Em busca de um lugar quentinho

Quando eu li a série Sapiens, de Yuval Harari, especialmente o primeiro livro – Sapiens: uma breve história da humanidade -,fiquei com a sensação de que o autor é fã dos caçadores e coletores. Tudo pode ser apenas um recurso, porque ele precisava refutar um pensamento que está tão entranhado em nós que nos parece muito natural: se nós sobrevivemos a outras espécies, é porque somos melhores. Ou: o fracasso de padrões do passado atesta a superioridade do padrão do presente. Harari nos aponta que, em vários itens, os caçadores e coletores eram melhores do que nós, os sedentários. Um deles é a inteligência. Como vivemos em sociedades complexas e cheias de tecnologia, temos a impressão de sermos muito inteligentes, mais inteligentes do que jamais fomos; o autor nos aponta que, coletivamente, por causa da construção histórica do pensamento, podemos ter nos tornado mais inteligentes, mas como indivíduos não. O homem contemporâneo é, em comparação com seu ancestral caçador e coletor, pouco habilidoso, pouco desafiado, conhecedor de um número pequeno de rotinas, logo, menos inteligente. Além da inteligência, perdemos em força, em criatividade, em integração com a natureza, até mesmo em saúde… mas escolhemos esse caminho sem olhar para trás, em busca de algo muito caro: segurança. A segurança da barriga quentinha que apenas a agricultura pode nos dar. E a proteção gerada pela vida comunal.

Existe uma corrente filosófica chamada Contratualismo, da qual todos nós já ouvimos falar um pouco, e dela vem a ideia de Contrato Social. Todos os autores da corrente falam desse Contrato, apesar de diferentes concepções de homem e de como e porquê o Contrato é feito. Para Hobbes, com a ideia do “homem lobo do homem”, somente um poder absoluto e autoritário é capaz de impedir que os homens vivam em guerra constante. Já Locke acreditava num homem essencialmente bom e o Estado surge do consenso, para garantir os direitos naturais do homem. O Estado que não defende esses direitos perde a sua legitimidade e pode ser deposto. Quando estudei essa linha de pensamento pela primeira vez, achei que a teoria fazia sentido mas que havia algo estranho, algum ponto cego, e não sabia dizer o que era. O estranho está na noção de que exista algo antes do contrato. Não existem homens solitários, que falem a mesma língua e que vivam sozinhos tempo o suficiente para depois fazerem uma grande reunião e decidir um contrato. Linguagem, vestuário, moradias, instrumentos, direitos, deveres, cultura, ideais, leis – tudo surge ao mesmo tempo, tudo junto e misturado, gerado e modificado sem parar no convívio. Podemos sonhar com Tarzãs e Meninos Lobos, mas sabemos que um homem criado fora do convívio humano é apenas um animal em desvantagem. Ser um humano não se resume a ter um corpo humano.

Eu acompanhava a série Star Trek (primeira geração) quando era criança e tive a oportunidade de rever muitos episódios depois de adulta. Xinguei muito o Capitão Kirk! Mais de uma vez, a tripulação encontrou planetas que eram como paraísos. Eles tinham algo nas suas atmosferas que acalmavam as pessoas e lhes davam paz, então todos ficavam contemplativos e não queriam mais viver aquela vida de exploração espacial. (Imagine aquele típico cenário Star Trek, só com pedras e fundo colorido, e a tripulação deitada e conversando como se estivesse num festival da maconha). Kirk era sempre o que não se deixava contaminar e ele dava um jeito de arrancar todo mundo daquele estado. Era pra ficar infeliz e trabalhando mesmo. A justificativa dele era que aquilo era contra o espírito humano, que era a luta, a incompletude, a insatisfação, a ambição, em resumo, a infelicidade que nos tornavam grandiosos.

Seria Kirk retrato da época que a série foi lançada? Hoje acho que ninguém faria (e repetiria) uma defesa tão apaixonada de viver sob pressão, talvez porque estejamos vivendo pressão demais. Freud concordaria com Kirk ao dizer que uma vida toda voltada ao prazer não nos leva a nenhum avanço civilizatório; que o Princípio de Realidade, ao negar a satisfação imediata do Princípio de Prazer, apenas contribui para aumentá-lo. Não é difícil perceber que faz sentido; o alívio de um prazer represado é muito mais profundo do que um que se deixa realizar assim que o desejo surge. Eu tendo a concordar com Marcuse, que em Eros e Civilização, diz que o desenvolvimento do capitalismo fez com que nós pervertêssemos o Princípio de Realidade com a “mais-repressão”, jogando a satisfação da libido cada vez mais longe, até simplesmente ignorá-la.

Como os Estados Unidos venceram a Guerra Fria – não se pode dizer que um país que não existe mais possa ter ganhado, não é?- o sistema que eles representam é o padrão que venceu. Se venceu é porque é melhor, certo? Quando caiu o Muro de Berlim e as duas Alemanhas puderam se olhar, eu lembro das reportagens falando do quanto a cidade ocidental era mais bonita, colorida e conservada. Agora eu percebo que existe um movimento de olhar para esses mesmos restos de outra maneira. De olhar para os kommunalka – apartamentos comunais da antiga URSS – e ao invés de pensar que são feios, reparar que são grandes. O meu pai tinha um indisfarçável desprezo pela poucas conquistas dos filhos, que aos quarenta ainda não eram nada e não tinham nada, enquanto ele aos quarenta tinha casa própria, carro, sustentava a própria família e a da ex-mulher, viajava e gastava muito. No excelente documentário The True Cost (que não está mais na Netflix), além de mostrar a pobreza e a exploração daqueles que produzem as nossas fast-fashion, somos obrigados a encarar a nossa pobreza, nós, os consumidores. Se antigamente a pessoa tinha duas camisas e usava uma enquanto a outra lavava, ela também tinha a perspectiva de economizar bastante até comprar seu terreninho. Agora não, o terreno ou a casa própria se tornaram tão distantes para a maioria que o único luxo possível é o imediato, o da roupa bonita. Da minha parte, tenho pensado que estou bastante cansada do tal espírito humano insaciável e ambições sem fim.

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí

Emicida – AmarElo

Pedir para dez pessoas que viam e depois se tornaram cegas é trazer à tona experiências dolorosas. Teve um detalhe de um dos depoimentos que me doeu pela sua simplicidade. Um dos entrevistados contou que, certa vez, foi contratado por uma empresa apenas para fazer número. Ele foi deixado numa sala vazia na parte de cima do prédio sem ter nada o que fazer. Além da situação em si já ser deprimente, era ainda mais doloroso que o deixavam sozinho também no elevador. Ele entrava no elevador e, quando parava nos andares, as pessoas não entravam com ele. Aquilo me doeu porque vi a dor com que ele me contou, mas também porque eu também poderia ter feito o que aquelas pessoas fizeram. Elas ficaram tão sem saber o que fazer que preferiram fingir que não estavam lá, na esperança de que ele não percebesse.

Depois de ler a série de Philippe Ariès sobre a morte, eu nunca mais vi a cremação da maneira como via. Ele é um historiador do que se chama de História das Mentalidades e/ou História de Longa Duração e trata o caminho que fazemos desde a Idade Média até os tempos atuais para mostrar a nossa relação com a morte. As pessoas eram mais íntimas dos cadáveres, putrefação e morte em geral. As pinturas estão cheias de sangue, pessoas sendo degoladas, tripas de fora, cadáveres esverdeados. Há registros de pessoas que anunciavam que viveriam apenas mais alguns dias, e com isso tinham tempo de reunir a todos e resolver as pendências antes de partir – elas diziam que iam e iam mesmo! Os funerais eram longos, de uma semana pelo menos, e se enchia o recinto de flores para suportar o mau cheiro. Aqueles dias serviam para dar tempo para as pessoas se despedirem, viagens de carroça e cavalo eram demoradas… Mas também servia para se ter certeza de que o falecido havia realmente morrido e que não ia levantar de repente de uma catalepsia – fenômenos imprevisíveis para a medicina da época e que davam a impressão de que a pessoa foi e voltou do além. Fomos nos afastando de tudo isso, desse convívio carnal a morte, e ela foi se tornando tabu. Não queremos nem falar, como se isso atraísse e a morte em si não fosse inevitável, dizemos até Aquela Doença para não usar a palavra Câncer. O cadáveres foram ficando fisicamente distantes, sendo cuidados em lugares especializados e quase em segredo, e hoje rejeitamos até que reste um corpo. Queimamos, jogamos as cinzas no mar, apagamos qualquer resquício de fisicalidade.

O nosso afastamento do carnal fez com que Norbert Elias, já no século passado, lançasse a previsão que no futuro seríamos cada vez mais vegetarianos. Ele disse que explicaríamos isso de várias maneiras, como o amor pelos animais, os nutrientes, a preservação do planeta e etc., mas o que permitia fazer uma previsão segura sobre isso era a maneira como estávamos nos afastando da carne. Enquanto qualquer nobre educado precisava saber destrinchar um porco com elegância na frente de seus convidados, hoje compramos a carne preparados, cortes e bandejas higiênicas que dissociam aquele alimento de qualquer animal ou de morte. O problema com a morte não segue direção única, então não apenas rejeitamos a morte dos animais: também vivemos, ainda de acordo com Elias, um movimento de afastamento de pessoas velhas. A decadência física dos velhos nos lembra nossa própria decadência, e isso é desconfortável. Quando uma pessoa velha demonstra amor à existência carnal, como por exemplo fazendo sexo, ficamos horrorizados, sentimos aquilo como indecente – queremos acreditar que velhos são puros e esterilizados, iguais as bandejas de carne. Os velhos têm marcado no corpo a passagem do tempo e na presença deles é impossível esquecer a morte. Amamos a juventude, fazemos de tudo para parecermos eternos adolescentes. Aos velhos cabe o asilo e os lugares escondidos, porque assim quando eles somem também não fazer nenhum barulho, ninguém nem vê o corpo.

Uma vez indiquei para uma pessoa preconceituosa que assistisse Ru Paul´s Drag Race. Eu queria que ela conhecesse. E a defini como preconceituosa, mas era mais complexo do que isso – a maneira como foi criada e suas crenças religiosas lhe dizem que homossexualidade é errado, mas ela tampouco consegue aprovar que as pessoas sejam maltratadas por isso. Para ela, o desejo pelo mesmo sexo é como um problema sem solução, uma prova da imperfeição do mundo. Eu queria que ela visse, com Ru Paul, a história daquelas pessoas, que em vários momentos do reality falam de suas dificuldades com a família, emprego, imigração, relacionamentos. Mas eu queria que ela visse também o grande talento daqueles profissionais, as provas muito difíceis, como as drags precisam conhecer seus próprio estilo, encontrar maneiras de tornar o corpo mais feminino, serem interessantes, representar, dançar, atuar. Assistir o programa nos faz enxergar drag menos como algo folclórico e mais como um trabalho feito por pessoas comuns. Mas a pessoa a quem sugeri ver o programa não quis, alegou que achava tão doloroso ver como os gays sofrem que ela não ia ver. E fim.

Já me aconteceu mais de uma vez de contar dramas aqui do “nosso lado” (esquerda) e ser desmentida sem dó. Você conta algo como o que está acontecendo com a Manuela D´Ávila, de enviarem ameaças de estupro para sua filha de cinco anos, ou histórias difíceis de racismo ou preconceito de classe e o ouvinte carimbar: “é mentira”. Para algumas pessoas, quanto mais violenta e injusta a história, maior a prova que “a esquerda inventa essas coisas para se vitimizar”. Negros exageram quando dizem que pessoas menos qualificadas ficam com as vagas de emprego, mulheres andam por aí se insinuando e não mencionam isso quando reclamam de assédio, entregadores de aplicativos atravessam a cidade em bicicletas por gosto, etc. Eu vejo que não é a mim ou as vítimas das histórias que essas pessoas desmentem, e sim o mundo que é descortinado. Como encarar o fato de que o mundo pode ser tão ruim e continuar vivendo; que existem pessoas que fazem o mal sem a menor culpa e algumas delas podem ser meus vizinhos; que enquanto estou tranquila outros são tão injustiçados; que existam problemas tão grandes e sem solução? Elas se recusam a ver o lado ruim, menos ainda que possam estar envolvidas nisso quando abraçam certas idéias. A intenção das pessoas que não entravam no elevador porque havia um cego lá dentro jamais foi magoar ou serem preconceituosas – mas foram, e muito. O problema é que somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo que calamos e o que preferimos não lidar.

Vai parecer ser um post político mas não é

Pensei nisso quando li sobre o SNI, Serviço Nacional de Informações. Ele foi criado (ou fortalecido. Estou fazendo o post de memória, porque é apenas uma reflexão apolítica) para combater a ameaça comunista ao recém-criado Regime Militar – que gostava de se intitular Revolução de 64, Contragolpe de 64, justamente porque era centrado na ideia de que o Brasil estava na iminência de se tornar um país comunista. Vejam bem, um órgão nacional, que centralizava informações. Tinha escuta telefônica, funcionários, polícia, fichas com biografias de vários suspeitos, espionagem. O que também quer dizer que tinha sede física, orçamento, funcionários públicos, secretárias, gente pra carimbar, gente pra ir ao banco, o escambau. Isso pra não falar do braço violento disso tudo, com os torturadores. Tudo para combater a ameaça comunista que vinha de jovens, na sua maioria universitários. Mesmo com idealismo, com ajuda soviética e com inteligência, era óbvio que o Estado ia acabar ganhando essa queda de braço. Ganhou. E quando acabaram os jovens comunistas, eles começaram a partir para cima de outras pessoas, mesmo sabendo que elas não estavam travando guerra ideológica nenhuma. Porque, veja bem, o que as pessoas esperavam? Que aquelas pessoas, funcionários, declarassem que o trabalho delas acabou, recolhessem todos os papéis, devolvessem as mesas e os imóveis e pedissem demissão?

Penso que temos diversos SNIs no cérebro. Vi um documentário que compara nossos hábitos a marcas de esqui na neve, que vão se tornando cada vez mais fundos quando alguém passa por cima, até chegar ao ponto de não conseguir se desviar dali. Você tem certeza de que cada dia é uma tristeza igual a outra ou que é realmente necessário e racional sofrer de maneira intestina a cada notícia?

ja posso ir

A conquista do campo

Num réveillon que nem lembro qual, eu estava vendo TV tediosamente e encontrei uma série sobre brinquedos que marcaram nossa infância. Parecia aqueles apanhados nostálgicos que sempre aparecem nas redes sociais: a pessoa junta hits dos anos 80, coloca poucos minutos de cada, nos sentimos velhos e acabou. Então, quando vi que havia uma série sobre Brinquedos Que Marcam Época na Netflix, achei que fosse aquela e não me interessei muito. Não é. Cada programa tem um brinquedo famoso como tema – Transformers, Lego, Barbie, Hello Kit, etc – e conta a história dele. O programa entrevista os criadores, fãs, conta como foi lançar no mercado, as estratégias, as mudanças, os percalços. É muito interessante ver que no início se vendeu até tanques com a franquia Star Trek, bastava colocar um adesivo. De como se chegou na Hello Kit, do porquê a Barbie ter aquelas medidas.

Numa relação não tão evidente, havia um outro documentário na Netflix (acabo de consultar e acho que foi retirado de catálogo) sobre A Mente de Einstein. Além de explicar os conceitos, ele mostrava o trabalho que houve para consolidar a teoria no campo. Hoje, dá a impressão de que bastou Einstein publicar e no momento seguinte já estava tirando foto com a língua de fora. Além das dúvidas, havia a dificuldade em provar, o desafio pessoal de desenvolver os próprios cálculos e até mesmo fazer isso antes de alguém que já pegou a teoria lançada e precisava apenas provar.

É sempre bom relembrar que nada nasce pronto, quem olha o resultado final não adivinha o trabalho que teve por detrás, etc.

Mas tão bonitinho o silêncio

A intenção dela não foi nos dar uma vivência de racismo. O que aconteceu é que ela foi convidada para a festa de casamento mais chique da sua vida, no Castelo do Batel, o lugar mais chique possível para se ter uma festa em Curitiba. Com meses de antecedência ela nos consultou sobre a questão de ter um acompanhante, e numa das diversas brincadeiras, eu lhe sugeri que fosse com uma amiga e fizesse com ela um falso casal lésbico, ia ficar super moderna. Ela então me disse que, de castigo, caso ela não arranjasse um acompanhante para a data, eu teria que ir de lésbica com ela e ser a masculinizada – aproveitávamos o cabelo curto e já ia de terninho e pouca maquiagem. No fim, deu certo e eu não precisei ir. Nos dias seguintes, estávamos doidas pra saber da festa, vimos fotos lindas. Lembro bem também do nosso silêncio quando ela nos contou que, assim que estacionou o carro e saiu dele maquiada e produzida, os seguranças a mandaram estacionar nos fundos, porque era lá a entrada de funcionários. Dentro da festa, foi preciso darem uma carteirada nos garçons, porque eles serviam todo mundo menos ela. Talvez pior ainda tenha sido que nós achávamos que ela iria (ou tinha que) ir embora, indignada, e ela nos explicou que isso é normal, que se fosse se retirar a cada episódio racista não iria mais a lugar nenhum.

Também foi sem querer que eu e uma amiga iniciamos uma discussão política no berço de um lugar bolsonarista. Agora tem muito bolsominion arrependido, classe média que se vê como rica, que foi atingida por corte em saúde, concursos, alta do dólar, aumento do desemprego, enfraquecimento das exportações. Mas existem também aqueles que estão tão acima na piramide que não foram pegos por nada disso, ou que têm tanto que mesmo tudo isso come apenas a bordinha sem importância do seu patrimônio. E foi uma dessas pessoas que começou seus argumentos dizendo que não havia nada de novo, que esta crise é igual a todas as outras crises, que as loucuras ditas agora são iguais a todas as outras loucuras ditas antes, mas tudo isso é normal e nem merece registro porque foi o governo petista que criou um legado realmente imperdoável: “o PT criou a luta de classes, o nós contra eles”.

O racismo pra mim é muito abstrato, é uma coisa que acontece com outros, relatos que me surpreendem e me chocam. Quando o problema não é seu, quando você está no grupo privilegiado, é como se visse certos problemas desde a cobertura de um arranha-céu – você está tão alto que as pessoas na calçada são apenas cabecinhas, tudo parece pacífico e igual. O agora é diferente porque as pessoas reclamam. Indígenas, gays, mulheres, negros, pobres. O pessoal da cobertura não via e está sendo chamado a ver. E a reação de muitos é: que pena que o gay não é discreto como antes, que o negro não ria da piada racista como antes, que a mulher não seja passiva como antes. Agora a moça do café não quer mais trazer a filha pra aprender o serviço também, ela quer viajar e colocar os filhos em faculdade. Será que antes a empregada via que a patroa gasta numa noite mais do que lhe paga de salário num ano inteiro e achava OK, só passou a se indignar agora? E o problema está na indignação e não na disparidade? Ninguém nega as profundas desigualdades sociais do Brasil, desigualdades estas que nasceram com o país, mas acha que era tão mais bonitinho antes, um povo tão cordial, tão mais barata a mão de obra… Minha conclusão é que, se você sofre e tem do que reclamar, reclame mais, reclame mais alto, grite para todo mundo ouvir. Não permita que usem o teu silêncio como desculpa.

 

Curtas de obviedades (ou não)

overthinker

Eu tenho meio dúzia de arrepios ruins quando alguém decide ver um espetáculo de flamenco e vai justamente num que eu considero ruim. Porque a primeira vez de qualquer coisa é muito determinante. Pode ser mágico, pode fazer com que ninguém queira experimentar de novo. Se na primeira vez tudo é ótimo e tudo é novidade, a cada repetição vamos entendendo mais, tendo mais com o que comparar, descobrimos mais, captamos sutilezas. Ou seja, ser exigente é a consequência natural de experimentar muitas vezes. Alguns são assim com livros, outros são assim com shows de rock. Nem tudo é arrogância, às vezes é o excesso de bagagem.

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Quando eu era nova falávamos em injeção na testa. Era uma expressão que vinha no final da frase, “… até injeção na testa”. Significava uma ação tão dolorosa quanto inútil, era uma expressão pra mostrar situações extremas de forma engraçada, dizer que até isso você estava topando. Agora injeção na testa nos faz pensar em botox e tratamentos estéticos em geral, então as pessoas pagam caro pra levar injeção na testa. Ou seja, as palavras são as mesmas mas o sentido mudou completamente ao longo dos anos. Quando o mundo muda, as palavras e as expressões mudam também – e nem sempre estamos a par da diferença se não entendemos o contexto. Tipo dizer que o nazismo é de esquerda porque o partido nazista se chamava, numa tradução literal, Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Acreditem no que os alemães dizem, eles entendem mais de alemão e nazismo do que nós.

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Toda geração tende a achar que as coisas estão piorando. Nossos avós pensavam assim, nossos pais pensavam assim e, se você é um pouco mais velho, tende a olhar para os xóvens e se irritar da maneira como eles são barulhentos, usam cueca pra fora da roupa, sujam o corpo com tatuagens e são bissexuais. Quando nascemos, somos muito abertos à aprendizagem, totalmente abertos; à medida que se envelhece, a capacidade de assimilar o novo diminui e o filtro aumenta. Mais velhos, somos praticamente incapazes de aprender e filtramos tudo. Somos, enquanto geração, a cristalização de algo, e a sociedade nunca pára de mudar – se parar, ela morre. Com um modelo cristalizado, tudo o que se afasta dele sempre parecerá uma perda. Na verdade, para além dos nossos olhares viciados, o que vem depois de nós não é pior ou melhor, é diferente. E as pessoas que chegam depois de nós terão dores e alegrias diferentes.

As ilusões armadas

elio gaspari

Eu nunca fui do time que achou que não existiu ditadura, eu fui criada numa casa onde se ouvia Chico Buarque e se explicava que eram músicas de uma época que não se podia falar abertamente, que notícias eram substituídas por receitas de bolo, que pessoas sumiam e reapareciam “suicidadas”. Por isso, nunca senti necessidade de ler sobre a ditadura. Mas estou sempre lendo alguma coisa, e passo por períodos maníacos que leio, vejo e pesquiso tudo possível sobre o mesmo assunto. Meus interesses me levaram sem querer à década de 50, e me vi fã de toda aquela época. O Brasil bombava como destino turístico chique, bombava com bossa nova, mandava Carmen Miranda pra fora, descobria o samba da melhor qualidade dentro, construía Brasília, recebia grandes pesquisadores. Era tudo tão legal que eu quis saber porquê deixou de ser tão legal, o contraste entre aquele Brasil de 50 e o Brasil que eu nasci que sempre se odiou era muito grande. Fui pela lógica: se era assim em 50, a resposta está em 60. Foi aí que eu caí no período militar. Escrevi no FB: amigos, o que devo ler para entender o golpe de 64? Foi assim que cheguei ao As Ilusões Armadas, a série de 5 livros de Élio Gáspari. Achei os 4 primeiros na Biblioteca e o último volume teve que esperar pela compra do Kindle.

Os livros são interessantes, bem escritos, consistentes; a série é um clássico, basta ver as críticas. Durante a leitura me aconteceu algo que jamais havia me acontecido na vida: eu passei a ter pesadelos, como se eu visitasse os locais. Lembro do pior deles, logo depois de ter lido sobre o Araguaia. Havia uma pessoa que iam matar, mas saiu uma ordem que cancelava. Acho que ele era enfermeiro. Lembrem-se que na época não existia celular, se a pessoa não estava do lado de um telefone, não tinha como avisar. Era uma questão de tempo – haviam saído atrás dele, outro saiu para tentar avisar que não era mais pra matar. Nos pesadelos, eu sempre chegava no local e não havia ninguém lá, a violência já havia acontecido e as pessoas foram embora. Mas o chão estava cheio de sangue. Poça no lugar onde a pessoa morreu, marcas do corpo que foi arrastado. A dor, os gritos, a violência. As paredes se lembravam e eu sentia tudo mesmo sem ver.

Nunca quis ser “especialista” em ditadura, li o livro pra mim, gosto da dura verdade. Existem muitos motivos que levam as pessoas a negar que tenha havido ditadura, ou que foi um preço necessário, ou que não foi tão violenta assim, ou que só foi violenta com uns poucos ou que mereciam. Acho que o que há de pior ao estudar este período é olhar o mal tal como ele é – o mal não precisa de Diabo, ele é humano e pode foi institucionalizado com cartilhas, especialistas e contracheques.

 

O gramado

grama-esmeralda

Nunca mais olhei grama da mesma forma depois que Harari – posso quase jurar que foi no Homo Deus – contou brevemente a história dela. Grama é um símbolo de status. Lembre-se que antigamente quase a única profissão possível era trabalhar com a terra e a maior riqueza era ter terra. Imagine que alguém era tão rico, mas tão rico, que podia se dar ao luxo de ter um monte de terra inútil. Terra coberta de um verde que não serve pra nada. E que pra ficar bonito precisa de manutenção constante. E manutenção de gramado não é só cortar, precisa ver o mato. Antes de mudar pra casa, eu achava um crime que as pessoas tampassem a parte com terra, achava que se fosse eu, manteria tudo o que pudesse com grama e plantas. Aí você coloca a grama e com o tempo, por mais que você cuide, o mato se prolifera de um jeito que a grama original já não existe mais, você precisa arrancar tudo e trocar por uma grama virgem. Lembrei disso porque choveu e corri pra arrancar os matos que crescem na minha calçada. Mandei cimentar pra não ter trabalho e praticamente nasce uma forragem nova de mato todo mês. Corri porque finalmente choveu bem é quase impossível arrancar mato quando a terra está seca, de modo que esperei, vingativa e rancorosa, enquanto o sol castigava e eles se fortaleciam. E lá, acocorada e estragando minha coluna, me dei conta de que quem inventou a grama não arrancava mato.

Uma historinha já previamente descontextualizada

princesa

Tenho quatro anos de diferença do meu irmão mais velho. Minha mãe contava umas histórias espíritas para ele – assim como outras tantas, tradicionais, modernas, de memória de livros, ela nos contava muitas histórias. Ela contava pra ele e eu estava por ali, brincando. Aí quando ela resolveu que eu tinha idade pra ouvir, eu achei ruim que entre uma “contada” e outra, ela tinha esquecido de detalhes e eu lembrava deles. “Então você estava fingindo que estava brincando e estava ouvindo tudo?”. “Sim”.

Era um homem muito mau e muito poderoso. Ele ficou a fim de uma mulher, que já era casada. Ele mandou prender o marido dela e disse que só devolveria se ela dormisse com ele. Ela cumpriu a parte dela no acordo, mas ele achou pouco apenas devolver e mandou furar os olhos do marido. Quando chegou a hora de entregar o marido para a moça, ele ficou escondido para ver e dar risada. Achou que ela ia xingar, esbravejar. A moça viu o marido cego e apenas ficou triste e o acolheu com todo carinho. Eu sempre imaginei o homem mau atrás da moita, a câmera por detrás do ombro dele. A moça se ajoelha e ajuda o marido a se erguer, e eles saem juntos pelo pátio de pedra, ela o abraça pelos ombros. Lágrimas silenciosas descem pelo rosto dela. O homem mau não consegue dar risada. Naquele momento surgiu a primeira luzinha de bondade dentro dele.

Um beijo a todos que também estão tristes e abraçados na sua ferida.

Perda de valores, vanguarda e flamenco

Não faz muito sentido pra mim, mas tenho amigo gay que dança flamenco e é daqueles que se enfurece com a “perda dos valores”. Ele é mais velho, não é dessa geração que se assume desde a adolescência, ouve músicas e tem ídolos gays, “dá pinta” por aí. E o flamenco, como todo mundo que faz flamenco sabe, já foi uma dança muito subversiva. Tem uma brincadeira que eu faço, quando surge uma dúvida de como um passo é feito: basta testar qual a maneira mais difícil que será aquela. Quase morri de tédio o dia que vi o ensaio de um grupo de dança tradicional, que pra cada dois passos para a direita, precisavam fazer dois para a esquerda, sempre precisava haver o mesmo número de pessoas a cada lado do palco e eles precisavam andar formando figuras geométricas. O flamenco é todo torto, faz as coisas em números ímpares, entra no meio dos tempos. Isso sem falar nas subversões ainda mais óbvias, como o fato da mulher puxar a saia pra cima na hora de dançar, a força e a sensualidade no palco, a presença. Pensem no que era isso há séculos, porque o flamenco existe pelo menos desde o século XVIII. Uma vanguarda que todos os bailaores sabem é que um ritmo chamado Farruca antes era dançado apenas por homens, e hoje as mulheres o dançam também, geralmente de calça e figurinos sóbrios para se manterem fiéis ao estilo. Se por um lado o flamenco foi uma vanguarda em relação à sua época e à outras danças, ele também teve sua vanguarda dentro da vanguarda, com a mulher ousando colocar uma calça, ousando expressar sentimentos que até então eram considerados exclusivos dos homens.

Mas o flamenco é uma arte, algo lindo, superior, meu amigo diria, nada a ver com os absurdos que tem por aí: gente pelada, peças onde se enfia a mão nos orifícios uns dos outros, desrespeito a figuras religiosas em exposições, que são vestidas de forma profana ou o profano vestido de religioso. A questão é que para as inovações surgirem é preciso ter liberdade. Outras metáforas me vêm à mente: um solo fértil, um respiro, a flexibilidade que permite que construções que recebem muito impacto não desabem. Não é possível, antes mesmo das coisas surgirem, julgar o que presta e o que não presta. É preciso aceitar o choque inicial, saber que é assim que funciona e, à primeira vista, pode ser até feio. O “fora dos padrões” pode ser visto como ameaça, assim como pode ser o experimental, diferente, novo, criativo – é através dos que fazem coisas que a princípio não nos parecem certas que a sociedade se renova. O chocante nem sempre está começando um novo caminho, ele pode estar informando algo que existe e em pouco tempo será comum. Como um dia foi com o flamenco, com a homossexualidade, com as mulheres usarem calças compridas. O que é idiota e sem sentido, o choque pelo choque, como peça de teatro onde um enfia o dedo no orifício do outro, não frutifica e o próprio tempo se encarrega de apagar.

No vídeo, uma Farruca de uma das escolas de flamenco mais tradicionais da Espanha, a Amor de Dios.

Uma história bem açucarada

história açucarada

Festa de quase trinta anos de formado. Há anos ela não via a turma. Um dos motivos era o marido. Talvez o motivo por detrás de todos os motivos – ela estava infeliz. Mas agora, separada, fitness, terapeutizada, realizada, ela achou que seria uma boa ideia. Encontrou os amigos, as amigas, o cara com quem ela se pegava de vez em quando sem nunca passar dos limites, porque era virgem. Foi divertido. Quando voltou para casa, muitas solicitações de amizade dos antigos colegas. Dentre eles, o tal que ela se pegava. Adicionou e começou a conversar. Foi tão na inocência que nem se deu ao trabalho de fuxicar, senão teria percebido de imediato que ele era casado e a conversa não teria seguido adiante. Mas não viu e acabaram se falando, se encantando, um terminava as frases do outro, desencontros pela vida afora, aquela coisa. Ele casado, mas já tinha tentado se separar, eu e ela nem nos vemos mais, o papo de sempre de homem casado que quer comer. Ou será que não? Em menos de um mês, pediu divórcio e estão muito felizes.

Não existe mais o Museu Nacional do Rio de Janeiro

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Grande parte da nossa população não entende o peso da perda de um museu. É só pensar na histeria em torno na exposição Queer e a tal performance “incestuosa”. E a parte do país que entende, é elitista demais pra querer educar a outra parte – mais do que isso, tem feito de tudo para reduzi-la à subsistência. Tem dias que é duro demais.

Vai lá, vota em candidato que não quer ter nem Ministério da Cultura.

Leão no apartamento

leão

Parece Cortázar mas é Animal Planet. Lembrei e fiquei com vontade de contar.

Era uma série que só falava de casos de pessoas que adotaram grandes felinos (na sua maioria) e acabaram morrendo por isso. Não sei se o recorte do programa dava uma impressão errada, vai ver que fora os casos descritos existem milhares de pessoas com leões, onças e jaguares de estimação e que vivem muito felizes com elas; no programa, todos os retratados tinham uma relação tão apegada com os bichos que era algo doentio, como se o felino o dominasse. Se ter um gatinho doméstico em casa já deixa as pessoas meio servos deles, imagino que um gato de toneladas tenha um poder que enlouqueça um pouco. Essas pessoas ficavam cada dia mais fechadas no mundo delas, faziam tudo em função do bicho e com o tempo ficavam muito imprudentes – se aproximavam de fêmea furiosa no cio, de bichos famintos, etc. Aí um dia o bicho perdia a cabeça e atacava. Era só um rompante, igual memória curta de cachorro, mas como o animal era forte demais, um simples rompante desses era fatal.

O caso mais interessante que eu vi eram de dois irmãos que, não sei como, arranjaram um filhote de leão e levaram pra um apartamento. Se não me falha a memória o apartamento ficava no Bronx, era um lugar bem central. Um dos irmãos ficou com o leãozinho e o outro ajudou a guardar segredo. Claro que o lindo filhotinho foi crescendo, passou a comer muitos quilos de carne crua por dia, a ter uma pata do tamanho de uma cabeça e se sentia meio confinado. Mostraram imagens das paredes arranhadas de cima abaixo. O rapaz passou a viver em função do leão – ele não trabalhava e mal saída de casa, praticamente só saía para comprar comida. Os vizinhos só o viam de vez em quando no elevador. O outro irmão nem ia mais para o apartamento, mandava dinheiro e deixava coisas na porta. Eu fico imaginando a existência estranha de uma pessoa num apartamento submetida, apaixonada e hipnotizada por um leão. O leão esparramado pela sala, enorme, com o peito subindo e descendo suavemente a cada respiração. Passar uma escova na linda juba do leão. O leão deitar a cabeça no seu colo na hora do jornal. Pelos de leão pela casa. Dar banho no leão. Olhar para o leão estraçalhar com facilidade grandes pedaços de carne crua.

O que causou o fim do relacionamento foi quando apareceu um gato – desta vez um normal, doméstico – no corredor do prédio e o rapaz resolveu adotá-lo também. Tadinho do gato. O leão não viu ali um parente. O rapaz notou que desde o primeiro instante o leão olhava estranho para o gato e ele ficou de olho no leão olhando para o gato. Aconteceu o esperado: o leão tentou comer o gato, e quando o rapaz viu o que estava pra acontecer, tentou evitar o bote. O leão amava mesmo o rapaz, porque ele se meteu entre um leão e a sua caça e saiu vivo. O leão apenas o afastou, o que fez o rapaz voar longe e quebrar vários ossos. Ele ligou pro irmão pedindo ajuda. No hospital, com aqueles ferimentos, eles tiveram que se explicar para os médicos. Aí o programa mostrava imagens reais da fachada do prédio, vizinhos consternados, uma multidão acompanhando. Atiradores entraram no apartamento com tranquilizantes. Imagina a sensação de invadir um apartamento com um leão dentro. O leão foi levado para um zoológico e os irmãos foram punidos.

Quero recomendar fortemente

… dois documentários históricos ótimos que descobri por acaso na Netflix. Aparece lá como tendo 1 temporada, mas é um documentário longo dividido em várias partes.

Prohibition: Até nós, a lei seca chegou apenas como uma piada, uma medida incompreensível para proibir o comércio de bebida alcoólica que ninguém seguia. O documentário mostra o significado que a lei tinha nos muitos anos de luta para que se transformasse em lei. Parecia muito lógico que se as famílias sofriam com a ausência dos homens que estavam bebendo, a solução era tornar o mal indisponível. Gostei especialmente da louca que entrava nos bares e quebrava eles inteirinhos. Chega a ser comovente o significado da proibição, a mobilização das mulheres; nos faz pensar o quanto certas ideias parecem tão certas e lógicas em determinadas épocas. Quando a lei é promulgada e fracassa, é outra luta para tirar da constituição. Ótimo para ver os jogos de força entre política, sociedade e cultura.

 

Hitler´s circle of evil: Já vi muitos documentários sobre a Segunda Guerra, que foi esmiuçada de todas as maneiras possíveis, mas nunca vi um que faça o mesmo recorte deste documentário. Ele pega os nomes mais importantes da história do nazismo – o círculo mais íntimo de Hitler – e traça sua trajetória política. Perdemos aquela imagem do nazismo unificado e vemos a dimensão mais humana, de pessoas com motivações diferentes e que precisam encontrar uma maneira de alcançar seus objetivos. Alguns são realmente apaixonados por Hitler, mas nem mesmo ele teve a sua posição caída do céu. E todos querem o lugar mais alto. Puxa-saquismo, marés que mudam, alianças, espionagem, rivalidades, traições, inveja – o partido nazista era igual qualquer partido, qualquer empresa, qualquer reunião de pessoas.

Passos pra frente e passos para trás

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Eu estava trabalhando naquela peça há dias, no barro. Era uma mulher ajoelhada, olhando meio para baixo na diagonal, as mãos tampando os seios. Eu tinha facilidade e adorava esculpir pessoas, e normalmente já teria terminado. Mas aquela estava difícil. Eu avancei, avancei, medi o que consegui, fui pro acabamento fino, mas ela ainda me incomodava. Como último recurso, chamei o meu professor. Nem todo mundo se adaptava ao esquema daquele atelier, porque ele se auto-intitulava “livre”: o professor não ficava em cima do aluno, cada um chegava com seus projetos e recebia uma assessoria quando pedisse. Alguns nem ao menos aceitavam essa ajudava e faziam de lá o seu local de trabalho e pronto. Chamei meu professor e disse que não conseguia consertar a peça, que ele me dissesse o que havia de errado. Ele a circulou, olhou de longe por diferentes ângulos e falou que as proporções estavam erradas, que as pernas estavam numa proporção, o tronco em outra, que o cabelo não conseguia arrumar o erro nos ombros, etc. Apesar da peça estar muito bonita e bem acabada, os erros não tinham salvação e o melhor era abandonar e começar do zero. Eu concordei com ele e imediatamente destruí a peça, o que causou revolta aos meus colegas de atelier. Que não era assim, eu não precisava ser tão radical, nem tudo precisa ser perfeito, etc. Depois eu fiz outra, do zero, e mesmo assim não ficou bom. Era o tipo de pose que necessita de um modelo vivo, as proporções são mesmo muito difíceis.

Acho que não vou ser exagerada em dizer que as coisas pra mim não foram fáceis. Mas ter passado por muitas pedras no caminho tem suas vantagens: a gente acostuma com esse esquema de avançar três passos pra recuar dois. Se o preço é recomeçar e abrir o caminho no soco, eu pago.

Jô e os mestres

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Eu cresci vendo as entrevistas do Jô e via que não era apenas que umas entrevistas eram boas e outras nem tanto, mas que também para alguns entrevistados ele se derretia e outros não. Eu não entendia. Um era ator global fazendo sucesso na novela e o outro também, qual a diferença? Eu li uma historinha indiana, num dos muitos livros de filosofia oriental que li pela vida, que contava a história de dois mestres iluminados que eram contemporâneos, cada um com seu séquito de discípulos. Os discípulos se conversaram e arranjaram um jeito de fazer os dois se encontrarem numa cidade. Desvia o caminho de um e de outro e o dia finalmente chegou e as duas comitivas se encontraram. Os mestres se cumprimentaram carinhosamente, comeram juntos. Todo mundo reunido pra ver a que alturas chegaria a conversa e ela pairou em cima dos molhos, do quanto o pão era gostoso, essas bobagens. Depois do encontro, os discípulos perguntaram para seu mestre o que aconteceu, e as respostas foram: Ele alcançou o que eu alcancei, não havia para ser dito.

Eu via famoso e famoso e o Jô via talento em contraste com pessoa que está lá sem merecer, seja porque uma onda levou e já seria esquecido ou porque era parente de alguém. Toda área tem dessas; certos sistemas podem fazer os de fora acreditar que só ficam os que tem mérito, mas nunca se consegue manter a pureza de ter apenas os talentosos. Uma professora de faculdade de design me disse que, de todos os alunos do curso, talvez apenas 15% fossem realmente designers, naquela sentido mais puro do termo, da pessoa que tem pleno talento e amor pelo que exerce. “E quando essas pessoas estão no mundo, como encontramos os 15%?” Na maior parte das vezes só quem está na área sabe. Foi a Marielle que me fez perceber isso, que até mesmo reconhecer a grandeza é preciso ter olhar.