
Eu li o Montanha Mágica quase inteiro, enfrentei as páginas que se considera mais difíceis e larguei num mal estar que eu desconfiei ser inerente ao tema e não ao livro em si. Para quem não conhece, a ação do livro se passa numa clínica de tratamento de tuberculose. Depois daquilo li mais algumas coisas sobre o assunto. Na biografia de Nelson Rodrigues ela aparece bem, com Nelson angustiado por ir e voltar para o tratamento. Só que por mais que a biografia fale da angústia dele, eu nunca li – pode ser que tenha e apenas eu que nunca tenha lido – o próprio Nelson falar da rotina desses tratamentos. O nosso Manuel Bandeira foi um que conviveu com a tuberculose, sempre à espreita, e no fim das contas acabou sobrevivendo a quase todos seus amigos saudáveis e morreu aos 82 anos. Mas não foram 82 anos comuns, foram 82 sentindo a morte em cada tosse, cada ventinho, cada febre.
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Mas de tudo o que eu li sobre a doença, Bernhard é o que mais me toca. Ele tem um modo de escrever intensamento autobiográfico, e não apenas nos deixa saber que é doente, ele descreve o tratamento por dentro: como é ser internado, verificar a secreção cuspida numa garrafa, os meses iguais e sem perspectiva de melhora, o olhar da equipe de enfermagem que crê que a qualquer momento você não estará mais ali, os pacientes que um belo dia somem e seus lençóis são trocados. Bernhard me faz entender que a rotina da Montanha Mágica realmente me angustiava. Eu sou irritamente saudável; há alguns dias me resfriei, acordei com a cabeça pesada e fiquei me perguntado se aquilo era apenas resfriado ou gripe – eu não me resfriava há tantos anos que nem lembrava mais como era. Fico me perguntando a sede de vida que passar tanto tempo trancado dá a alguém; para mim, é a combinação dessa vontade urgente com – ironicamente – a cultura que adquiriu nos meses de imobilidade que tornam Bernhard um autor tão incrível.
Quando me foi possível novamente levantar e ir até a janela, e finalmente até o corredor e depois, com todos os outros condenados à morte capazes de andar, de uma extremidade à outra do pavilhão e que finalmente, um belo dia, pude até sair do Pavilhão Hermann, tentei chegar até o Pavilhão Ludwig. Porém eu superestimei minhas forças e fui obrigado a parar diante do Pavilhão Ernest. Tive que me sentar no banco fixado ao muro e retomar o fôlego antes de poder continuar por meus próprios meios para o Pavilhão Hermann. Quando os pacientes passam semanas ou mesmo meses na cama, eles superestimam suas forças assim que se vêem capazes de levantar, eles querem simplesmente fazer tudo e em certos casos acontece de esse tipo de besteira fazer com que retrocedam semanas, e alguns, numa dessas aventuras irrefletidas, foram atingidos pela morte da qual tinham escapado com uma operação. Apesar de ser um doente escolado e de ter, durante toda a minha vida, convivido com as minhas doenças mais ou menos graves, depois gravíssimas e, finalmente, sempre com minhas doenças ditas incuráveis, sempre tive regularmente essas recaídas de diletantismo em matéria de doença, fiz besteiras, besteiras imperdoáveis. Primeiro alguns passos, quatro ou cinco, depois dez ou doze, em seguida treze ou quatorze, finalmente vinte ou trinta, é assim que o doente deve agir, e não levantar logo, sair e ir embora, o que, na maioria das vezes, vem a ser fatal. Porém o doente trancado durante meses, durante meses só sonha em sair, e mal consegue esperar o momento em que terá o direito de deixar o seu quarto de doente e, naturalmente, não se contenta em dar alguns passos no corredor, não, ele sai para o ar livre e ele mesmo se destrói. (O sobrinho de Wittgenstein, p.13-14)