A cena mais icônica do filme Uma Linda Mulher nada tem a ver com Richard Gere sendo lindo ou declarando seu amor à prostituta vivida por Julia Roberts. O que lavou a alma de todos que viram o filme foi o momento da desforra. São duas cenas: na primeira, Julia entra numa loja chique com um bolo de dinheiro, mas mal vestida. A vendedora a humilha. Na segunda, ela já foi ajudada e entra na mesma loja e a mesma vendedora vem toda solícita, de olho na grande venda que faria. Júlia Roberts diz que já apareceu lá no dia anterior, que era aquela mesma mulher que foi destratada, e que – como estava claro pelas novas roupas – ela, a vendedora, havia perdido uma boa comissão. E sai. A primeira parte é com o que nos identificamos: ser maltratado por um julgamento mesquinho, não ter a menor chance de mostrar seu valor porque alguém nos desumaniza com base nos seus preconceitos. A segunda é com que todos sonhamos, o improvável: nossa situação muda radicalmente e de pessoa que fica abaixo passamos a ser uma do alto, de recebedores passamos a provedores, e aquele que nos rejeitou tem condições de perceber isso e que a sua atitude passada a fará apenas assistir, sem poder compartilhar da nossa abundância.
Tá na Bíblia, em Matheus 23:12: os humilhados serão exaltados. Eu adoro as brincadeiras que se faz na internet com essa frase, de perguntarem quando é que vai ser mesmo, se os exaltados podem liberar o espaço de uma vez, que aconteceu bem na hora que a pessoa estava dormindo… Tem versão corretor automático que diz “os humilhados serão assaltados” – como se não bastasse já ser humilhado… A frase que eu mais gosto é aquela que diz que foi um erro de tradução, o original seria: “os humilhados ficarão muito exaltados”, o que combina muito mais com a realidade. Há, na sentença “os humilhados serão exaltados”, uma promessa. Eles serão – não se diz como, onde e nem como. O cristianismo (e acredito que a maioria das religiões) trabalha com a noção do valor subjacente da pobreza. Hoje e aos olhos dos homens, você é um humilde que não vale nada, mas aos olhos da Divindade, você importante e valioso. No futuro, o seu valor anônimo o colocará muita posição de destaque. Se fosse só isso, seria só a Julia Roberts ganhando dinheiro; ser um humilhado dá satisfação (futura) dupla, porque também tem desforra. “Qualquer, pois, que a si mesmo se exaltar, será humilhado” (Matheus 23:12). Não é só subir de posto, ainda tem a satisfação de ver aqueles que se achavam melhores em posições ruins.
Se quisermos dar uma de advogado do diabo e falar do ponto de vista da vendedora, ela não estava fazendo nada além de tentar otimizar o seu tempo – as chances estatísticas de uma mulher mal vestida estar na verdade com um bolo de dinheiro para gastar na sua loja é muito pequena. Então, ela não quis deixar de atender uma cliente com potencial de realmente gastar dinheiro com uma mulher pobretona que provavelmente apenas olharia os produtos sem conseguir comprar. Mas se pensarmos nessa história de filtrar clientes, talvez a vendedora pudesse ter desconfiado de que havia algo de diferente naquela mulher, tão fora dos padrões. Há um shopping em Salvador chamado Iguatemi que tem vários andares, e o interessante é que à medida que vamos subindo os andares, as lojas vão ficando mais caras, como se o shopping fosse a materialização de uma piramide social. Ninguém costuma entrar inocentemente em lojas – sem que ninguém nos proíba de nada, cada pessoa entra obedientemente apenas aonde se encaixa. Só de saber aonde vamos, num shopping ou numa rua, e isso já nos fornece informações sobre ser um comércio popular ou de elite. Cada loja tem um tamanho, uma vitrine, um cheiro e uma decoração que nos fornecem mais informações – tem sacolão de desconto e crediário ou manequins mais lindos do que gente e muitos espaços vazios? São informações prévias, captadas de forma muitas vezes inconsciente, que espantam os mais simples do espaço dos mais ricos. De vez em quando, a pessoa pode ignorar todos os sintais e tentar entrar numa loja aonde ela não pertence e o resultado costuma ser triste: se tem uma coisa que conscientiza da diferença do valor dos diversos tipos de trabalho é perceber como o supérfluo pode ser caro e inaccessível para quem não é um “deles”.
Mas nem tudo é uma questão de apenas ter dinheiro ou pertencer a uma classe social, senão o sentimento de humilhação não seria tão comum. O antropólogo Irving Goffman, no seu livro Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, nos informa que todos nós, em algum momento das nossas vidas, seremos estigmatizados. Em algum momento colocaremos nossos pés em lugares que não dominamos, iremos nos ver diante daqueles que não concordam com o que somos e aí, mesmo para o mais poderoso, virá a humilhação. (É claro que existem características que diminuem bastante essa ocorrência, e elas são bem conhecidas: ser homem, heterossexual, fenótipo europeu, nível superior, etc.) Ser iniciante é uma fraqueza quando você está no meio dos que estão lá há mais tempo, mas isso não quer dizer que todos os problemas serão resolvidos quando você estiver na outra ponta, como profissional experiente – aí o estigma pode ser o de ser velho. Mesmo aquele rico pode ser estigmatizado diante daqueles que são ainda mais ricos, ou que possam ser ricos e talentosos, ou ricos e jovens, ou quem sabe até talentosos e jovens, num lugar onde a riqueza não seja considerada critério de maior valor. A esta questão do valor, Bourdieu chamava de capital simbólico. Quando se passeia por diversos grupos, cada um deles têm diferentes capitais simbólicos, ou seja, cada grupo elege o que ele considera importante ali. Embora para a grande maioria dos grupos o dinheiro seja inevitavelmente importante, existem sempre outros critérios, o que nos oferece outras maneiras de ser exaltado ou humilhado. Entre bailarinos, por exemplo, rotacionar a coxa para fora é de extremo valor. O capital simbólico pode ser quantidade de tatuagens, não ter medo de altura, a capacidade de prender o fôlego, conseguir adaptar gestos e fala, resistência à dor – podem ser o tantos quanto a imaginação humana alcançar.
Esse não é, afinal, o grande bem e o grande mal da internet, a sua capacidade de acolher qualquer tipo de ideia? Pessoas que fora do mundo virtual não encontravam nenhum espaço que as valorizassem ou com gostos subversivos demais para serem pronunciados em voz alta, encontraram iguais e passaram a ter a possibilidade de possuidoras de grande capital simbólico – o humilhado pode ser exaltado, mesmo que seja dentro do seu mundinho. De fora, por mais que certos grupos pareçam doentios, eles oferecem aos seus membros um sentimento de pertencimento – sentimento básico que não deveria ser negado a qualquer ser humano. Eu vejo com simpatia que seja possível ser um “famoso de twitter”, que se seja famoso por nicho, que exista uma fama possível aos comuns. Mas não tem como achar que está tudo bem, que cada um busque a sua turma e seja feliz, quando vemos por parte de alguns desses grupos instigação a comportamento violento, preconceito e/ou negação da ciência. Alguns indivíduos, em troca do pertencimento e identificação com grupos, passam a ser mais desviantes do que antes, têm exacerbadas suas piores características. O que torna um grupo de pessoas uma sociedade não é apenas a proximidade geográfica, mas também a visão de mundo que partilham, sua cultura. Vozes dissonantes, com outras propostas de capital simbólico são, ao mesmo tempo, renovação e risco para a sociedade abrangente.
Também temos que levar em conta que ser humilhado, exaltado, assistir a queda dos inimigos – tudo isso são formas de interpretar os fatos, e de maneira bastante apaixonada e belicosa. Ter dinheiro ou não ter dinheiro é um fato, chamar isso de humilhação ou exaltação é uma forma de olhar a realidade. Acho que todos nós conhecemos pessoas hiper sensíveis que acreditam que tudo o que acontece ao seu redor é dirigido a ela; quando um olhar nunca é apenas um olhar, quando a pessoa que se afasta dizendo que está com pressa com certeza inventou uma desculpa e por aí vai. Quem encara a vida dessa maneira torna a sua existência e a dos que a cercam um inferno. Mas não gosto quando esta constatação – de que os fatos sempre passam pelo filtro da interpretação – torna-se coaching e gera interpretações simplistas, do tipo: “humilhação não existe, é só olhar para os fatos de forma positiva”. A não ser que a pessoa esteja totalmente por fora da vivência comum – como precisar trabalhar para ter dinheiro e com ele comprar roupas e comida – não tem como apenas querer interpretar diferente. Mesmo que fosse possível fazer isso apenas por um gesto de vontade, tampouco seria bom, porque também geraria respostas inadequadas. Se você foi maltratado numa loja, talvez que isso estrague o seu dia seja opcional, mas você precisa saber que foi maltratado para poder decidir o que fazer em seguida. A solução que eu mais gosto para esse dilema não é a responsabilização da vítima, (quem mandou se sentir mal com o tratamento da vendedora?) e sim lutar para que ninguém precise ser exaltado, porque ninguém foi humilhado.