Vizinhança

Nos dois bairros que eu já morei por aqui, peguei a ascensão dos dois. Isso quer dizer que no começo eu andava por espaços vazios, matos e casas pequenas, que mais tarde se transformaram nas chatas, perigosas e barulhentas obras, com o incômodo de passar por pedreiros todos os dias. Depois vêm os prédios, de início vazios, depois muita gente e com elas muitos carros.

 

Quando eu me mudei pra cá, o único comércio por perto era um armazém da Dona Laíde. Eu ia lá só pra comprar um ovo, de vez em quando. Quando queria fazer bolinho de espinafre ou tentar uma receita, ia lá e comprava o ovo que eu queria. Ela fechou há pouco tempo e eu lamentei muito, tive que parar de fazer bolinho. Um pouco mais adiante tinha um bar, daqueles bares sujos de uma portinha. Tinha sempre uns bêbados por lá. Numa madrugada ouvimos um barulho estranho e no dia seguinte soube que um cara foi baleado na saída do bar. Na mesma rua, só que mais pra baixo, um dia vi uma espécie de passeata, de torcida organizada, com faixa e grito de guerra. se identificando como gangue da região da cidade. Fiquei com medo. Isso sem falar nos assaltos.

 

Por causa disso, viver aqui mudou meu hábito de sempre de pegar ônibus. A região que a minha mãe mora, que é no caminho pra cá, sempre foi muito segura. São muitos prédios com um comércio forte embaixo, então a qualquer hora do dia ou da noite eu podia sair pra comprar pão ou chegar em casa. Aqui eu passei a ser dependente de carona. Carona é muito chato, porque exige uma pontualidade que estraga a espontaneidade das coisas. As conversas de pós aula, os imprevistos e a vontade de ficar mais um pouco são sempre tolhidas porque você sabe que tem alguém esperando. Desde muito cedo eu aprendi a fazer o meu horário. Acho que eu tinha uns dez anos quando comecei a ir sozinha com o meu irmão para o colégio. Aí, depois de adulta, passei a ser aquela cujo marido está esperando no carro.

 

Antes eu só ia, agora passei a voltar de ônibus. Primeiro, por pura experiência. Eu precisava ver como me sentia, se era seguro. Tudo indicava que sim, muitos anos se passaram e há uma panificadora grande e bonita no caminho. Mas eu precisava ver como era, como eu me sentia. Se fosse inseguro demais, que eu pudesse perceber antes da situação ficar definitiva e, se for o caso, rever meus horários. O primeiro indício de que daria certo foi quando um dos vizinhos colocou um carrinho de caldo de cana na frente da própria casa. O bairro tem contrastes interessantes. Era popular até poucos anos e de repente ficou valorizado. Surgiram condomínios fechados e já não somos mais “fora da cidade”. Na volta, dez horas da noite, descobri luzes no prédio que eu jurava estar vazio. Pessoas anda, na rua, a casa que vende água fica aberta, um salão de beleza fica aberto, uma casa fica tão acesa e aberta que dá vontade de entrar. Pra completar, há dois rapazes vendem churrasquinho de gato madrugada adentro. Apesar de tão tarde e tão mais cansativo, passo por todos eles feliz, são todos meus amigos. É como se eu e meu bairro estivéssemos vivendo o mesmo momento, tentando nos reinventar.

Casa vazia

Eu passo muito tempo em casa e isso não é de hoje. E como sou uma pessoa introvertida, isso sempre me fez bem. Introvertidos têm a necessidade de recarregar as baterias depois de estarem acompanhados. A impressão que dá é que os extrovertidos se alimentam da companhia de pessoas, e quanto mais saem com pessoas, melhores e mais energizados eles se sentem. Para os introvertidos, por mais que a companhia seja boa, depois dá vontade de ficar um pouco sozinho, de assimilar. Senão ficamos chatos, mal humorados. A minha rotina de passar muito tempo dedicada às tarefas silenciosas, como escrever e cuidar das minhas coisas, têm me garantido ser uma companhia disponível quando tenho que estar com as pessoas. Até mesmo quando surgem programas, tenho conseguido ser uma pessoa disponível, porque estou sempre em dia com as minhas baterias introvertidas.

 

Só que agora é como se a rotina que tanto amei se voltasse contra mim. As mesmas coisas de sempre, os mesmos horários, o mesmo tempo disponível agora me parecem sufocantes. Parece que tudo isso fazia sentido apenas porque a solidão não era completa. No final da tarde ela seria interrompida, nos fins de semana ela seria interrompida. Quem tem uma companhia constante não precisa se preocupar em formar um grupo de amigos, em frequentar seus vizinhos, criar programas novos. Porque, mesmo sem fazer nada, eu sempre tive um outro ser que anda pela casa, que abre a geladeira, ou seja, alguém. Posso passar horas sem falar nada, mas no momento em que eu abro uma página ou vejo um vídeo engraçado, eu tenho uma audiência, alguém para dizer “quero te mostrar uma coisa”.

 

A minha rotina de sempre, a minha tão amada rotina, tornou-se de repente um motivo de terror. Quando penso no assunto – às vezes porque me obrigo, às vezes porque me despeço – o ansiedade sobe e me sufoca. Tenho medo de passar o dia inteiro sem ouvir outra voz, sem uma conversa, sem contato humano. Tenho medo de ficar igual a minha mãe. Agora me parece que tudo seria mais fácil se eu tivesse que acordar cedo, sair correndo, passar o dia fazendo coisas chatas, lidando com colegas de trabalho e preocupada com outras coisas. Que apenas no fim do dia eu chegasse em casa cansada e percebesse a casa vazia.

Pequenas

 

Antes eu me achava uma grande queimadora de pontes. Eu saí de vários lugares e ocupações, e saí magoada ou magoei algumas vezes. Então eu achava que o clima era horrível, que não poderia jamais voltar atrás. A verdade é que eu não ia lá pra olhar, mas acho que depois do primeiro estranhamento, tudo ficaria numa boa. Já tive mais de uma amostra disso. Porque assim como a minha mágoa fica para trás, a das outras pessoas também. Imperdoável mesmo é quem antes de sair mostra quem é de uma maneira horrível, rouba, desvia, cria confusão. Isso não é do meu feitio não. É que quem não é mau caráter nem consegue imaginar o que existe pelo mundo.

 

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Eu definitivamente gosto de pegar ônibus.

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Tive um amigo que veio pra Curitiba e me contou que passava muito tempo sozinho na cidade natal dele. Que tinha toda essa onda de que o adoravam e tal, mas que na verdade isso não se manifestava no dia a dia. Que foi só quando ele anunciou que estava vindo pra cá que as pessoas se lembraram dele, se mobilizaram, chamaram para sair e tornaram as últimas semanas dele muito agitadas. Depois o tempo passou e descobri o porquê daquilo – ele era aquele tipo de pessoa que precisa ser chamada pra sair. Aquela pessoa que não aproveita que está do lado, que não bola um programa, que não compartilha a programação do cinema, que não te chama pra um sorvete.

O pior de tudo foi descobrir, anos depois, agora, que sou igualzinha.

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Algumas coisas só estão à espera que a gente busque. Ou que a gente ligue. Ou que a gente fique no ponto.

Despersonalização?

Eu tenho uma característica pessoal que não sei como se chama. Eu chamo de despersonalização, do meu lado Zelig. Descrevo aqui pra ver se mais alguém se sente assim.

Por exemplo, reality show. Nego chega num BBB com toda aquela ideia de quem ele é. Eu sou bacana, forte, amigo da galera, divertido. Sou Fulano que frequenta tais bares, que namora com tais tipos de pessoas, formado em não sei onde e com tantos mil na poupança. Ou: sou um talento a ser descoberto, vou estourar, virar capa da Playboy e ser famoso. Aí ele fica confinado em hotel, fica confinado com um bando de desconhecidos, sofre situações estressantes e tudo o que ele achava que era deixa de ser. “As máscaras caem”, como se diz. A questão é que não são apenas máscaras do que a pessoa pensa que vai ser lá dentro, caem também aqueles conceitos que a pessoa constrói sobre si mesma. Eu, por exemplo, achei que tiraria de letra aprender a dirigir. Nunca me imaginei chorando durante aula prática, precisando fazer instrutor de psicólogo. Morro de vergonha perante mim mesma.

O que eu chamo de despersonalização é que eu esqueço bem rápido quem eu sou. Enquanto tem uns que não esquecem dos seus títulos jamais, ou que precisam ficar confinados durante muito tempo pra ficarem confusos, comigo é Pá Bum. Me põe uma roupinha diferente, muda meus horários e eu já não sou mais ninguém. Quer dizer, não mais quem eu era antes. No meio de artistas eu falava de arte, no meio de acadêmicos eu falava como intelectual, no meio de bailarinos eu falava de dança. Se perto de pessoas que me valorizavam eu me sentia bem, também junto dos que me viam como desprezível eu também me via como tal. Eu não uso uma bagagem prévia como defesa, sabe? Acho que isso me faz absorver mais dos lugares onde vou do que as outras pessoas. Como disse no começo, não sei se é bom ou ruim.
(Quando eu vi o filme, décadas atrás, eu não fazia ideia de quem eram os entrevistados que apareciam no começo. Estou encantada!)

Devagar com o andor

Eu preciso retomar o blog, mas também acho que não dá pra simplesmente fingir que a última postagem não aconteceu porque deixei muitos amigos preocupados. Então, seguem duas reflexões:

 

* Nunca fui boa conselheira de casais que iam e voltavam. Achava estúpido e pronto. Se a pessoa resolvia de verdade, ela tinha que bancar sua decisão. Doer sempre doía e dor de amor exige paciência mas acaba. Eu podia até adotar uma linha compreensiva no discurso, mas internamente eu nunca entendi.

 

Desculpa a todos cujas dores de amor me pareceram bobagens durante todos esses anos. Eu descobri que há um nível de angústia que é inegociável, um verdadeiro pânico. Pra dor, não dá pra pedir paciência. A gente só quer que pare.

 

* Os fins de semana são coisas do demo. Pra quem está feliz, pra quem tem sua família ou sua situação arranjadinha, tudo bem. Mas pra quem está sozinho é interminável. Durante a semana você segue em frente, se cansa, faz suas coisas, assiste a novela. Mas o fim de semana… Não há para quem apelar, todos estão ocupados com suas próprias vidas. A gente sabe que se aparecer, vai atrapalhar. Ou que podem nos dar apenas algumas horas. Pra curtir o fim de semana você tem que estar bem.

 

Acho que quem inventou esses workshops de fim de semana era uma pessoa solitária, querendo arranjar o que fazer. É a melhor coisa. Ou a pior.

Podemos seguir a programação normal agora?

A longa noite

Eu penso na minha mãe, a pessoa mais despreparada para o mundo, saindo de Salvador com três filhos (três!) pra começar vida nova em outra região do país. Sem emprego, sem experiência, sem faculdade, sem nada. Até sem apoio, Eu penso na Suzi, precisando de alguns minutinhos da panela no fogo pra subir até o quarto e chorar no travesseiro, pela falta dos filhos que ela mesma se esforçou tanto para colocar em boas faculdades fora daqui. Penso na Cacau, indo dormir pra lá de três, quatro, cinco da manhã, com uma insônia crônica. Penso na Fábia, que precisou da minha ajuda pra comprar absorvente um ano depois, porque ela tinha simplesmente parado de menstruar. Ou no estranho que era a Bel tendo ataques de riso, porque tem gente que tem ataque de riso quando sofre. Penso no Milton, que sentia uma atração irresistível pelas rodas dos carros – ou seriam os trilhos do trem? Todos eles passaram por isso, todos eles sofreram muito, mas também todos sobreviveram. Penso com esperança no que a Regina disse uma vez, que era um sofrimento tão grande, tão difícil de decidir, e depois de uma semana já é tão fácil e normal. Não é a mesma coisa, mas penso na minha sogra, na falta depois de uma vida inteira. Dela saindo de casa e indo longe, de ônibus, até o shopping, pra tomar um sorvete e voltar. Lembro dela me falando de como é difícil passar a chave na porta de casa depois das 18h, sabendo que há uma noite muito longa pela frente, uma noite sem companhia. E que, ao mesmo tempo, em poucos meses já parecia que fazia tanto tempo, anos. Penso na outra Fábia, aquela que conheço apenas por escrito, e que perdeu seu amor enquanto ele ainda estava no auge. Eu pelo menos tive mais tempo.

 

Aí essa casa, a casa que tanto amo e que vivo há mais de uma década, de repente me parece grande demais. Um fardo, um lugar cheio de bichos que ninguém vai matar pra mim. Sofás, cadeiras, copos, lados de cama, que terei que me desdobrar pra usar, porque sobram. E mesmo que agora a gente nem se fale tanto, a perspectiva de que não haverá uma outra mão para desligar o alarme, a luz acesa quando eu chegar, uma outra pessoa para ligar a TV é tão assustadora. Eu que nem vejo TV. Meus projetos e minhas ambições agora me parecem tão sem importância, sem a menor importância. Como desejar o céu se não sei nem se vou conseguir sair de casa. As circunstâncias aumentaram de tamanho ou eu que tomei a poção da Alice e virei uma menina bem pequenininha? Uma menina pequena e assustada. Eu penso em tanta gente que já passou por isso, penso também em quem realmente viveu tragédias – mães que perderam filhos, vítimas de violência, famílias que perderam seus bens em enchentes – e passaram por coisas muito piores, por noites muito mais longas. Eu penso na minha mãe, na Suzi, na Cacau, na Fábia, na Bel, no Milton e digo pra mim mesma que eles estão bem. E os vi sorrindo, felizes, eu sei que a vida continua. Vai passar, aguenta que vai passar.

Algo

Não sei se a Dúnia gostava de ficar em caixa de papelão ou embaixo do armário da cozinha porque ela ficou numa caixa antes de ser adotada. Ela foi abandonada numa caixa em frente à uma pet shop, e pra ela não estranhar, nos primeiros dias aqui ficou numa caixa também. À medida que ela ia crescendo, as caixas “cresciam” junto, e desconfio que ela se adaptou muito rapidamente à casinha por causa desse hábito. Quando ela vivia dentro de casa, na parte debaixo, seu lugar preferido, o lugar onde ela buscava privacidade, digamos assim, era embaixo do armário da cozinha. 
Quando a Dúnia foi castrada, a veterinária avisou que ela passaria alguns dias “chatinha”. Eu não fazia ideia do que seria esse chatinha. Eu lembro de estar em cima, vendo TV, e ouvir uma choradeira da Dúnia embaixo. Eu descia as escadas e ela estava escondida na cozinha. Eu a chamava, ela vinha de cabecinha baixa e rabo abanando. Só que logo depois de receber carinho, ela se afastava e latia pra mim. Aí eu entendia que ela queria ficar sozinha, subia, e dali há poucos minutos ela começava a chorar de novo. A cena se repetia muitas vezes.
Neste instante, eu me sinto igualzinha.

Tudo o que é sólido se desmancha no ar

Eu nem ia escrever nada, ia passar um tempo afastada do blog e da internet em geral e pronto. Aí o dia amanheceu com pessoas adicionando a minha página e eu não entendi o porque. Aí vi que a fofa da Marcela postou o último texto no seu facebook e convidou as pessoas a curtirem a página, dizendo o blog é sempre atualizado. Me deu um certo senso de dever…

Uma vez eu li um texto do Bial – aquele, o que tem no currículo o muro de Berlin e o Big Brother – falando sobre a morte. O texto dizia que a morte nos pega desprevinidos, com uma conta dentro do bolso, indo para algum lugar. Por causa da morte, essa conta vai atrasar e a pessoa com quem falaríamos vai ficar esperando, irritada, e nunca diremos a ela o que queríamos dizer. Melhor seria – na nossa opinião controladora – não deixar nada em haver, ninguém esperando, nenhum projeto pendente. Mas, pensando bem, não dá pra ser ser diferente, porque sempre existem as contas, compromissos e projetos, porque o fluxo da vida é esse. Para pararmos, só mesmo com algo que se impõe, algo violento. Só uma morte.

Eu, agora, neste momento, estou vivendo algo muito difícil. Acontece com tanta gente e nunca deixará de acontecer com amigos e conhecidos, mas ao mesmo tempo é sempre algo único e complicado. A necessidade de agir, mudar tudo, vencer o medo e buscar uma vida melhor, a longo prazo. Ao mesmo tempo, os probleminhas cotidianos – receber o pessoal para a limpeza da caixa d´água, a unha descascada, o almoço marcado com antecedência, a sacola de doações, andar na rua em meio a esse calor.

Quem me conhece bem sabe que me preocupo tanto em fazer as coisas da melhor forma, em controlar todas as variáveis, em não prejudicar ninguém que acabo metendo os pés pelas mãos. Pra algumas coisas não existe melhor forma, apenas menos pior. Então, vim aqui dizer que se eu sumir, é porque precisei de um tempo. Se eu não sumir, é porque o tempo tem se arrastado. Só quero não me obrigar a mais essa constância, ok? Beijo.

Surto

O rapaz tinha esquizofrenia. Foi para sua terapeuta, apenas para sua terapeuta, que ele contou que estava apaixonado pela professora. Ela havia marcado uma prova. Ele começou a fazer planos: ele iria tão bem, mas tão bem naquela prova, que isso chamaria atenção da professora. Uma vez que ele chamasse atenção da professora, eles poderiam conversar, se aproximar, ela ficaria ciente do que ele sente por ela e eles poderiam viver um romance e serem muito felizes.
Algum tempo depois a família ligou para a psicóloga. O rapaz havia surtado. Ela foi correndo vê-lo, que já havia sido atendido e medicado, tal era seu estado. Ele havia entrado em surto por uma bobagem, por um nada, tal como se crê que são os surtos psicóticos. Ele estava assim depois que havia recebido uma nota baixa em uma prova.
Ela, apenas ela, a terapeuta, entendeu o motivo do surto. Não havia nada de aleatório ali.
Essa história me faz pensar que realmente nada do que é humano me é estranho.

Esfriamento

Eu conheço a Suzana há um ano e ela conheceu meu blog há poucos meses. Eu comentava que tinha blog e ela não tinha lá muita curiosidade, até que um dia entrou e gostou. Ela é leitora da Marta Medeiros, que escreve textos curtos e até eu sei que vende muito, sempre se esbarra com alguma coisa dela por aí. “É rápido, é fácil de ler, faz muito sucesso. Eu acho que o que você escreve tem tudo pra dar certo como livro”, a Suzana me diz. Há dias ela chegou com uma novidade, o caso de mulher de um amigo que publicou um romance com uma editora pequena, bancou metade da publicação. “Junta os textos, faz uma coletânea, escreve um romance! Eu juro que eu compro”.

Suspiro.

Eu sei que em algum lugar em mim, isso é tudo o que eu quero. É nessa direção que eu tenho feito as coisas, é pra lá que minhas preces vão. Sei também que eu não tomei nenhuma decisão no sentido de mudar de planos. Só deixei tudo meio de lado. Mais do que gostaria, na verdade. Vou lá, dou uma chacoalhada de vez em quando e volto pra lida. Tenho andado tão ocupada, tão cansada. Nada demais, nada que me faça sofrer, muito pelo contrário – estou aprendendo coisas novas, resolvendo problemas, abrindo trilhas. Tudo isso tem me tomado tempo e energia. Descobri que até pra ter certas ambições as duas coisas são importantes. “Só mais um pouquinho, só mais um pouquinho”, é o que tenho dito a mim mesma.

A Érica me marcou nesse vídeo lindo do Bolero de Ravel e ele me pareceu exatamente o que tenho vivido, o que são certas fases. O Bolero é essa música conhecida e marcante. Ela é repetitiva, envolvente, cresce com o ouvinte. A coreografia segue a mesma linha. Vejo essas imagens e penso no grau de concentração e força que ela exige do seu solista. Pra começar, nos primeiros minutos a panturrilha já deve ficar em chamas… Eu me coloco no lugar dele e imagino o desafio se manter concentrado todo esse tempo, como deve ser difícil até guardar a coreografia. Ele precisa manter o mesmo nível de energia por mais de dez minutos – primeiro, de forma mais contida e controlada, depois com saltos, equilíbrios e movimentos que exigem grande limpeza. A música se repete, a coreografia se repete, e como não se entediar, como dançar com energia renovada, como quem a cada momento diz algo pela primeira vez ou totalmente diferente.


Foco, energia, constância. É o que tenho precisado.

E esse calorão, hein!?

Eu não sei quanto a vocês, mas eu já cansei dessa brincadeira de todo dia ser a temperatura mais alta do ano. Olha, o recorde já é nosso, tá registrado, não precisa mais.
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As pessoas saem para comprar ventilador e não encontram. Nem piscina de plástico. Também, imagina: aqui deviam vender uns cinco ventiladores por ano. Agora vendem cinco por hora. 
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Curitiba sempre foi muito convencional com relação a roupas. Quando eu era xóven, bastava colocar uma bermuda acima do joelho pra não conseguir entrar no ônibus direito. As coisas foram mudando e nesse calor inédito, estão totalmente liberadas. Acho até interessante de ver: gordas ou magras, jovens ou velhas, bonitas ou feias, estilosas ou convencionais, todas as mulheres tiraram seus vestidos e roupas curtas do armário.
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Digo que a única coisa na vida em que ser mulher é melhor do que ser homem é no quesito roupas de verão. A única. Para todo resto, sou capaz de pensar em vantagens para eles. Nós sabemos que o mundo está construído para o lado deles. Mas com relação a roupas, há!, com relação a roupas eles estão numa armadilha. Nós temos rasteirinhas, alcinhas, shortinhos, mini-blusa… onde quer que uma mulher sinta calor, é possível deixar fresquinho e ainda ficar legal. Já um homem abre mão de toda dignidade se coloca uma simples regata.
 
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Descobri que não tenho envergadura moral pra ser uma mulher de cabelos compridos. O meu cabelo está num comprimento que me permite um rabinho ridículo, parecendo um pincel de barba, e o faço. Ando pelas ruas e as mulheres com seus cabelos longos soltos sobre as nucas suadas, firmes e fortes. No máximo, colocam de ladinho. Ma nunca.

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Esse solão me lembra meus tempos de Salvador. Meu pai mora há poucos minutos da praia e todo mundo esperava que eu passasse meus dias lá, no mar. Eu adoro o mar. Só que eu encalhava muito antes e passava o dia todo na varanda de casa. Me dava uma certa preguiça, sei lá.
 
Agora quando estou em casa e vejo o sol inclemente que faz lá fora, tenho a mesma sensação daqueles dias. O problema é que agora não estou de férias.

Casa pequena

Oi Ale,

Já comentei com você, não lembro por que meios, que compartilho do teu fascínio pelas Casas Pequenas. No teu caso, como vim saber mais tarde, o fascínio tinha a ver com a própria necessidade de encontrar um lugar para morar. Já eu tenho a minha própria casa. Para as revistas de decoração, ela é considerada uma casa pequena – sério, as dicas para deixar os espaços “mais amplos” servem para ambientes com até 200 m² – só que está longe de ser uma Tiny House. Aí, como fazer quando a gente já tem a sua casa, nem de longe tão pequena, e começa a achar que a graça é morar num lugar bem pequeno, bem básico, como mundo como quintal (como você mesmo diz)? Comecei a ficar com vontade de vender a minha casa e me mudar pra um container…

 

Claro, não faz o menor sentido. Ainda mais se levarmos em conta a bolha imobiliária que estamos vivendo. Comecei a perceber que o meu fascínio pelas casas pequenas tinha a ver com os espaços bem aproveitados, funcionais, com o apego ao simples e essencial. Mais espaços acabam atraindo mais coisas, mais armários, mais caixas, e quando vemos está tudo preenchido. Eu trouxe comigo um monte de relíquias de família, achando que teria espaço o suficiente pra tudo. Mas não, não tinha. Outra questão é que moro na minha casa há uma década, e me frustro em perceber que ela não é o que eu queria. Assim que casei, fiz assinatura de revistas de decoração, me inteirei de acessórios e possibilidades, mas tudo sempre foi difícil demais, caro demais. Numa casa pequena tudo isso ficaria mais fácil, coloca um ou dois móveis e está feita a decoração.

 

Foi aí que eu decidi fazer da minha casa-não-tão-pequena uma casa pequena. Se o que eu gostaria é de ter um motivo para viver com menos, por que não fazer isso agora? Tenho agido como se fosse me mudar para um lugar menor. Tenho olhado para as minhas coisas e me perguntado se há alguma maneira de ter menos. CDs, por exemplo. Ocupa tanto espaço ter CDs, sendo que cabe tudo em um pendrive. Tenho descoberto coisas que eu nem sabia que tinha, tenho feito escolhas libertadoras. Até mesmo o problema da decoração tem ficado mais fácil. Ao invés de esperar uma decoração ideal, ou armários sob medida que possam esconder minha bagunça, percebo que fica mais fácil quando há menos coisas para organizar.

Era isso. Beijo e parabéns pela newsletter, que tanto nos inspira.