boêmia é que raramente a pessoa morre no auge, a vida a castiga com a velhice. Ele já estava na idade de avô quando fez mais dois filhos. “Quando eu deveria estar me livrando da fatura, eu arranjei outra”. Eu já era adolescente na primeira gravidez da minha madrasta. Ainda levaria mais uns dez anos até que os três primeiros filhos (eu incluída) terminassem as faculdades. Era pra fatura terminar ali, se meu pai algum dia tivesse sido razoável e previdente.

Eu já me sentia uma fatura há tempos. Ao contrário da minha infância, onde estar na casa do meu pai ou da minha mãe era radicalmente diferente, naquela época os dois tinham em comum a dificuldade indisfarçável com as contas. Minha contribuição foi fazer o curso mais rápido que eu consegui pra me formar logo. Acabei fazendo um pouco melhor ainda: casei pouco depois de arranjar o diploma. Não teve festa, não teve lua de mel, não teve nada, apenas a vontade de ir logo pra uma casa e sermos independentes. Quando meu pai disse que queria dar um presente de casamento, eu não havia nem cogitado ganhar algo dele. A casa já estava montada sem precisar da ajuda de ninguém – já tínhamos um pufe, um colchão e armários de cozinha. Mas ele insistiu. Ele era meu pai, sua única filha havia casado, tinha que me dar alguma coisa. Que eu escolhesse um jogo de sala, ou uma geladeira, e cobrasse dele. Eu me senti numa situação difícil. Já ouvi falar de uma história, que foi percursora do Dom Quixote, de um nobre decadente que é sustentando pelo seu empregado. O empregado fingia que ainda o servia, mas era ele quem pagava pela comida e sustentava a casa. Na primeira vez que ouvi, achei o conto apenas absurdo; quando meu pai me pediu o presente, eu finalmente entendi. Eu jamais poderia me recusar a um presente e ele me daria o que eu pedisse – pedindo dinheiro emprestado. Sob o argumento (verdadeiro) de que era muito importante pra mim e que é um item praticamente impossível de se arranjar aqui em Curitiba com qualidade (também é verdade), pedi de presente de casamento uma rede. Ele tentou reclamar, eu fui irredutível, até que meses depois meu irmão trouxe a rede na mala. Hoje ela é o objeto da casa que mais me remete ao meu pai e a infância estranha que ele me proporcionou, sentindo calor e cercada de coqueiros, tão diferente da infância das pessoas à minha volta.

O cheiro do novo

Eu sempre achei que a Dúnia tinha um talento não aproveitado de cão-farejador. O manual pode dizer que era preciso fazer passeios que cansam, fazendo com que o cachorro se adapte ao passo do dono; com ela, só consegui fazer com que gostasse quando seguíamos por muitos trechos de grama e toda paciência para que ela parasse para cheirar cantos aparentemente aleatórios. Depois da chuva, eu sabia que o passeio ficava mais demorado, ela parecia potencializar todos os odeores. No começo do nosso convívio, aquele cheirar constante me impacientava, até que pensei que era porque eu não tinha acesso àquele mundo. Se fosse a situação contrária, ela também ficaria impaciente com a maneira como passo horas olhando, imóveis, para telas brancas. Então nós tínhamos o nosso caminho, pouco alterado durante mais de uma década de convívio: íamos até o campinho de futebol, passávamos por uma rua de terra que contornava um terreno arborizado que servia de depósito, encontrávamos uma casa de esquina com vários cachorros e dobrávamos à esquerda, seguindo por um longo muro de um condomínio fechado. Quando a calçada do condomínio chegava ao fim, voltávamos pelo mesmo caminho.

Mas aquele caminho me servia para ir a outro lugares. Passando por ali, não lembro o motivo, encontrei com o dono da casa cheia de cachorros. Havia pitbull, pastor alemão, salsicha, vira-lata, todos esperavam o momento de latir quando eu passava por ali com a Dúnia. A pitbull estava com as tetas inchadas e o dono da casa me disse que ela havia acabado de dar a luz, e ficou deformada daquele jeito, que ele mandaria dar uma injeção que (pelo que eu entendi) secava as tetas. Acho que ele chegou a me perguntar se eu queria um filhote.

Esqueci o assunto. Na manhã seguinte, como sempre, estávamos eu e a Dúnia passando pelo caminho. Quando chegamos perto da casa, ela fez algo que nunca havia feito durante toda a vida e jamais voltaria a fazer: ela puxou a corrente e colou o focinho entre as grandes do portão. A casa parecia estar vazia e nenhum dos cachorros estava por ali. A Dúnia parou e aspirou longamente, com uma expressão indiscutível de prazer. Eu só entendi o que estava acontecendo por causa da conversa do dia anterior. Ela estava sentindo o cheirinho da vida, da maternidade, dos filhotes. O maravilhoso cheiro do novo.