Quando eu li a série Sapiens, de Yuval Harari, especialmente o primeiro livro – Sapiens: uma breve história da humanidade -,fiquei com a sensação de que o autor é fã dos caçadores e coletores. Tudo pode ser apenas um recurso, porque ele precisava refutar um pensamento que está tão entranhado em nós que nos parece muito natural: se nós sobrevivemos a outras espécies, é porque somos melhores. Ou: o fracasso de padrões do passado atesta a superioridade do padrão do presente. Harari nos aponta que, em vários itens, os caçadores e coletores eram melhores do que nós, os sedentários. Um deles é a inteligência. Como vivemos em sociedades complexas e cheias de tecnologia, temos a impressão de sermos muito inteligentes, mais inteligentes do que jamais fomos; o autor nos aponta que, coletivamente, por causa da construção histórica do pensamento, podemos ter nos tornado mais inteligentes, mas como indivíduos não. O homem contemporâneo é, em comparação com seu ancestral caçador e coletor, pouco habilidoso, pouco desafiado, conhecedor de um número pequeno de rotinas, logo, menos inteligente. Além da inteligência, perdemos em força, em criatividade, em integração com a natureza, até mesmo em saúde… mas escolhemos esse caminho sem olhar para trás, em busca de algo muito caro: segurança. A segurança da barriga quentinha que apenas a agricultura pode nos dar. E a proteção gerada pela vida comunal.
Existe uma corrente filosófica chamada Contratualismo, da qual todos nós já ouvimos falar um pouco, e dela vem a ideia de Contrato Social. Todos os autores da corrente falam desse Contrato, apesar de diferentes concepções de homem e de como e porquê o Contrato é feito. Para Hobbes, com a ideia do “homem lobo do homem”, somente um poder absoluto e autoritário é capaz de impedir que os homens vivam em guerra constante. Já Locke acreditava num homem essencialmente bom e o Estado surge do consenso, para garantir os direitos naturais do homem. O Estado que não defende esses direitos perde a sua legitimidade e pode ser deposto. Quando estudei essa linha de pensamento pela primeira vez, achei que a teoria fazia sentido mas que havia algo estranho, algum ponto cego, e não sabia dizer o que era. O estranho está na noção de que exista algo antes do contrato. Não existem homens solitários, que falem a mesma língua e que vivam sozinhos tempo o suficiente para depois fazerem uma grande reunião e decidir um contrato. Linguagem, vestuário, moradias, instrumentos, direitos, deveres, cultura, ideais, leis – tudo surge ao mesmo tempo, tudo junto e misturado, gerado e modificado sem parar no convívio. Podemos sonhar com Tarzãs e Meninos Lobos, mas sabemos que um homem criado fora do convívio humano é apenas um animal em desvantagem. Ser um humano não se resume a ter um corpo humano.
Eu acompanhava a série Star Trek (primeira geração) quando era criança e tive a oportunidade de rever muitos episódios depois de adulta. Xinguei muito o Capitão Kirk! Mais de uma vez, a tripulação encontrou planetas que eram como paraísos. Eles tinham algo nas suas atmosferas que acalmavam as pessoas e lhes davam paz, então todos ficavam contemplativos e não queriam mais viver aquela vida de exploração espacial. (Imagine aquele típico cenário Star Trek, só com pedras e fundo colorido, e a tripulação deitada e conversando como se estivesse num festival da maconha). Kirk era sempre o que não se deixava contaminar e ele dava um jeito de arrancar todo mundo daquele estado. Era pra ficar infeliz e trabalhando mesmo. A justificativa dele era que aquilo era contra o espírito humano, que era a luta, a incompletude, a insatisfação, a ambição, em resumo, a infelicidade que nos tornavam grandiosos.
Seria Kirk retrato da época que a série foi lançada? Hoje acho que ninguém faria (e repetiria) uma defesa tão apaixonada de viver sob pressão, talvez porque estejamos vivendo pressão demais. Freud concordaria com Kirk ao dizer que uma vida toda voltada ao prazer não nos leva a nenhum avanço civilizatório; que o Princípio de Realidade, ao negar a satisfação imediata do Princípio de Prazer, apenas contribui para aumentá-lo. Não é difícil perceber que faz sentido; o alívio de um prazer represado é muito mais profundo do que um que se deixa realizar assim que o desejo surge. Eu tendo a concordar com Marcuse, que em Eros e Civilização, diz que o desenvolvimento do capitalismo fez com que nós pervertêssemos o Princípio de Realidade com a “mais-repressão”, jogando a satisfação da libido cada vez mais longe, até simplesmente ignorá-la.
Como os Estados Unidos venceram a Guerra Fria – não se pode dizer que um país que não existe mais possa ter ganhado, não é?- o sistema que eles representam é o padrão que venceu. Se venceu é porque é melhor, certo? Quando caiu o Muro de Berlim e as duas Alemanhas puderam se olhar, eu lembro das reportagens falando do quanto a cidade ocidental era mais bonita, colorida e conservada. Agora eu percebo que existe um movimento de olhar para esses mesmos restos de outra maneira. De olhar para os kommunalka – apartamentos comunais da antiga URSS – e ao invés de pensar que são feios, reparar que são grandes. O meu pai tinha um indisfarçável desprezo pela poucas conquistas dos filhos, que aos quarenta ainda não eram nada e não tinham nada, enquanto ele aos quarenta tinha casa própria, carro, sustentava a própria família e a da ex-mulher, viajava e gastava muito. No excelente documentário The True Cost (que não está mais na Netflix), além de mostrar a pobreza e a exploração daqueles que produzem as nossas fast-fashion, somos obrigados a encarar a nossa pobreza, nós, os consumidores. Se antigamente a pessoa tinha duas camisas e usava uma enquanto a outra lavava, ela também tinha a perspectiva de economizar bastante até comprar seu terreninho. Agora não, o terreno ou a casa própria se tornaram tão distantes para a maioria que o único luxo possível é o imediato, o da roupa bonita. Da minha parte, tenho pensado que estou bastante cansada do tal espírito humano insaciável e ambições sem fim.
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