Dos atendimentos

Problemas com pesos e medidas: 
Numa compra em loja de produtos naturais:
– Oi, eu quero meio quilo de farelo de trigo.
Atendente grita para o chefe:
– Quantas gramas é meio quilo?
Na compra de um salgado na padaria:
– Moça, eu quero 1/4 de empadão de palmito.
A atendente me olha confusa sem saber o que fazer. Sou obrigada a comprar metade. Depois disso, passei a pedir “metade da metade”.
Problemas de comunicação por telefone:
Na marcação de consulta:
– Eu queria marcar um horário com a Doutora Fulana. Eu gostaria que fosse terça ou quinta, ou no primeiro horário logo de manhã ou no fim da tarde.
– Hum… deixa eu ver… não tem horário… só se fosse quarta… não, quinta não, está tudo lotado…
– Olha, era só uma preferência, se não dá eu posso ver outro horário.
– Quer vir na terça então? Tem horário para as 14h.
– E o que mais tem?
– Tem para as 14:30, 16h, 16:30h, 17h…
No contato de um telemarketing:
– Bom dia Senhora Caminhante, aqui é da Central de Atendimento ao Cliente Net e estamos ligando para saber o seu grau de satisfação com a instalação do novo sistema que…
– Olha, eu estou bastante satisfeita, mas eu já respondi isso no dia seguinte do sistema ser instalado.
– Espere que eu vou verificar no sistema se você já respondeu mesmo… é, a senhora já respondeu. A Net agradece e tenha uma boa tarde.

Cerimônia de casamento

Já conheci mulheres que dizem que são inteligentes, liberadas e não querem se casar mas, falando bem hipoteticamente, se fossem se casar, seria com um bouquet de flores do campo, entrariam com uma música do ABBA e a cor do vestido seria… Eu não achei que me casaria, e quando me deparei com a chance, não tinha plano nenhum de nada. Eu realmente achava que não me casaria. Por isso, não tive a menor dificuldade em abrir mão de uma cerimônia na igreja. Alias, problema seria se alguém tivesse tentado me obrigar, tamanha restrição que eu tenho a isso.

Mas quando vou a um casamento, o que deve acontecer uma vez a cada dez anos, fico tocada no início. Acho bonito uma cerimônia reunir tantas pessoas, conhecer as famílias, sempre tem o que vêm de longe. Começa a me dar uma dorzinha no peito, uma sensação de que é uma etapa importante, uma coisa legal de se dividir com os outros. Todo mundo mostrando a sua melhor roupa, o seu melhor humor, a sua melhor disposição. Se é um casamento bem planejado, vemos o cuidado de cada flor, de cada arranjo. Já um casamento apressado tem a graça de uma coisa espontânea, do que deu pra fazer, os noivos oferecerem aos amigos a sua simplicidade. Acho tudo muito tocante.

Se conheço os noivos, sou capaz de chorar quando eles entram. A noiva sempre tão caprichada. Algumas, na roupa e na maquiagem mais linda de sua vida. Já outras descobrimos que ficam maravilhosas ao natural, de jeans, espontâneas. Tudo revela um pouco de quem está casando: qual a igreja escolhida, com que música cada um entra, o tipo de vestido. Na festa a gente descobre a que turma de amigos pertence, o quanto nos parecemos ou não com os outros amigos, enfim, qual o nosso papel na vida da pessoa. Nessa hora o arrependimento de não ter casado já é grande, e começo a encher o saco do Luiz para casarmos. “Vamos fazer uma festa pras nossas bodas de sei lá o quê, quando der uma data redonda, olha que bonito!”.

Aí a cerimônia realmente começa. O padre, pastor ou pregador começa a falar. Meu entusiasmo começa a descer. Deus isso e aquilo, ok. Se a existência do Divino já é um assunto controverso, quanto mais esse povo que não só tem certeza da existência como para ele Deus julga comprimento de saia. Começo a ouvir e pensar – não gostaria que falassem isso no meu casamento, nem aquilo, nem aquele outro… Aí tem a pregação de como deve ser um casamento, dos papéis de cada um. Se é um padre, penso que falar de fora é fácil demais. Se é um pastor, veja, não pedi sua opinião. Cada um sabe o arranjo que faz no dia a dia, tem nada que encher as pessoas com regras. Pior ainda quando começam a falar do papel da mulher. Quando entra em machismos fico francamente irritada. No último casamento que eu fui, na hora dos votos, a noiva não parava de falar no quanto levava aqueles votos à sério, que era pra sempre, que ia cumprir. Ou seja, ela quis dizer que por ser o segundo casamento não queria dizer que ela era uma separadora. Ah, vá!

Prendas adultas

Quando minha colega chega maravilhosamente trajada na aula de flamenco, com um vestido lindo, tecido maravilhoso, babados e acabamento perfeito, eu não consigo deixar de pensar que isso mostra que ela não lava a própria roupa. Não lava e não passa. Digo isso porque eu lavo. Na casa do meu pai, eu tirava a roupa suja e colocava numa portinha do armário embaixo da pia do banheiro e semanas depois ela voltava passada para a minha gaveta. Quando a gente tem a própria casa e começa a se preocupar com os tecidos brancos ou coloridos, com os que soltam tinta ou os que podem ir para a máquina, do que leva tempo para passar ou que basta dar uma batidinha quando a roupa está úmida, a relação com a roupa muda, e para sempre. Minhas roupas lindas de flamenco estão todas no guarda-roupa, esperando ocasiões especialíssimas. Pra ir pra aula, só roupa prática.

Falando assim dá a impressão de que sou muito adulta, e não sou. Essa de lavar a roupa é, digamos, coisa de pobre. Conheço quem mora sozinha, paga suas contas e a faxineira mensalista faz isso. Casar é algo que adultesce bastante a pessoa, mas ter dinheiro pode atrasar (ou nos poupar de) muita coisa. Uma dessas coisas, para mim, sempre foi a relação com a cozinha. Evitei durante muitos anos cozinhar melhor, apelei para comer fora e para um marido que tem excelente mão pra cozinha. Como boa preguiçosa, troco tranquilamente um almoço por uma tigela de pipoca ou um sanduíche de atum – ia dizer “um belo sanduíche de atum”, mas nos últimos tempos só enfiava o atum no meio do pão com manteiga. Agora estou fazendo dukan e atingi outro estágio de prendas: estou catando e fazendo receitas. Tudo porque ou tomava as rédeas do que como ou passava mal de tanta ricota e camarão. Não tem jeito, o humano é só se mexer quando a água bate na bunda.

Uma coisa que faz com que eu me sinta muito imatura – e nisso serei sempre imatura – é quando minhas amigas citam o ponto de vista de uma mãe. É quase sempre inesperado pra mim, porque não é uma coisa óbvia como falar de crianças brincando no parquinho. Ou do meu choque quando um pai me disse que a filha de quatro anos era viciada em refrigerante e facebook. São coisas como a Klenny se preocupar de suas filhas sofrerem no colégio com as coleguinhas falando “a sua mãe chupa, a sua mãe chupa!” enquanto nos divertíamos com a versão poética da Valeska Popozuda com o Mr. Catra. Ou quando a Tina, ao ver uma noiva fazendo voto de obediência ao marido, se imaginava tirando a filha dela aos tapas do altar se ela falasse uma besteira dessas. A maternidade leva a outro estágio, o emprego leva a outra estágio, a morte leva a outro estágio. Como hoje é possível casar sem cozinhar, ter filhos sem educar e tantas dificuldades que muitos nunca passarão, me parece que ser adulto é quase como um sistema de pontos que nem todos alcançam. Minha visão de ser adulto é algo meio:

Adulto completo: mínimo de 1000 pontos

Estudou em escola particular: 40 pontos
Estudou em escola pública: 80 pontos
Não estudou: 700 pontos
Perdeu um dos pais: 300 pontos
Perdeu um dos pais na infância: 800 pontos
Casou e foi morar em casa própria com empregada: 40 pontos
Casou e foi morar de aluguel sem empregada: 200 pontos
Divorciou bem: 70 pontos
Divorciou e descobriu que o ex é um ladrão filho da puta: 140 pontos
Tem filho(s): 900 pontos
Nasceu lindo: -100 pontos
Nasceu rico: -500 pontos

E por aí vai…

Olho no baterista

Eu sei que é completamente desnecessário republicar qualquer coisa que apareça no Kibeloco, mas esse eu não resisti porque ele me remete a outras reflexões. Na hora eu lembrei da Vingança do Tigre, só que essa seria uma versão do bem. Ele não está se vingando, está simplesmente sendo. Pensei no que já me disseram sobre o futebol, que assistir no estádio é completamente diferente muito mais divertido. Enquanto a TV nos diz o que e quando olhar, quem vai para o estádio vê as pessoas, ouve os gritos dos jogadores, repara no técnico tirando meleca do nariz, enfim, ele vivencia experiência muito mais ampla. Quando a gente vai a um espetáculo ao vivo, sempre acaba reparando em coisas que não estavam no scrip. Nem sempre quem se destaca é quem deve se destacar – o que é ótimo.

Vem por aqui

Com o tempo fica cada vez mais difícil ser revolucionário e radical. Largar tudo e partir por puro idealismo cobra preços, e com o tempo ficamos cada vez mais conscientes disso. Então eu entendo perfeitamente quem fica num lugar ruim – seja relação, bairro, cidade, emprego, qualquer coisa – porque já mudou muito e tem medo de não encontrar coisa melhor. Lamento, mas entendo. O que sempre achei difícil de engolir é quem abandona muito cedo, quem se agarra na primeira porcaria e fica. Foi isso que eu percebi subitamente no dia em que a Ju me desconsiderou. No dia que ela anunciou que não daria para mim o papel que eu sabia que era quase meu, e nem ao menos assumiu isso em público. Até então eu simpatizava muito com ela. Ela era tudo o que eu não poderia: tinha começado a dançar balé muito jovem, tinha técnica, tipo físico, pernas altas, uma família que a apoiava pra seguir carreira. Ela era destaque num lugar sabidamente medíocre, sem desafios artísticos, estagnado no tempo. Para piorar, ela ainda era humilhada pelo chefe, que se alternava em dormir com ela e com a outra professora e todo mundo sabia. Ela fazia sacrifícios para se manter num lugar assim – engolia o orgulho, ignorava os olhares, fingia que não era nada quando seu coração estava despedaçado. No momento em que ela fez aquilo comigo, eu entendi que ela achava que eu deveria pagar o mesmo preço. A gente costuma cobrar dos outros a violência que pratica consigo mesmo. Só que eu não aceitei, não para ficar num lugar tão ruim. Eu, mais velha, sem técnica, sem físico e sem perspectivas, decidi que merecia coisa melhor – e, puxa, tudo que vivi depois foi tão melhor. Apesar dessa história de papel fazer parte de um passado distante, o clima entre nós duas ficou. O que eu não sou capaz de perdoar na Ju é a sua desistência, a mediocridade da sua escolha.

Educação sentimental

Era uma tarde comum. Estávamos no quarto do meu irmão mais velho, que tem TV. Eu via TV e ele cortava as unhas. Pouco tempo depois, ele estendeu a mão fechada pra mim e disse que tinha algo a me dar, que era um presente.
– Eu não vou abrir, são as suas unhas que eu sei!
– E daí, presente, são partes do seu irmão! 
– Ai, que nojo!
– Estão limpas, você não pode ter nojo do seu irmão!
– Eu não vou pegar nisso!
– Um dia eu fiz igualzinho o que fiz com você pra uma namorada, só que ela não sabia que eram unhas e estendeu a mão. Depois ela jogou tudo fora, ela também não gostou. 
Isso que dá irmãos criados longe de irmãs, ficam toscos. Depois eu cheguei para ele com a minha mão fechada e pedi que ele estendesse, era um presente meu.
– Eu não vou abrir, são as suas unhas que eu sei! 
– Abra a mão, abra!
– Não! Quando é dos outros é nojento, né?

Missão dada, missão cumprida.

Segurar a onda

Eu tinha uma amiga que trocava e-mails comigo enquanto trabalhava, então a conversa tanto poderia durar muitas horas como ser bruscamente interrompida. Falávamos de várias coisas quando ela citou um convite que havia me feito para passar um fim de semana. Quando ela me convidou, mais de uma semana atrás, estava dentro do carro, dirigindo, e passaríamos o fim de semana numa casa da família do namorado que ficava perto de não sei que cidade de Santa Catarina. Ou seja, um convite bastante vago. Naquelas alturas, eu já tinha falado com o Luiz e feito outra programação. Respondi pra ela que não ia dar e não recebi mais notícias, o que não me causou nenhum estranheza. Essa conversa foi antes do almoço. Meia noite, quando estava desligando o computador, recebi um e-mail dela, enorme. Nela, ela me xingava de curitibana (ela era carioca) e jogava na cara vários aspectos do nosso convívio e da nossa personalidade que podiam ser atribuídos à minha curitibanidade. Respondi no mesmo tom e como resposta veio um “não quis dizer o que eu disse, alias, ia te convidar pra ir lá no outro fim de semana”. Fiquei sem palavras diante de tanta imaturidade. 
Eu me lembrei do tanto que o meu primeiro namorado reclamava. Ele era doze anos mais velho do que eu e mais brigávamos do que ficávamos bem. Eu fazia igualzinho – me aborrecia, dizia o que me dava na telha e depois pedia sinceras desculpas. O quanto que ele reclamava disso, o quanto dizia que era adolescente! Mas ele suportava porque eu realmente estava na adolescência. Tem quem nunca saia dela, claro. Vejo que o que divide os adolescentes dos adultos não é deixar de sentir as coisas e sim se segurar. Essa minha amiga deveria ter falado mal de mim pro namorado, me xingado de todos os nomes e reclamado o dia inteiro, mas jamais ter feito aquilo. Aquele gesto custou uma amizade que eu sei que ela não tinha a intenção de romper. Depois disso passei a ver com outros olhos o fim do casamento dela e problemas que até aquela data ela me parecia coberta de razão. Todas as grandes qualidades dela não aliviariam o fato de que eu teria como amiga uma bomba-relógio, que diante de qualquer contrariedade viria me xingar e estragar o meu dia. Preferi romper.
Lembrei de tudo isso porque tenho sentido muita vontade de despejar minhas merdas no mundo. Tenho tido vontade de reclamar muito no twitter, tenho sentido inveja, tenho me sentido desprestigiada, tenho sentido um bocado de coisas ruins. Mas tenho segurado tudo isso porque é a melhor coisa a se fazer. Posso ser acusada de muitas coisas, mas ninguém pode dizer que não tenho segurado a minha onda, que tenho sido imatura. Segurar a onda ajuda todo mundo: ajuda os meus problemas a não se tornarem maiores, me ajuda a manter amigos que talvez não merecessem o que eu teria para lhes dizer agora, ajuda as pessoas a não se preocuparem ou se aborrecerem com o que não diz respeito a elas. A adultecêssencia, esse estágio que a gente entra sem querer entrar e de tão poucas vantagens, não é deixar de sentir e sim saber como, quando e o quê expressar. Eu seguro minha onda e espero, apesar de ter o mesmo coração ardente e explosivo de sempre.

Troca de TOCs

Assim como ter Transtorno Obsessivo Compulsivo e precisar tomar remédio é um extremo, não ligar para nada e não ter manias é outro extremo. Entre os dois, existem muitas possibilidades e muito graus. A história de me declarar TOC começou com um manual de psiquiatria que estudei na faculdade. Quando você lê os transtornos de personalidade os conhecidos sempre se encaixam. A maioria das minhas colegas era histérica, uma ou outra borderline e era, por unanimidade, TOC. Não que eu mesma não tivesse lido a descrição e me identificado com muitas coisas, mas não imaginava que para os outros era tão evidente. Só porque eu era extremamente perfeccionista em todos os meus trabalhos, sendo capaz de refazer, reescrever e reimprimir quantas vezes fosse necessário só para ele alcançar um padrão mínimo de qualidade? Olha que naquela época que nem tinha as nóias de contaminação que eu tenho hoje. Porque são duas nóias diferentes (de acordo com a minha classificação): a de limpeza é quem se importa com o visível, com o padrão básico que a boa dona de casa deve seguir. Quem se incomoda com contaminação fica de olho nas bactérias, no que toca, no encosta no corpo e no que entra. 
Sempre existe algo que você não havia pensado e conversar com outros TOCs é sempre um risco. É possível sair de um encontro ainda mais maníaco do que entrou. Como a Suzi, que conversou com uma amiga que disse que sempre colocava os pregadores de roupa combinando. “Combinando com a roupa?” a Suzi perguntou. Pela cara que a amiga fez, é provável que ela tenha saído de lá direto pro mercado pra comprar muitas variedades de cores de pregadores (ou pretos, porque combina com tudo). Assim que chego em casa eu lavo as mãos, principalmente se andei de ônibus. Mas como sou uma TOC envergonhada, nem sempre me sinto bem de chegar na casa dos outros e já pedir uma pia. Tive meu primeiro encontro com a gracinha da Ana, pegamos por acaso o mesmo ônibus. Chegamos, sentamos, conversamos e ela fez o favor (digo sem ironia) de pedir para lavar as mãos porque estava incomodada. Um alívio. Enquanto lavávamos as mãos – um lindo momento de congraçamento TOC – ela me disse que tinha uma certa cisma com ônibus. Aí eu lhe disse “eu tenho tanta que a roupa que eu usei em ônibus fica até separada das outras”. Ou seja, se a Ana começar a deixar a roupa do ônibus em cadeiras ou cabides pra não se juntar com as outras, a culpa foi toda minha.
O Luiz não tem os meus TOCs e fica curtindo com a minha cara. Um dia estávamos num restaurante e quando peguei o saleiro, ele estava meio grudento. Falei que agora minha mão estava suja (já havia lavado depois que pedimos), porque, pensando bem, ninguém deveria limpar aqueles temperos. Aí ele começou a apontar o fato de que o cardápio deveria estar sujo também e começou a descrever todas as pessoas que pegaram naquele cardápio – homens que saem do banheiro sem lavar as mãos, crianças com mãos que tocaram o chão, mulheres com mania de mexer no cabelo, glutões que lambem os dedos – durante anos, e que ninguém nunca o limpou. Ou seja, se me virem pegar um cardápio com certa hesitação é que…

O dia que quebraram um copo por mim

Quem nos via, achava que éramos um casal. Juan era um argentino de Rosário, psicólogo, charmoso, perfumado, sempre com uma grossa barba por fazer e muito bem vestido. Quando eu dizia que não namorávamos e nem éramos apaixonados, ninguém acreditava em mim, achavam que eu mentia ou ainda estava por ser conquistada. O que eu não podia lhes dizer porque ele não deixava, é que Juan era gay. Um gay másculo, daqueles que não dava nenhuma bandeira, mas muito bem resolvido. Ele tinha um namoro tumultuado na Argentina e antes de viajar sempre pesquisava hotéis e bares gays para visitar.
Nós saíamos juntos e teve uma época que começamos a viajar para cidades próximas, onde ele queria ir para algumas baladas. Nosso plano era passar a noite fora, nessas baladas, e voltar na manhã seguinte no primeiro trem. Na prática era extremamente cansativo. Os espanhóis tem (ou tinham, faz tanto tempo) um costume diferente do nosso com relação à vida noturna; eles não entram num lugar e ficam, eles salem de marcha. Salir de marcha é ir num barzinho, pedir uma bebida, sentir o clima durante meia hora, uma hora e depois ir pra outro lugar, assim durante a noite inteira. Eu e o Juan, para aderir aos costumes locais e pra dar conta de todos os lugares que ele queria conhecer, também saliamos de marcha. O que acontecia é que às quatro da manhã os locais estavam todos fechando e nós dois não nos aguentavamos de pé. Os amigos que ele fazia nos ofereciam sofás para passar a noite e nunca aceitamos. Parecia ser comum oferecer lugar pra um turista dormir, quando eu viajava sozinha também me ofereceram muito. Mas latinoamericanos como éramos, por maior que fosse a vontade, nunca conseguíamos aceitar e nem ver aquilo com olhos inocentes. Um dia falei disso com um espanhol, como eles podiam confiar assim de levar um estranho para dentro de casa. Tudo poderia acontecer, eles poderia ser roubados, assassinados. Esse espanhol olhou fundo nos meus olhos e me disse ternamente: “Você não tem cara de assassina”.
Acontecia quase sempre a mesma coisa: entravamos juntos na balada e todos nos olhavam, se perguntando o que um casal hetero estaria fazendo por ali. Depois de algum tempo dançando ou no balcão, o Juan gostava de alguém, conversava um pouco com o chico, o enlaçava pela cintura e lhe dava um beijo de língua. Nesse momento o bar todo sacava que não éramos um casal e as mulheres se aproximavam de mim para me oferecer bebidas. Eu não aceitava nada, não olhava pra ninguém e ia pra fora do bar respirar o ar da noite. Depois o Juan se cansava e ia atrás de mim. Saíamos procurando outro lugar pra ir. Cruzamos, então, com um lugar com Brasil no nome, cheio de coqueiros e araras na decoração. Eu me animei, disse que iriamos agora num bar brasileiro, poderia falar com gente da minha terra, quem sabe fazer amigos. 
Entramos no lugar, lotado. Não entendo nada de bebidas, mas aquela caipirinha com gelo raspado até metade do copo não me pareceu muito ortodoxa. A dona do lugar, que não era muito mais velha do que nós passou umas três vezes por mim. Tentei falar com ela, tentei pedir alguma coisa, falei português e fui ignorada de tal forma que fiquei até sem graça. Foi o lugar onde fui pior atendida em toda viagem. O Juan ficou com dó de mim, do tanto que eu falei em camaradagem e fui destratada pelos tais brasileiros. Ele disse que eu não merecia aquilo e que lhes daria uma lição. Ele pediu uma caipirinha daquelas e fomos até um balcãozinho perto da porta. Lá, ele me contou que aprendeu com o pai dele a se vingar dos lugares que o tratam mal, com um gesto simbólico. Depois de beber, ele colocou o copo no cantinho do balcão e bateu nele com a mochila. O copo se espatifou e todos nos olharam. Ele deu de ombros e fomos embora.
Achei carinhoso.

Crise de meia idade

Entrevista com o vampiro, o livro, é de 1976. Eu o li mais ou menos na década de oitenta, e o livro causava furor. Até hoje não vi o filme e nunca verei; tal como Anne Rice, não aceito Tom Cruise no papel de Louis*. Nós duas víamos Jeremy Irons no papel. Louis apaixonava o leitor pela sua profundidade e me passava a idéia de um sofrimento introvertido, algo que Tom Cruise nunca seria capaz de expressar. No livro, os vampiros não são eternos, apenas vivem muitos séculos. Os próprios não têm certeza do que os mata, só sabem que parece estar ligado a um certo desânimo com a própria eternidade. Eles definhavam de tristeza.
Louis era o vampiro mais velho que ele mesmo já tinha notícia, e o livro também nos leva a entender que era porque ele já tinha se entristecido muito, desde que começara a ser vampiro. Como se isso o tivesse calejado de tal forma que na hora de morrer ele não morria, porque não caía numa depressão tão grande quanto aqueles que curtiram muito sua condição de vampiros durante a juventude. Eu me identifiquei com Louis quando li, porque era uma adolescente dada a tristezas. E me vejo novamente identificada com ele quando vislumbro a tal crise de meia idade se aproximando – cronologicamente – de mim. Por volta dos quarenta, as pessoas que têm pouco percebem o quanto fracassaram com relação aos seus sonhos de juventude. E quem tem muito… ah, mesmo quem tem muito se sente uma sombra com o que parecia que íamos conquistar, pelos alunos brilhantes que fomos, pelo talento, pelas promessas da juventude. 
Eu comecei e terminei tantas vezes que fiquei calejada. Conheci o fracasso quando ao meu lado todo mundo ainda aspirava o sucesso. Recomecei mais de uma vez; quando as coisas pareciam se acomodar, um furacão tirava tudo do lugar e me via no zero de novo. Sei como é se olhar no espelho e não ter o que dizer, o que é aceitar o papel de iniciante quando na nossa idade os outros são mestres. Há um correlato físico de tudo isso: vi num programa sobre artes marciais que o segredo de destruir tijolos com golpes está em microfraturas. Se batemos com tudo a mão num tijolo, ela se quebra; mas se com um treinamento ficamos batendo todo dia um pouco, isso causa lascas que obriga o corpo a se reconstituir. Os ossos se tornam mais fortes porque quebram sem fraturar. Assim é quem passa por várias crises ao longo da vida. Quando chegar aos quarenta, não terei pra olhar nada diferente do que já tenho olhado durante todos esses anos.

* Meu amigo Bruno acabou de me dizer que acho que Tom Cruise era Lestat e Brad Pitt o Louis. De qualquer foram o argumento é o mesmo…

Timing

Minha amiga Suzi que fala que realmente não entende nada. Se ela fosse empresária e propusessem um sapato feio, todo de espuma colorida com uns furinhos em cima, ela jamais aceitaria fazer. E taí, a crocs jogando na cara da sociedade que não é preciso que um calçado seja bonito desde que o usuário se sinta confortável. Ou talvez não seja nada disso. O sucesso da crocs eu até poderia prever, porque também sou adepta do conforto. Mas como explicar os sneakers? Quando eu vi a foto daquilo, num blog de moda, caí na risada e jurei que aquilo jamais se tornaria popular. Que vantagem teria usar um salto e tirar dele todo o charme de ser um salto, pra revesti-lo de tênis, tirando a maior vantagem do tênis que é o conforto? E os sneakers pegaram, em todo lugar que você vai tem mulheres se sentindo altas e elegantes com aquela… invenção. 
Sou craque em gostar sozinha de produtos. A padaria aqui perto de casa fazia um cookie delicioso. Ele tinha uma cara meio feia, mas as gotas de chocolate eram de chocolate mesmo. Passei uma semana comprando e depois sumiu. Quando falei com os funcionários, fui informada que eles pararam de fazer porque não vendia.
– Como não vendia? Sempre que eu vinha aqui eu levava uma bandeja!
– Então foi você quem comprou todos…
E o cup noodles de camarão? Foi só passar algum tempo sem comprar macarrão instantâneo que ele deixou de existir. Fiquei com a maior sensação de que a culpa foi minha, que por eu ter deixado de comprar as vendas caíram de maneira notável e eles cortaram toda a linha camarão. A parte de roupas dá até raiva, tenho o maior prejuízo. Vou na loja, acho a roupa linda e cismo que tenho que ter, compro imediatamente antes que acabe. Meses depois, adivinhe o que está em promoção, encalhado, ponto vermelho, 80% de desconto pelamordedeus comprem essa coisa? Não sei o que as pessoas têm contra a cor amarela, eu adoro… Nem a antipatia que as pessoas têm pela Claudia Leite eu compartilho. Meu timing é tal que é mais fácil concluir de uma vez: se eu gosto, vai encalhar. Se eu não gosto, vai com fé que será um sucesso.

Mi amigo Manuel

A única vez que saí do país (Paraguay não conta) foi pra fazer um intercâmbio na Espanha. Como todas as viagens e coisas culturais, hoje quando penso no assunto concluo que aproveitei muito pouco. Não por falta de tentativa, pois conheci umas onze cidades espanholas de trem; foi falta de maturidade, de vivência, e quanto a isso nada se pode fazer. Ao mesmo tempo, me diverti muito com amigos de toda América Latina, e nesse grupo estava um doutor chileno em sociologia, o Manuel. Talvez por não ser tão jovem quanto os outros, ou por já ter sido um exilado, ele não se envolveu como os outros na tentativa de manter contato. Eu e o os outros intercambistas nos correspondemos durante anos, éramos a Associación Internacional del Caldo Gallego, algo assim, por causa de uma sopa que era servida todos os dias no restaurante universitário.
Fui lá como estudante, mas a verdade é aquele intercâmbio valeu mais como experiência de vida. Viajei achando que estudaria uma coisa, chegando lá eles faziam algo diferente e que eu era profundamente contra… Falando claramente: fui lá estudar psicomotricidade, e na faculdade seguíamos uma linha francesa toda baseada em carinho e atenção. Quando cheguei, a Atención Temprana era totalmente behaviorista. Eu não conseguia atender crianças autistas forçando-as a todo momento da indicar onde ficavam as coisas, dando respostas mecânicas para as perguntas. Era um enfoque totalmente voltado para resultados e eu não conseguia trabalhar daquele jeito. Guardei para sempre na memória a psicóloga repetindo “rojo, rojo, rojo!” enquanto a criança, exausta depois de uma hora de perguntas, não conseguia indicar o rojo.
Como eu ia dizendo, fui lá pra estudar e não fiz nada disso. Viajei, andei pela cidade, falei espanhol, fiz amigos. De tanto andar com o Manuel e frequentar o departamento de sociologia, lá me encantei com o assunto e decidi que iria me voltar para essa área. Disse isso pra ele, que achou ótimo. Só que o decepcionei em dois momentos: na dúvida entre comprar um excelente livro de sociologia ou um CD de música galega, fiquei com o segundo; escrevi um esboço de um artigo para aplacar a fúria da minha orientadora de Atención Temprana (não aplaquei) e mostrei a ele aquela porcaria (e ele achou uma porcaria). Um ano depois, na minha primeira tentativa de entrar no mestrado, escrevi ao Manuel pedindo uma carta de recomendação, pois a seleção exigia. O orientador do departamento de sociologia da Espanha me mandou prontamente uma carta elogiosa; Manuel não me mandou nada e culpou a falta de tempo. Nunca engoli aquela desculpa. Fiquei com a impressão de que ele me considerava uma companhia ótima, mas academicamente…
Essa história me voltou à memória agora, depois de mais de dez anos. Lembrei de algo que me propus a fazer há anos e que havia esquecido: mandarei o meu livro para o Manuel. É uma linda pesquisa, totalmente sociológica, merecedora da leitura de um doutor. Não gosto de pensar que deixei a imagem de incompetente ou de brasileira malandra. Revirei sites e encontrei o endereço da faculdade onde ele ainda leciona. Mandarei o livro sem uma dedicatória, nada. Para saber quem foi, ele terá que ler o remetente e puxar o nome pela memória. Quando se lembrar, sei que vai sorrir. Minha alegria é imaginar a cena.

Inferno

Cada um tem o direito de fazer da sua vida o inferno que quiser, essa é que é a verdade. Por mais que a gente perceba que é a escolha errada ou que a pessoa está criando problemas onde não tem, é um direito dela. É direito da pessoa reclamar o dia inteiro, por tudo, por coisas que nem aconteceram. Gente que teria tudo para ser feliz ou que tem até muito mais do que você tem. Ela pode até olhar quem tem menos com inveja, porque pelo menos o outro tem a capacidade de ser feliz do seu jeito. O twitter, aquele constante monólogo assistido, acaba nos fazendo conhecer esse lado das pessoas. Gente que usa calça jeans, diz “oi tudo bem” e apara as unhas, só que no virtual revela neuras e mais neuras. Existem os dois tipos: os muito loucos que encontram na vida virtual o seu meio de expressão saudável, e os que pessoalmente parecem normais e soltam os bichos no virtual.
É um direito, é um direito… Passei um dia inteiro repetindo esse mantra, justamente porque estava incomodada. Eu tenho por mim que brigas virtuais e brigas com loucos são inúteis, pior ainda se forem as duas juntas. Então eu respiro e evito. Quando um troço é tão constante e tão fora de propósito que as unhas aparadas não me convencem mais, eu sei que é uma espécie de loucura. Aí me toquei de algo: fazer da própria vida um inferno é um direito inalienável, mas estender esse inferno aos outros não é. Quando a pessoa espalha sua loucura para o mundo e leva todos a se incomodarem é porque extrapolou. Se deixou de ser de foro íntimo também deixou de ser um direito. 

Generosidade

Cada dia me comovo menos com os grandes patronos, os doadores, o que fazem da ajuda aos outros a sua causa. Existem tantos ganhos secundários – histórias para contar, admiração dos outros, sentimento de importância, paz na consciência, a certeza de que é uma boa pessoa – que talvez isso tudo já pague o suficiente. O que hoje considero generosidade é algo raro de se ver, difícil de explicar, e que não pode ser reduzido a fórmulas. Quase nunca envolve dinheiro ou posses. É possível ser muito generoso com um sorriso, com silêncio, até mesmo com uma piada. Se eu dissesse que é quem consola quando o outro precisa ser consolado, também estaria errado. Existe gente de monte que faz isso e esse papel seduz porque há muito poder envolvido – quem aceita conselhos se coloca na mão do outro, se entrega a ele. Então eu diria que às vezes abrir mão de aconselhar pode ser generosidade. Ensinar requer muita generosidade, tanta generosidade que às vezes nem quem é pago pra isso nos ensina direito. Penso em quantas coisas fiz errado, às vezes durante anos, e não teve um pra me dizer que havia uma maneira correta ou mais fácil de fazer. Às vezes ser generoso é dizer uma palavra, dar uma única informação, dizer o que já é tão claro. Por isso, quem sabe, para ser realmente generoso é preciso estar distraído ou não dar importância. Quem se concentra no quanto aquilo pode repercurtir e fazer bem ao outro, no fim das contas, pode acabar não fazendo. Das generosidades imensas que eu recebi, quase sempre foram de pessoas que nem sabiam do quanto eu precisava daquilo naquele momento. A generosidade, talvez, seja um modo de ser, um perfume que repercute a quem recebe a brisa na hora certa.