Amizades e o fim

É engraçado perceber que a máxima “que seja eterno enquanto dure” é amplamente aceita quando falamos de amor e de casamento, mas nunca encarada com facilidade quando falamos de amizade. Não apenas os amores são exigentes; de formas diferentes, nas amizades também existe um código de ética, com exigências mútuas e traições. Se o casamento é uma amizade com sexo, a amizade é um amor sem sexo e também pode chegar ao final. É limitado pensar que é apenas a cama que separa as pessoas.

É muito difícil saber o que torna as pessoas amigas. Pode ser como um amor à primeira vista, em que torna uma conversa banal ou uma pessoa que teria tudo pra ser mais uma na multidão se torna alguém importante. Outras amizades são conquistadas, com vários encontros fortuitos, ouvindo falar um do outro por amigos comuns, conhecendo de vista. Alguns dos nossos amigos não parecem ter nada em comum conosco e talvez representem aquilo que seríamos se tivessemos seguido rumos diferentes. Tem gente que gosta de amizades combativas, onde um joga verdades na cara do outro ou estimula a ambição através de seu exemplo bem sucedido (eu, particularmente, não gosto desse tipo de relação). Existem as amizades virtuais, que podem nunca passar para o real e não sofrer qualquer prejuízo por causa disso. E amizades com sexo, que podem também nunca passar disso.

A forma como começou ou como ela se mantém não diz nada sobre seu possível fim. Geralmente o que causa isso é uma mudança, seja ela de cidade, de emprego, de estilo de vida. Ou nenhuma dessas coisas, alguma mudança profunda tão profunda que nem os envolvidos podem ter clareza dela. Apesar de adolescente mística e tolerante, eu tinha uma amigona muito católica, daquelas que ouviam até fitas do Padre Quevedo. Gradualmente nossa amizade foi perdendo o folêgo e sei que ela nunca entendeu e nem me perdoou por isso. Olhando para trás e pros amigos que tenho hoje, sei que o mundo preto e branco que ela vivia não combina comigo – mesmo que na época eu não tivesse clareza disso.

Quando as amizades chegam ao fim, não vejo como fracasso ou culpa. Algumas amizades seguem longas tragetórias e só terminam com a morte; a maioria termina antes. Prefiro olhar para trás com saudades e achar que foi eterno enquanto durou.

Sem tribo

Costumo brincar dizendo que os amigos do Luiz são da TFP. Isso porque eles seguem o perfil básico da classe média curitibana, a qual eu pertenço apenas em teoria. Uma vez fomos encontrar dois colegas de trabalho do Luiz, que vieram com suas respectivas esposas. Era um jantar um buffet de pizza e batata suiça, então fui da maneira que me pareceu apropriada: camiseta branca, jeans, suspensórios e chuteiras. Chegando lá, as esposas – das mesma idade que eu – estavam no estilo tipicamente curitibano: cores sóbrias, terninho, lenço de seda, acessórios dourados. A diferença ia além do vestuário – esses casais achavam que filhos de pais separados se tornam alunos desajustados e futuros marginais. É ou não é uma opinião TFP?

Eu não falo sobre filhos, sobre mensalidades, sobre rotina de empresa e não mais sobre pós-graduação. O que não faz diferença no meu dia a dia, porque convivo apenas com filhas. No ballet, há poucas semanas que as meninas descobriram que não tenho 25, porque pra elas uma pessoa velha é aquela que “já passou dos seus 30”. Elas sabem que eu não leio Crepúsculo, que não farei vestibular para Dança e que sou casada. Nem o Fabuloso Destino de Amélie Poulin elas conhecem. Nós brincamos juntas, dividimos lanches, falamos da coreografia. Quando elas começam conversas de meninas, nos afastamos naturalmente. Jamais adotei uma postura de mais velha e experiente, porque não me sinto assim.

Como me sinto? Eu me sinto a própria Benjamin Button – jovem e velha, caminhando na direção contrária, vivendo coisas numa época diferente dos demais.

Brincando na Arca

O que posso dizer é que estou imensamente cansada. Desde que começaram os ensaios, minha carga horária aumentou em mais de oito semanais e parei de ter fim de semana. Como na terça havia outra apresentação da escola no mesmo teatro, fizemos marcação de palco nesse dia também. Ou seja, ao invés de passar um dia inteiro enfurnada no teatro, passei dois.

Ensaiar é repassar milhões de vezes, à exaustão, até a coreografia se tornar tão íntima do nosso corpo e dos nossos gestos, como se ela fosse nossa. Em dia de espetáculo, a gente chega no teatro mais de quatro horas antes, pra tornar um espaço desconhecido (e geralmente maior) e os figurinos tão íntimos como se fosse todo dia assim. Ajusta daqui, altera dali, roupas que somem, improvisos, empréstimos… até a cortina se abrir, todo mundo já se estressou de alguma forma. O dia lá fora passa e a gente nem sabe se choveu. O teatro vai enchendo, as luzes se apagam e todos em silêncio das coxias. Apertamos as mãos, sussuramos “merda” e finalmente descobrimos o resultado de tanto trabalho.

O Luiz sentou na última fila do teatro, então as fotos ficaram distantes. Colocarei mais pra dar um gostinho, porque não dá pra ver nada!

Esses são todos os bichos, logo no início do espetáculo. Eu sou a de pantufa amarela.

Nessa parte, os dois leões imitam o andar dos patos antes de atacá-los. Achei que as pessoas ririam nessa parte e ninguém nem tchuns. Riram em outras, em compensação.

Essa foto em si é sem graça. Coloquei só pra registrar que eu tinha acabado de dar a famigerada cambalhota.

Coreografia dos leões. Fazendo pose de ataque.

Minha foto preferida. I can fly! (observe que a peruca está cobrindo meu olho. Dancei quase todo o tempo assim)

No resto da coregrafia fico com esse pijama vermelho – vulgo roupa de boneco de posto ou macacão pra encher de bexiga e estourar (era uma prova de algum programa. Seria do Gugu?)

É isso, amiguinhos. Dia 5 tem mais. A previsão é de falta de ingressos. O teatro do SESC é maior que o Guairinha e lá só sobraram uns 30 lugares. Quem quiser ir, não pode deixar para a última hora! Além da Arca, terá um Grand Pas de Quatre (no link, a divertidíssima versão do Trockadero) e dança indiana.

Conversa no banheiro

Nem o fato de ser bailarino faz a família do meu amigo desconfiar que ele seja gay. Talvez por serem evangélicos, seus pais crêem que ele durma na casa de amigos somente porque mora longe. Numa balada, ao ir no banheiro, meu amigo foi abordado da seguinte maneira:

– (Estranho) Tem alguma coisa que você queira?
– (Amigo) Eu, como assim? Algo que eu queria?
– Sim, você pode querer alguma coisa. Porque se você quiser alguma coisa, eu tenho pra vender. Eu vendo de tudo.
– Ah… (começa a pensar no que pode querer aquele momento. Percebe que está com sede) Eu gostaria de uma bala agora, você vende bala?
– (ríspido) Não, eu não vendo bala. Você gosta de cheirar?
– Ahhhhhhhh! Isso! Não, obrigado, eu não sou chegado nessas coisas!

Até vendedores de drogas têm seu orgulho.

Ignorada é bão

No post anterior, o Chicuta pensou numa estratégia pra eu não ser ignorada na rua, enquanto a Ana jurou não estar sendo irônica ao dizer que adora Curitiba por isso. Claro que não era ironia, eu sinto a mesma coisa. Agora peço desculpas antecipadas aos meus leitores baianos, especialmente soteropolitanos. Lá vai:

Um dos motivos que nunca me passou pela cabeça morar em Salvador é que as pessoas parecem viver sempre no cio. No meu caso, a coisa ficava pior por eu ser nitidamente uma “estrangeira”. Uma mulher não pode sair sozinha na rua sem ouvir gracinhas, receber olhares ou até mesmo passarem a mão. Isso não acontecia porque eu sou de parar o trânsito ou qualquer coisa assim – cantar as mulheres o tempo todo faz parte da cultura local. Numa noite, eu estava num ponto de ônibus cheio de gente, e do outro ponto havia uma mulher comum sozinha e cheia de pacotes. Cada vez que o sinal abria, um carro parava pra mexer com ela, oferecer carona, puxar papo. Era até engraçado de ver.

Quando fui ao Rio de Janeiro, em cinco dias ouvi mais cantadas lá do que no ano inteiro em Curitiba. Não sei se é porque a cidade estava vazia (18 graus e as pessoas congelavam, pode?), mas não achei a coisa tão agressiva como é em Salvador. Quando uma amiga minha está se sentindo feia e mal amada, eu brinco dizendo que basta ela colocar os pés no Rio que isso passa. Não sei se a coisa me irritaria se eu tivesse passado mais tempo lá. É provável.

Aqui em Curitiba a gente é ignorada mesmo. Quando você chama atenção de alguém, é muito difícil a coisa passar de olhares. Isso quando alguém olha. Porque normalmente cada um está preocupado demais com a sua própria vida para se interessar pelos outros. Pessoas que puxam papo com estranhos (eu) são vistas como loucas e extremamente desestimuladas pela reação antipática da maioria. Os curitibanos são tão organizados que só buscam companhia nos lugares socialmente estabelecidos para isso. Ou seja, quem quer ver e ser visto vai pras baladas. Quem está no ônibus ou na rua só quer ir em paz.

Sobre essa questão, eu sempre lembro do que ouvi sobre praias de nudismo. Nesses lugares, a regra é não ficar reparando nos outros – até mesmo para evitar certos acidentes. Dizem que mulheres lindas, que vivem pra chamar atenção, não vêem a menor graça no naturismo. Digamos que morar em Curitiba seja a mesma coisa.

De sombrinha no sol

Anos de verão na Bahia me mostraram que eu não nasci pra me bronzear. Sou do tipo que fica vermelha e depois descasca. Então, desde a adolescência eu decidi que adoro ser branquinha e nunca me exponho ao sol mais do que o necessário. Em Curitiba, ser assim não é muito difícil. Ou não era. Porque de poucos anos para cá, nosso verão deixou de ser de 24 graus, para ser um sol de matar, digno de qualquer nordeste. Só de andar na rua, passei a ostentar por aí aquele belo bronzeado de pedreiro – exibindo onde começa e termina a camiseta.

Não sei quando, mas comecei a olhar com inveja as velhinhas que andam de sombrinha pela rua. Elas sim, carregam sua sombra aonde quer que vão, enquanto os outros se acotovelam nas marquises. Passei então numa loja e comprei uma sombrinha muito fofa para mim. Hoje, com um solão de rachar, decidi dar uma de velhinha e saquei minha sombrinha em pleno centro de Curitiba.

Na realidade, andar de sombrinha é menos legal do que parece. Não é como uma marquise. O tecido não isola o sol tanto assim, por isso continua quente embaixo. É uma coisa a mais nas mãos; nos momentos que ventava, eu não sabia se segurava a sombrinha ou o meu vestido. Apesar de estar preparada pra tudo – risos, olhares estranhos, engraçadinhos dizendo que não estava chovendo, etc – nada de agressivo me aconteceu. Algumas pessoas olharam para mim sim, mas o seu olhar transmitia mais um “boa idéia a sua, quem dera!” do que outra coisa. Dois adolescentes que disseram que eu estava “tão bunitinha”. No mais, tão ignorada como sempre.

Agora estou em casa, fresquinha, com a pele branca de quem não pegou sol. E conto essa experiência pra estimular você, leitora de todo esse Braziuziu, a andar de sombrinha também. Chega de pegar sol na rua, diga sim às sombrinhas no calor!

Off-topic: Não tenho gostado das minhas últimas postagens. É que falta apenas menos de 1 semana para a estréia e não tenho pensado em muita coisa a mais do isso.

Limites

Existem certos limites que não podem ser ultrapassados nunca, em hipótese alguma, de jeito nenhum e jamais. Coisas que não podem ser ditas. Não se pode voltar atrás no que foi falado; pedir desculpas não é o mesmo que nunca ter feito. Algumas palavras são imperdoáveis e só podem ser ditas se a intenção é acabar com tudo. A intimidade tem esse perigoso efeito, de possibilitar atingir o ponto certo com pouco. Descontrole é temporário, mas a falta de respeito não. Do primeiro abuso, o relacionamento segue ladeira abaixo. O melhor a fazer é encerrar o ciclo, arrancar o mal antes que o hábito torne tudo mais difícil. Eu, pelo menos, penso assim.

Lindo, Artur!

O Alessandro Martins postou o link como “Questão de treino“. E é sob esse mesmo título que o video está no site de Yoga que o Alessandro indicou. Sinceramente, achar que isso é questão de treino me dá a mesma sensação de achar que basta fazer ballet para colocar a perna na orelha. Nunca sei se é ignorância, propaganda enganosa, ingenuidade… Porque o fato é que nem todo mundo nasceu para fazer certas coisas com seu corpo- o que, pra mim, só aumenta minha admiração perante a beleza de algumas movimentações.

Quem postou o video parece que não quer ser visto, porque ele tem uma única tag: Artur. O pessoal do De Rose acha que é questão de treino. Eu chamo isso de dança contemporânea de altíssima qualidade. Seja lá como for, veja e se impressione também:

Terríveis criaturas chupadoras de sangue

Eu sou a prova que vampiros não existem. Se existissem, estariam disputando a dentadas esta blogueira que vos fala. A prova disso é a atração irresistível que exerço sobre seus irmãos menos evoluídos, os pernilongos. Sempre foi assim. Podem estar dez pessoas num local aberto, e todos os pernilongos picarão a mim. O pior é que sou meio alérgica. Quando eu ia pra Salvador, ficava com tantas picadas que as pessoas olhavam pra mim de modo estranho, com medo que eu estivesse com alguma doença contagiosa.

Sou medrosa e tenho pudor de matar quase todos os insetos, menos os pernilongos. Odeio todos, profundamente. Nada pior do que acordar de manhã cedo e cruzar com um deles, bem gordinho, e ter certeza de quem foi a causa da felicidade dele. Nas noites interrompidas, tenho vontade de fazer um acordo: “Olha, vai lá na minha panturrilha e se sirva à vontade. Desde que você não venha zumbir na minha orelha!” Dizem que ele faz isso para ver se a gente está dormindo e ter menos chance de morrer ao tentar se alimentar. Pois eu digo que isso é burrice. Pernilongos são uma das poucas coisas que me despertam do meu sono de pedra. Cansei de pular da cama no meio da madrugada pra caçar esses malditos. O Luiz está de prova, porque o coitado não ouve nada mas acorda quando eu acendo a luz.

Dicas de quem entende desse assunto:
  • a melhor coisa pra evitar que eles entrem em casa é fechar tudo no fim do dia;
  • a melhor coisa pra matar pernilongo é ter um inseticida em spray logo à mão;
  • a melhor coisa pra eles não te atacarem de noite é ventilador;
  • a melhor coisa pra deixar de ter sangue delicioso é tomar Complexo B. Descobri isso com o elenco que foi gravar Pantanal. Complexo B: não vá para o mato sem ele!

Glamour zero

Me sinto uma mentirosa ao dizer que sou bailarina porque, com a minha idade, parece que sou uma veterana e sei dar 32 fouetés. Dizer que eu sou dançarina é complicado, porque aí parece que eu danço axé ou coisa pior. Como eu faço aula de ballet quase todo dia, então dá pra dizer que sou bailarina, né? Por mais que eu não me sinta merecedora do título.

Quando assumi isso em público, percebi que entrei num outro imaginário. Dizer que eu sou socióloga nunca arranca mais do que um “humm”. Ao dizer que sou escultora, ou as pessoas ficavam com medo de serem obrigadas a elogiar algo feio, ou achavam que eu era algum tipo de criatura sensível. Descobri que dizer que sou bailarina equivale a dizer que sou magra, delicada, alongada, e – talvez por tudo isso – acrobática na cama. Nesse mundo diferente onde eu estou, minha ocupação faz o olhar dos outros brilhar.

O que vivo no meu dia a dia é a experiência de estar sempre suada, usando meias calças rasgadas, sentindo dor. Dor ao fazer força nas aulas, dor nos alongamentos mais dolorosos que eu já vi, dor por repetir esse processo em cima de músculos já doloridos. Uma dor que nunca é mostrada na face, o que faz com que alguns pensem que a aula de ballet é levinha. Já vi que saio ajeitada na rua por pura teimosia, porque o ideal seria vestir apenas roupas que não amassem na mochila e que possam ser colocadas facilmente sobre o collant. Estar magra e bonita deixou de ser assunto de foro íntimo pra se tornar uma obrigação- ponto na qual estou em desvantagem perto das meninas. Eu que fazia academia pra comer livremente, agora faço exercício o tempo todo e me preocupo ainda mais com calorias.

Quando descobri que bailarinas não têm fim de semana, até eu me assustei. Desde agosto meus sábados estão sempre ocupados e meus domingos não me pertencem mais. No início, ficava exausta demais até pra conversar; quanto tudo terminar, sei que me sentirei um animal enjaulado durante dias, até meu corpo se acostumar com doses menores de endorfina. Às vezes dá vontade de jogar tudo pro alto, mas e a responsabilidade com o elenco? Nem posso reclamar de não apenas não ganhar nada como ainda tirar do meu bolso, porque é assim com quase todo mundo. Pelo menos aqui no Brasil. Bailarino ganha tão mal, mas tão mal, que quem está de fora nem imagina. O salário inicial de um bailarino do Balé Guaíra, a melhor e mais tradicional companhia do Paraná, é na faixa dos mil. Quantos anos de estudo pra conseguir passar no teste? Pelo menos uns dez.

A bailarina glamurosa do palco é apenas um instante. O resto do tempo, ela estará suando o collant.

À noite, de fusca

Ter um carro para sair era ótimo e o fato de ser um fusca não tinha a menor importância. Éramos duas universitárias independentes e que adoravam dançar. Minha amiga, como minha mãe definiu, dirigia como um homem: corria, furava sinais, arranjava atalhos, ou seja, não tinha aquela hesitação feminina ao volante que enfurece os homens. Isso sem falar que morávamos perto. Então era comum ela me ligar pra dizer “vamos?”. Eu roubava o meu cofrinho e ia.

Era comum irmos pra Santa Felicidade, num lugar que depois de reformado passou a se chamar Santa República (uma bala pra quem lembrar do nome antigo!). Na época ele era carinhosamente chamado de UTI – Última Tentativa dos Idosos. Ou apenas Baile do Desmanche. O bom de ir lá é porque era um ambiente onde se dançava dança de salão. Como nossa prioridade não era caçar, o fato de ter outro público era até melhor.

Estavamos a caminho do Santa República e minha amiga resolveu pegar um dos seus famosos atalhos. Era um caminho para Santa Felicidade por detrás do Parque Barigüi, uma região tranqüila e bastante arborizada. Num trecho escuro, nossa conversa foi interrompida com roncos de motos, que ficaram cada vez mais próximos. Olhei para os lados e em pouco tempo ficamos cercada de Harleys Davidson. Como mariposas, eles surgiam ao nosso lado, com seus motoqueiros barbudos e paramentados, diminuiam um pouco a velocidade e depois seguiam em frente.

Quando voltei a olhar pra minha amiga, ela estava mudada. Com uma expressão séria, tensa, olhando fixamente para frente. Perguntei o porquê disso:
– Não gosto quando esses motoqueiros passam perto de mim. Fico com medo de ser assaltada.

Respondi que com o preço de uma Harley em relação a um fusca, quem deveria ficar com medo eram eles…

Nudez na portaria

Desde que eu me entendo por gente, minha mãe sempre morou em prédios. E vivi com ela quase 10 anos no prédio em que ela mora hoje. Além de todas as diferenças de áreas de lazer em comum com outros moradores e horários para tudo, uma coisa muito característica de prédios são os porteiros. Eles intermediam nossa relação com o resto dos moradores, com as nossas próprias visitas, com a nossa correspondência, com o nosso próprio apartamento. São pessoas comuns, que você não escolheu, e que fazem parte da sua vida.

É uma relação complicada, de dependência e rebeldia. Eles acabam sabendo de tudo a nosso respeito: que horas saímos e entramos, quem nos visita e com que freqüência, como nos vestimos, que laços temos com os outros moradores, o que nos incomoda. Às vezes eles até entram nas nossas casas; noutras, nos ajudam a fechar negócios. Por ter morado em prédio no início da adolescência, eu já brinquei com porteiro, já briguei com porteiro, já fui cantada por porteiro. Minha vasta experiência nesse assunto me diz que quanto mais distância melhor – embora essa distância nunca seja tão longe quanto a gente gostaria.

Coloquei aqui esse papo sobre portaria por causa do zumzum com a Playboy da Fernanda Young. Dizem que a Geysi também é uma forte candidata a posar nua. Ou seja, essas coisas dão a impressão de que toda mulher – de gostosinhas de vestido rosa a escritoras com ares de intelectual – gostaria de aparecer pelada. Eu sempre penso que se eu um dia posasse nua, os porteiros do prédio da minha mãe certamente veriam a revista. Me imagino na portaria, pegando elevador, e com a certeza de que agora eles sabem como sou por debaixo da roupa. Porque posar nua é isso: é dar acesso à imagem do seu corpo a qualquer um. E qualquer um nem sempre é um desconhecido que não tem acesso a você.

Daqui há alguns anos, meu corpitcho ficará flácido e enrugado. E só existirá belo e liso na lembrança de poucos.

Timidez

Estou no último livro da série O Tempo e o Vento. Ela é dividida em três partes: Continente (I e II), Retrato (I e II) e Arquipélago (I, II e II). Através da família Terra/Cambará, o livro traça um panorâma histórico do Brasil e mais precisamente do Rio Grande do Sul. Sempre ouvi que o Arquipélago é a parte mais interessante. Pessoalmente, achei o Continente muito mais dinâmico. Acho que o sucesso do Arquipélago está no personagem Floriano; ao contrário dos outros homens da sua família, ele não tem amor à atividade política nem ao trabalho pesado da fazenda. Amante dos livros, analítico, com tendência a pensar a realidade ao invés de atuar nela. Enfim, um tímido.

Floriano sentiu um passageiro desejo de descer e olhar a festa, mas uma timidez mesclada de preguiça o tolheu. Não lhe era fácil conviver com as outras pessoas. Preocupava-se demasiadamente com o que os outros pudessem estar pensando dele. Suspeitava que as pessoas em geral não o estimavam, não simpatizavam com ele, achavam-no aborrecido. Recusava-se, porém, a dizer as frases e assumir as simpatias e admirações, não só por achar o estrategema hipócrita e primário, como também por uma espécie de preguiça tingida de um não-vale-a-penismo. Quando se via em grupos, tinha a impressão de estar sempre sobrando. Isso lhe dava uma sensação de solitude que era triste e ao mesmo tempo voluptuosa. O desejo de ser aceito e querido alternava-se nele com o temor de que, no dia em que isso acontecesse, ele viesse a perder não só sua intimidade consigo mesmo como também sua identidade.

(Arquipélago III p. 624-5)

Assim como Rodrigo Cambará (o pai de Floriano), meu pai também gostava de encher a casa de gente e tinha idéias muito definidas sobre como seus filhos deveriam ser. Lendo sobre Floriano, percebi o quanto preferir a companhia dos livros pode parecer agressivo para o resto da família. Assim como ele teve que provar sua masculinidade, minha feminilidade foi motivo de preocupação porque eu me entediava com os joguinhos das meninas e não buscava os olhares dos meninos. Eu era quieta e gostava de ler. Meu pai sempre viveu para amigos e via minha preferência por grupos pequenos e auto-suficiência como defeito. Ele não queria uma geniazinha, ele queria ser pai de uma menina.

Foi uma luta discreta, feita de pequenas coisas. A minha relação com a praia foi uma delas. Ambos gostamos de praia, mas por motivos completamente diferentes. Ele, para ficar na areia, bebendo cerveja na companhia dos amigos; já eu tenho uma relação de amor com o mar, e passava quase todo tempo pegando onda. A idéia de ficar deitada torrando me parecia tediosa e aflitiva. Mesmo sem a prancha, gostava de usar camisetas compridas para me proteger também dos olhares. Por mim, só ficava fora d´água pra comer. Por isso meu pai me fazia pagar um imposto antes de me deixar pegar a prancha: eu precisava andar uma longa distância na areia quente, descalça e só de biquini. Ele queria criar em mim o prazer e o andar sinuoso de uma mulher que quer ser vista. Nem preciso dizer que não adiantou nada. Como uma ostra, quanto mais ele me forçava, mais eu me trancava. E somos, ainda hoje, distantes como dois desconhecidos.

É estranho pensar que – para apenas ser o que se é – a gente precisa magoar os outros.

Homens, mulheres, livros e galáxias

Eu sou uma grande leitora, e por mais que goste de experiências radicais, também tenho os meus pudores na hora de ser vista com certos livros. Por isso, esses olhos não olham mais do que a capa – e de longe! – de livros como Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus ou Homens são Ostras… Mulheres Pé-de-Cabra.

Como não li, não sei de qual pressuposto esses livros partem. Se acreditam que as diferenças entre homens e mulheres é aquela baboseira genética (“homens gostam de quadris largos porque isso quer dizer que a mulher será boa parideira”, dã!) ou se atribui ao social. Como socióloga, acho que já dá pra imaginar que eu sou da segunda explicação. Eles são criados de maneiras diferentes, com valores, perspectivas e papéis difererentes. Eu não via que necessidade as pessoas tinham de ler o óbvio – que homens e mulheres não são iguais.

Aí eu casei e descobri que realmente homens têm muito em comum. Vi que meu marido têm vários defeitos em comum com meus irmãos, que parecem ser os mesmos defeitos dos maridos das outras. Coisas idiossincráticas, como: ser incapaz de arrumar um ambiente por ser incapaz de ver onde está a bagunça; achar que tem que apresentar uma solução sempre que a gente se queixa; levar horas olhando as prateleiras do supermercado antes de pegar algum produto. Ou seja, maridos são meio como pacotes pré-programados.

A necessidade de ler o óbvio (da diferença entre eles e nós) surgiu a mim de forma banal. Uma amiga que estava organizando seu casamento, se queixou da loucura de conseguir salão, flores, buffet e todas essas coisas. Num certo momento, ela reclamou: “E aquele inútil do meu noivo não mexendo um palha pra me ajudar!”. Eu nem casei na igreja, mas até onde eu saiba, todos os noivos são inúteis nesse sentido. Eles nem percebem que as igrejas são decoradas em casamentos, quando mais escolher flores para isso. Acho mais fácil aceitar que eles não fazem certas coisas e ponto. Conseguir algo diferente, só com as próximas gerações. Em compensação, como viver sem a sensação de segurança que só os abraços deles nos dão?

Não só com homens: se a gente aprende a esperar das pessoas o que elas realmente podem oferecer, tudo fica mais fácil. Não posso deixar de recomendar o post hilário que li esses dias, do Dona Baratinha. O final é tão típico, tão marido. Homens não entendem de festas de casamento, mas e daí? Pra isso – e pra ver vitrines, fofocar e se queixar longamente – existem as amigas. Se isso ajuda, então tá: mulheres são uma coisa e homens são um troço totalmente diferente.

Uma história de fracos e oprimidos

Essa Menina foi a minha principal inspiração quando escrevi sobre as crianças que fazem ballet sem vontade. A mãe dela se queixa de que a filha é maltratada pelas outras alunas. De fato, as meninas gostam de se reunir, de fazer tudo juntas, e a Menina é excluída sempre. Não sei dizer como e nem porquê começou, nem se é coincidência o fato dela pertencer a outra raça, outro nível econômico e ser mais nova. Embora meio infantil e agitada demais pro meu gosto, eu não vi mal nenhum em ser uma das poucas pessoas que conversavam com ela.

Em agosto começaram os ensaios. Essa fase é muito delicada: os professores têm alguns preferidos em mente, que ganham rapidamente bons papéis. O fato de eu ter sido uma das últimas a ganhar um papel mostra que eu não sou uma delas… Alunos comuns precisam mostrar desenvoltura pra ganhar os vários papéis secundários que vão surgindo ao longo dos ensaios. Na única cena que eu ganhei no início da montagem, eu saio das laterais batendo os pés e palmas, e no meio do palco encontro com um bailarino. Depois de mais uns sons, damos as costas um para o outro e viramos uma cambalhota.

Só que eu não conseguia dar essa cambalhota. Quando criança, minha mãe não me deixava fazer cambalhota porque dizia que quebra o pescoço. Há poucos anos, aprendi a fazer o rolamento do Krav-magá, que é como uma cambalhota em cima do ombro, e era essa que eu fazia no ensaio. Todos notavam que eu caía meio de lado e cada ensaio isso me deixava mais preocupada e ansiosa. Depois de muitos ensaios rolando errado, a professora me colocou contra a parede e me mandou aprender a virar uma cambalhota igual a dos outros. Afinal, eu era a única bailarina que não conseguia.

Imagine o drama tragicômico que é uma mulher adulta perder o sono por não saber virar cambalhota. Estava com medo de perder meu único papel por algo ridículo. Me enfezei, ensaiei uma noite inteira em casa… fiquei com os ombros moídos nos dois dias seguintes. Quando chegou o dia do ensaio, aconteceu algo terrível: eu havia desaprendido o rolamento do Krav-magá e não tinha aprendido a dar cambalhota. Foi um pesadelo. Nunca a distância entre minha cabeça e meus pés pareceu tão intransponível.

Nessas semanas tensas em que eu ainda não conseguia dar cambalhotas, a Menina mudou de comportamento comigo. Ela falava “Olha como é fácil” e dava várias cambalhotas na minha frente. Todo ensaio ela pedia para repetirem a coreografia das cambalhotas; quando coreografavam algo novo, ela ficava sugerindo para colocarem mais e mais cambalhotas para mim. A cada humilhante tentativa de dar uma cambalhota, lá estava ela, me olhando. Olhando e sorrindo. Um sorriso largo, feliz, um belo sorriso de criança – aquele mesmo, que costuma simbolizar a própria pureza.