Toblerone

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Não lembro o motivo, só sei que naquele dia ao invés de comprar as barras de sempre, quis me dar de presente um doce mais caro. Me dei um toblerone. Horas mais tarde, peguei meu toblerone, abri com toda calma e quando mordi o primeiro triângulo, voltou tudo: passei a infância inteira comendo toblerone e não lembrava, não havia me dado conta. Lembrei dos triângulos, de andar com o toblerone na mão, lembrei de tudo.

Depois pensei: “Só mesmo meu pai, naquela época de orgia financeira, pra desperdiçar toblerone com criança.”

Sem carne

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Eu fui praticamente a última pessoa a me servir. Tive que me trocar – havia acabado de dançar – e quando cheguei o buffet já estava quase todo no fim. Como já sou de casa, perguntei pros meus anfitriões o que eu poderia comer, o que tinha carne ou não. Eu me sentei no balcão ao lado de uma moça que eu já conhecia de vista. Não lembro qual das duas puxou papo, só sei que ela me disse:

-Eu também não como carne.

-Existem diversos motivos para não se comer carne – olha, nem eu sei de onde tiro essas perguntas – qual é o seu?

-O sofrimento animal.

Ela me falou brevemente do abate, do quanto os animais sofrem. Devia ter umas cinco pessoas ouvindo a nossa conversa, todas elas carnívoras. Eu disse que comia carne de peixe, ela completou dizendo: “Eles morrem da forma mais bárbara de todas, por asfixia. Os caranguejos são queimados vivos em panelas” e eu quase completei: “Eu sei, a gente preparava caranguejo na casa do meu pai”. De um lado, aquilo tudo foi tão inadequado – aquela pregação contra a carne no meio de carnívoros e que não poupou nem a mim. Por outro, eu senti o quanto aquela questão a emocionava, talvez da forma como todos nós deveríamos nos emocionar. Era uma pessoa sensível que sentia o sofrimento dos animais como se fossem a sua própria carne. A sensibilidade, a inadequação, a necessidade maior do que as convenções de tentar pregar no vazio – achei bonito.

Curtas do Quico desfalecido

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Previously on Caminhante… Durante quatro longos meses a minha máquina de costura deu problema com a agulha dupla, só com agulha dupla, e por isso ninguém acreditava em mim. Mais pra eu parar de encher o saco do que realmente acreditar, a Singer me deu uma máquina nova, igualzinha à anterior. É outra máquina, outro tudo, faz tempo… mas sempre que vou costurar agulha dupla me pego hesitante, enrolo, dou uma rezada e começo devagar. É que agora eu sei que existe o dar errado, entende?

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Por um acidente do destino, eu fui convidada pra um aniversário no Country Club. Agora, imaginem a cena, a pessoa querendo descobrir que ponto de ônibus para perto do Country Club. Suzi: “Os ponto de ônibus que tinha perto eles PASSARO POR CIMA CO TRATOR pra não correr risco de pobre aparecer”.

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A gente tenta ser uma pessoa saudável, se apega a beber chá, se enche de chá, vive à base de chá, compra todas as variedades de chá, mancha os dentes, vai parar no dentista, ouve que aquilo foi culpa do chá, paga caro pra fazer limpeza de bicarbonato e que seria bom repetir a cada três ou quatro meses, dado o meu ritmo veloz de manchamento. Resultado: voltei pro refri.

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Última, mas tão desfalecida quanto: alguém por favor diz pro ex-crush sumir da minha frente, porque bastou não me servir de nada pra eu viver encontrando o sujeito.

Maestria

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Laura Ingalls é tããão legal, vocês realmente deveriam ler. Ela é aquele típico caso de autor que parece muito simples, mas faz justamente o mais difícil -ela descreve o rotineiro, o costume, a passagem dos dias. Suas histórias não tem nada de mirabolante e descrevem o estabelecimento da família Ingalls nos EUA. No Anos Felizes, de certa forma o último da série, Laura já está mocinha e namorandinho seu futuro marido. A rápida mudança que a tecnologia fez na vida torna certos detalhes deliciosos: a máquina de costura está surgindo, sete casinhas durante milhas já é uma cidade grande, as estações do ano governam a vida, etc. É outro mundo; Laura se casa de preto, porque muito mais importante do que um vestido branco era ter um vestido novo, e ela acaba não tendo tempo. Naquela época, a família comprava o tecido e se fazia O Vestido de Verão – aqueles com anquinha e tudo – e ele deveria durar muitos anos.

Este trecho é maravilhoso. Como já disse no outro post sobre a Ingalls, Almanzo era um partidão e sua colega de escola Nellie Oleson  queria muito subir no carrinho dele. Almanzo se interessou por Laura muito antes dela por ele, mas a proximidade do terreno dele com o da família Oleson a preocupava. Um dia, num dos passeios de domingo, ele aparece com Leslie. Acho esse trecho delicioso porque ele tem toda irritação, ciúmes e maldade que qualquer mulher sentiria nessa situação sem que a autora precise explicitar qualquer uma dessas palavras:

Quando partiram, Nellie começou a falar. Admirava o carrinho; deixava escapar exclamações sobre os potros; elogiava o modo de guiar de Almanzo; e se excedeu quanto às roupas de Laura.

-Oh! – exclamou – Laura, seu chapeuzinho é simplesmente notável.

E não esperou resposta. Desejava tanto ver os lagos Henry e Thompson; ouvira falar muito deles; achava que o tempo estava simplesmente notável e que a região era linda; naturalmente sem igualar o Estado de Nova York, mas não se poderia esperar tanto no oeste, não era verdade?

-Por que está tão calada, Laura? – perguntou e sem parar prosseguiu, rindo muito: – Minha língua não foi feita para estar quieta, foi feita para tagarelar!

Laura sentia dor de cabeça; seus ouvidos vibravam com o contínuo falatório e estava furiosa. Almanzo parecia apreciar o passeio. Pelo menos, parecia divertido.

Foram até os lagos Henry e Thompson. Passaram a estreita língua de terra que o separava. Nellie achava que os lagos eram simplesmente notáveis; gostava de lagos; gostava da água; gostava das árvores e trepadeiras e simplesmente adorava andar de carro nas tardes de domingo; achava que era positivamente notável.

O sol estava baixo quando voltaram e como a casa de Laura era a mais próxima, pararam ali primeiro.

-Voltarei domingo, disse Almanzo, ajudando-a a descer e, antes que Laura pudessem responder, Nellie chilreou:

-Oh, sim! Viremos buscá-la. Não foi tão bom? Como foi divertido! Até domingo, então. Não se esqueça, estaremos aqui. Adeus, Laura, adeus!

Pedriscos

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Eu tenho uma séria desconfiança de uma coisa que levou a minha casa a ser uma das poucas da vizinhança que nunca foi assaltada é o pouco cuidado que dedico à minha fachada. Um lado é falta de dinheiro mesmo, não vou mentir. Todos os meus vizinhos já retocaram a pintura – alguns mais de uma vez – e a minha ainda é a mesma de quando eu me mudei. Meu muro eu pinto com cal fino mesmo, a barateza do método é simplesmente de Deus. O outro é falta de comprometimento. Por exemplo, é bastante anti-ecológico pessoas que lavam suas calçadas com mangueira, certo? Pois eu sou mais ecológica ainda: eu jamais lavei minha calçada. Não passa pela minha cabeça, não há ser humano que me convença da necessidade de passar água e sabão numa calçada. Então quando eu tirei a grama aí da frente, e o pedreiro disse que quanto mais tempo deixasse a areia mais ela penetraria nos tijolinhos e melhor ficaria, foi a união do útil ao agradável. Deixei lá e esqueci. O problema é que não tinha só areia, sobrou bastante pedrisco e a prefeitura não vinha pegar. Mais de um mês e eles lá, entulhando minha entrada. Acho que outra pessoa teria chamado caçamba, varrido, enfiado em sacos, tomado alguma providência que não fosse deixar aquela bagunça exposta ao tempo.

Até que uma tarde, estava eu passeando com a Dúnia, e quando passei na frente de uma casa aqui perto, o sujeito que estava pintando a grade puxou conversa comigo. “Você é a dona da casa com pedriscos?”. Eu já fui dizendo que havia sim chamado a prefeitura três vezes e nada deles aparecerem. Aí ele me perguntou se poderia pegar um pouco, porque estava fazendo uma reforma numa chácara que ele tem, estava fazendo um galinheiro. “Claro, pegue o quanto você quiser, é um favor que você me faz!”. O cara era conversador: ele me contou da pintura que estava fazendo, que eu podia falar com Dona Fulana pra ela dar as referências, que ele trabalhou mais de vinte anos na empresa tal, que se eu quisesse pintar minha casa, que revestimento era bom e não encarecia muito, que ele tem acordo com uma loja de material de construção e cliente dele paga mais barato, que serviço grande ele já não pegava mais e o irmão dele tem uma empresa… Nessas alturas a Dúnia já estava louca da vida, uivando de impaciência e eu me despedi. Naquele dia mesmo ele foi lá com uma lata, pegou um pouco de pedras e foi embora.

Mas ainda tinha muita pedra e nada da prefeitura. Poucos dias depois o pintor parou com uma picape já toda forrada de plástico atrás e uma pá. Foi quase tudo – o que ele não pegou foi a bagunça de pedra espalhada, o que deixou um tico de pedras e minha fachada ainda mais porca. Simpática, horário de passeio da Dúnia, fui falar com ele: E aí, que bom que você veio, etc. Eis que o sujeito me solta essa:

-Olha, Dona, estava aqui olhando, e a senhora REALMENTE PRECISA de uma reforma nessa fachada. Não é pintura não, precisa de revestimento.

Putaquepariu, viu?

Rei Davi

O estranho é que eu conheço a música não apenas por causa do Shrek, mas também porque a Anne comentou sobre ela no blog, dizendo que amava a versão do Rufus. Lembro que gostei, que fui atrás, até gravei num CD. Mas quando ela foi compartilhada há poucos dias no meu facebook, na versão de Choir! Choir! Choir!, foi como se eu a tivesse ouvindo pela primeira vez, e fui atrás da letra e foi como se estivesse a par do que ela dizia pela primeira vez. Ao contrário de quase todo mundo que eu conheço, a Bíblia nunca foi a referência religiosa da minha casa; conheço as histórias bíblicas por uma questão de cultura geral e nunca pelo viés da fé. Talvez por isso, a história do arrependimento do Rei Davi nunca fez sentido pra mim. Sempre achei uma solução fácil demais, fazer tudo aquilo e depois que alguém joga a verdade na sua cara, “puxa, é mesmo, errei”, faz dancinha e está tudo resolvido. Hallelujah é tão bonita que nos coloca na carne do rei. Agora o arrependimento do Rei Davi não apenas faz todo sentido pra mim como me é muito próximo. Que música!

Curtas, digamos assim, mais biológicos

a felicidade vem de dentro

Desde que troquei uma obturação enorme, esse dente ficou sensível ao frio de uma maneira que a pasta de dentes sensíveis (que uso desde que coloquei aparelho pela primeira vez) não dá conta. Aí fico com dúvida se mudo para a comum ou se há níveis maiores de dores que eu não estou sabendo.

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Já que toquei no assunto, sabe aquelas pelinhas perto da unha, ou aquelas lasquinhas nos cantos? Por causa da aparelho, não consigo mais tirar com os dentes. Aí fico futucando aquilo até tirar nacos de carne. Ou até chegar em casa.

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Agora sobre barateza: precisava de um sabonete íntimo e achei um da marca do supermercado, que além de já custar mais barato, estava numa super promoção. Adivinhe: nunca tive coragem de usar.

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Não pegar friagem nas partes baixas é um conceito que passou a fazer todo sentido pra mim depois que eu coloquei DIU.

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Sabe a gente come algo que solta o intestino e vai várias vezes ao banheiro? Chega um certo ponto que você sabe que aquele cocô não é do dia anterior, porque já foi. Eu fico olhando para eles e tentando imaginar a data – seria este o junkie food de 2003?

Academia, triathlon e escrita

Runner athlete running on road

Não faz muito tempo esse negócio de frequentar academia não tinha a legitimidade que tem hoje e, dependendo do meio, dava até vergoinha de falar. Dizer que você fazia academia era se confessar fútil. Lembro de um dos meus professores da faculdade, um que era especialmente gato, dizendo com o maior desprezo que frequentar academia era tão oposto a ele. Que ano isso, século passado, quarenta anos? Não, já estávamos na primeira década do século XXI. Quando eu comecei a frequentar academia, foi uma descoberta pra mim: como era legal, como todas as aulas eram divertidas, como a gente sai energizado! Tive época de ficar internada lá dentro. Depois fiquei seletiva, e só gostava de poucas aulas, os professores mais mais… agora não suporto nem passar na frente. Hoje conheço um povo que faz triathlon e lembro que uma época tinha vontade de fazer. Eles treinam, sabem seus tempos, comem certinho, sonham com Iron Man. Olho para eles e acho que entendo perfeitamente, que é a mesma euforia que vivi assim que comecei a fazer exercícios e, mais tarde, assim que comecei a dançar. A gente quer ser o melhor, começa a se ver como alguém que “se eu tivesse começado na idade certa, hoje seria…” Acho que essa é a energia que faz movimentar todos os esportes: o entusiasmo de muitos, que um dia sonharam em ser profissionais e se tornam grandes admiradores.

ACHO que eu terminei de escrever o que estava escrevendo. E me vejo sem o ímpeto de publicar que um dia tive. Ser lenta para escrever, demorar tanto e isso se converter em tão poucas linhas e ter sempre algo mais para olhar e nunca ficar bom… tudo isso foi me mudando com o tempo. Talvez eu seja mais uma entusiasta, talvez os únicos que lerão as coisas que eu escrevo são os poucos amigos-vítimas que recebem o arquivo. O mundo não precisa e não sente falta do que eu escrevo. Se um dia eu produzir um único livro bom, isso também não faz diferença. Nossa vaidade quer produção de padaria, um livro ótimo atrás do outro – mas de quantos autores conhecemos apenas um livro, um grande livro, e ele nos preenche por toda vida? Enquanto encontrava as pessoas e elas achavam que eu estou sempre sem novidades, eu sabia que estava cheia delas, cheia de mudanças e planos, vivendo uma vida paralela ao escrever. É um amor e um ganho pessoal difícil de explicar. Publicar e que os outros gostem, não vou negar que deve ter o seu sabor. Mas o processo, ah, que processo!

Truques, dicas e quebra galhos

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…era o nome de um livro que a minha mãe tinha, que dava um monte de dicas simples de como resolver pequenos problemas caseiros. Quando criança eu adorava folhear aquele livro, e hoje acho que é porque me parecia muito mágica a maneira como um objeto feito para uma coisa pode ter um uso totalmente diferente. Mas, como tudo na vida, pra usar dicas é preciso bom senso e cálculo, e às vezes era melhor nem ter lido. Como uma vez que meu irmão deixou cair cola no sofá. Não lembro se era branca ou super bonder. Ele foi no livro e lá dizia que era pra passar um pouco de óleo na mancha. Na sua grande habilidade infantil, meu irmão pegou a lata de óleo na cozinha e tentou colocar uma gota, virando-a no sofá. Ao invés de uma  manchinha de cola, ou quem sabe apenas um ponto mais duro de tecido, se transformou em uma enorme mancha escura. Depois tentamos colocar maisena – outra dica do livro – mas não funcionou muito. Foram meses disfarçando com almofada, até o dia da bronca finalmente chegar.

Pra deixar aqui uma dica que uso até hoje, funciona bem e não faz mal nenhum: uma gotinha de esmalte incolor na linha que prende o botão. Fica grudado e eles não caem mais.

Uma irritação anti-clerical

Isaac Newton, no século XVIII, trancado no seu quarto, teve insights transformados em teorias que ainda hoje poucos são capazes de entender. Sobre pretender ter outros insights desse nível, melhor nem falar. Isaac Newton, tão ser humano quanto nós, só que com acesso a menos informação e quem sabe até menos nutrientes. Mas aí se o assunto é Deus, nego não apenas tem certeza da existência, dos objetivos e dos planos, como pode até dizer a preferência Dele com relação ao comprimento das saias.

vida de pecado

Curtas cismados

Foi olhando para uma das fotos dela – e juro que quase todas foram olhadas rápidas e involuntárias – que eu finalmente entendi o porquê de chamar uma mulher de coelha, porque coelhinha da Playboy. Ela – a mulher a quem meu crush preferiu – é tão loira e perfeita em todos os seus detalhes, tão estudadamente na moda, alisada e pasteurizada, que quando olho para ela não consigo imaginar que no inverno ela vista outra coisa senão um vison imaculadamente branco, bem peludo, e bata delicadamente as pestanas sobre os olhos vermelhos.

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Quando eu vou pagar o meu ortodontista, a ajudante nunca sabe de primeira quanto eu pago. Já usaram a frase de várias maneiras, desde perguntar abertamente qual o valor da minha manutenção a dizer o começo e me deixar completar a frase no final. Minha conclusão óbvia é que nem todo mundo paga a mesma coisa, ou seja, ele deve ter mais de uma tabela. Certeza que eu estou na mais cara. (agora olhe para a figura abaixo e saiba que é a cara que estou fazendo).

cachorro te condena

Tudo porque cheguei através de minha ex-dentista, a que eu tinha deixado de frequentar justamente porque era muito cara.

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Outra sobre a coelha: ela tem a mesma cara em absolutamente todas as fotos. Saca aquelas pessoas que descobrem seu melhor ângulo e nunca se deixam fotografar em outra posição? Boooooring! (ok, parei)

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Eu preciso do meu vizinho mais não gosto dele. Definitivamente não gosto. O que é ruim pra mim, porque era pra falar com ele pra arrumar um pedaço do meu portão e tenho preferido deixar como está. A primeira vez foi quando falei do pedreiro que a vizinha estava pensando em chamar pra fazer nossa reforma, e ele solta um “é, ele é bom, só vai demorar bastante porque ele se descobriu cardíaco e trabalha bem devagar”. Tudo porque ele estava a fim de fazer o serviço. Outro dia no grupo de whats da vizinhança, falaram dos rapazes que vigiam a rua de noite, se eram de confiança – “conversei com eles e me parecem muito principiantes”, meu vizinho disse. Não gostei.

Uma ponte

A Suzi me enviou o link no final da tarde ou à noite, lembro que não tinha tempo para ver. No dia seguinte, vejo a mesma recomendação no blog do Charlles. “Nossa, deve ser bom mesmo!”. Aí, quando pude, sentei confortavelmente e vi a entrevista inteira do Leandro Karnal. Sobre o conteúdo, deixo vocês se deliciarem sozinhos. Eu já tinha visto o nome dele aqui e lá, e terminei a entrevista fã. Este post quase foi sobre o quanto o documentário sobre a Vivian Meyer e um amigo parisiense desajustado que Paul Auster descreve em O inventor da solidão me tocaram. Eu estava para dizer que, tal como eles, também me sinto presa ao mundo produtivo por uma linha muito tênue. Depois vi uma frase da Kahlo, que ela diz que se sentia uma estranha, e que depois descobriu que outros se sentiam também, então que vissem o trabalho dela e soubessem que não estavam sós. Foi nisso o que a entrevista do Karnal me serviu como bálsamo: eu não estou só. O mundo não é só ódio e histeria. Existe espaço para a inteligência, a cultura e o bom senso.

Estrelas

-O bom é que aí dá pra ficar aqui fora. Embora esteja frio, tem feito umas noites lindas.

Fiquei até sem reposta quando ela me disse isso. A moça de piercing, cabelo azul, na loja vegana. Porque eu mesma voltei a olhar para as estrelas há pouco. É como se eu tivesse passado todos esses anos sem elas, tivesse interrompido minha amizade de infância com o céu. Se eu olhava, certamente olhava, não como é agora – não essa necessidade constante, esse pescoço dobrado pra cima, querer saber como estão e cumprimentá-las. Eram noites frias de céu limpo e estrelado que, até então, só eu tinha notado. Mas ela também notara. Imaginei ela e os outros veganos, piercings e coloridos, conversando com frio na noite estrelada. “Vai ver que para busca as estrelas quem está insatisfeito com o que tem aqui embaixo”, e achei que estava explicado.

Gritinhos de felicidade

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Não é propriamente um spoiler a contracapa do Uma pequena cidade na campina dizer que Laura se casa com Almanzo Wilder; afinal, ela se chama Laura Ingalls Wilder. A saga da família Ingalls é de nove livros, mas a biblioteca tem apenas três: À margem da lagoa prateada, O longo inverno e Uma pequena cidade na campina. Estava muito frio no dia que me propus a conhecer a autora (mais uma indicação do Paraísos de Papel) e quando vi o nome do livro seis… Os irmãos Wilder apareceram no Longo inverno por terem salvado a cidade de passar fome, porque não parava de nevar e os trens não conseguiam chegar trazendo provisões. Almanzo nos é apresentado como um jovem fazendeiro precoce, que teve que mentir na certidão que tinha vinte e um anos, e não dezessete, para que pudesse cultivar suas terras. No Pequena cidade, ele já se transformou num ótimo partido, com um carro guiado pelos seus dois lindos cavalos. Laura tem até uma antagonista, a nova-iorquina arrogante chamada Nellie. Enquanto Laura adora a vida ao ar livre, Nellie está sempre preocupada em se manter bonita e faz amizade com a professora Wilder com o objetivo de se aproximar do irmão. Laura, que se desentende com a professora, tem para consigo mesma que não teria a menor chance. Até que:

(….) não podia chegar atrasada à escola. A um quarteirão da Rua Segunda, ela corria junto à calçada, quando de repente um brilhante carrinho parou a seu lado.

Laura olhou espantada, vendo os cavalos Morgan. O jovem Wilder tinha descido do carrinho, com o boné numa das mãos. Estendendo a outra, perguntou a Laura:

-Posso levá-la até a escola? Chegaria mais depressa.

Deu-lhe a mão, ajudando-a a subir no carrinho e sentou-se ao lado dela. Laura quase nem podia falar, com a surpresa, a timidez e o prazer de estar de verdade passeando no carro puxado por aqueles lindos cavalos. Eles trotavam alegremente, mas lentamente, e suas pequenas orelhas mexiam de um lado para o outro, esperando a ordem de trotarem mais depressa.

-Eu… eu sou Laura Ingalls – disse ela. Era uma bobagem o que tinha dito. Claro que ele devia saber quem era ela.

-Conheço seu pai, e já vi a senhorita aqui pela cidade. Minha irmã falava muito da senhorita.

-Que lindos cavalos! Como se chamam? – ela já sabia, mas tinha de dizer alguma coisa.

-Esta é a Lady e o outro, Príncipe – respondeu o rapaz.

Laura gostaria que ele os deixasse correr, tanto quanto podiam. Mas seria indelicado pedi-lo.

Pensou em falar do tempo, mas isto lhe pareceu outra bobagem.

Não conseguiu pensar num bom assunto, e só tinham andado um quarteirão.

No fim do capítulo, tive que parar de ler pra poder soltar todos meus gritinhos de felicidade e bater os pés de satisfação. Não é isso, no fundo, o que todos nós desejamos – que o amor verdadeiro nos alcance quando estamos distraídos?

A moça

Não sei se a casa estava desocupada antes, ela só passou a existir pra mim quando a moça se mudou pra lá. Uma casa que combina com a favela que não fica muito longe dali – de esquina, no fundo de um terreno sem grama e cheio de restos de construção civil.  Meu ônibus enfrenta uma boa subida quando passa por ali, quase se arrasta. Do lado oposto à porta, geralmente de pé, meu olhar pousa na casa quase sem querer. Quanto tempo eles estão lá, um ano? Mais ou menos por aí. Tem a mãe, não sei dizer se outros são parentes e tem a moça. A moça deve ter na faixa dos seus vinte anos; a calça dobrada sobre si mesma nos deixa perceber que ela não deve ter mais do que metade da coxa direita.

Acho que foi o acidente que levou a família a se mudar pra lá. Eu sempre me perguntei o que foi que aconteceu – ela estava numa moto com o namorado, estava assistindo um racha e foi atingida por um carro? Eu fico imaginando acidentes assim, de uma moça jovem que gostava de ser jovem. Você pode dizer que eu não tenho como adivinhar esses dados, mas tudo nela sempre me pareceu gritar: eu não era assim! Nos primeiros meses, de cabelos desalinhados, ela se arrastava lentamente da frente para os fundos do terreno. Suas muletas lhe pareciam pesadas e ela olhava para o vazio. Depois, a parte da frente da casa virou um bar. Num concreto que faz as vezes de banco, passou a sempre ter gente por ali, muitas moças e rapazes da mesma idade que ela. Ao longo desse ano, eu a vi de pé, eu a vi conversando com pessoas mais velhas, eu a vejo sempre com outra moça, eu a vejo com muita gente da idade dela. Eu nunca a vi sorrir.

Final de junho e da tarde, como sempre estou de pé no meu ônibus, do lado oposto à porta. Olho sem olhar para a casa e lá está ela. A moça está de pé, andando no meio de dois rapazes. Mas ao contrário de todas as outras vezes, seu cabelo está arrumado numa franja com gel para o lado. Ela usa uma jaqueta apertadinha e a calça dobrada imita couro. Eles estão de saída. Eu sorri.

dentro del capullo