Nada será como antes

Old and Broken 1970s Television Set

Amiga conheceu um homem no Tinder. Tudo indo melhor do que a média dos outros encontros. Logo de início, ela se definiu como de esquerda e ele falou vagamente que se desentendia com uma ex de esquerda. Quatro meses depois, quando estão realmente ficando firmes, ele revela que é eleitor Daquele. Amiga fica confusa e decepcionada: se ele sabia desde o começo que ela achava aquilo imperdoável, por que escondeu? O que isso revela sobre os valores dele? Outra amiga. Gay e que detesta política. A postura dela até enchia um pouco, “se está bom pra mim, o resto que se dane”. Ela se recusava a levantar qualquer bandeira, até mesmo a gay. Agora descobriu que muita gente que a aceitava, a considerava ótima companhia e profissional, não se incomoda nem um pouco em votar em alguém que já declarou que “as minorias devem se render à vontade da maioria, ou deixar de existir”. Ela agora se pergunta até que ponto a aceitam mesmo, se ela só é útil agora mas, se acontecesse alguma coisa, ninguém se importaria o suficiente. Isso para falar apenas das coisas domésticas – teve página rackeada, jornalista intimidado, organizadora de evento que apanhou, mentiras deslavadas. Quem não tretou com a família e não rompeu amizade de anos por causa de política, discutiu em grupos de whats e pelo Facebook, tentou converter estranhos e alternou momentos de esperança com desespero, não viveu o 2018 no Brasil. Olha o ridículo que é todo mundo, sem precisar combinar, inventar apelidos porque apenas escrever o Nome atrai violência. Assim como tem gente que não vai na manifestação #elenão por medo.

Por méritos quase que exclusivos da própria campanha, a vitória que era dada como certa parece que não vai se concretizar. Mas depois de tudo, a vitória #elenão será uma vitória sobre terra devastada. Ainda não sabemos o que fazer com o que vimos das pessoas que nos cercam.

Sem merecer

harari

É difícil demais ver alguém conquistar algo que não conseguimos. Falando sinceramente, nem precisa ser alguém conquistar aquilo que sonhamos; às vezes a gente nem sabe que aquela possibilidade existia, aí a pessoa ao nosso lado alcança e pronto, nos dói muito não ter o que até então ignorávamos. Nos últimos dias os assuntos de bolsas e cotas estão muito presentes, por motivos óbvios. Até que ponto existe dívida histórica, até que ponto alguém deve ser favorecido com dinheiro ou reserva de vaga? Como fazer isso sem colocar no lugar alguém que não merecia, retirar o mérito do esforço, não deixar sem lugar um que também quis muito e lutou para chegar até ali, embora sua luta seja menos visível?

Hoje eu olho para trás e vejo o quanto fui competitiva sem me assumir como competitiva. A competição se manifesta nessa régua que nos faz constantemente medir o dos outros, em comparação com até onde achamos que eles merecem chegar e até quanto nós merecemos. Quero deixar claro aqui que o que direi também me soa bem difícil. Harari, um escritor que lançou seu terceiro livro agora, da série Sapiens, faz algumas previsões no livro Homo deus, que nada mais são do que conclusões lógicas baseadas no que estamos vivendo hoje. Ele diz que as massas, de uma maneira ou outra, eram úteis para gerar capital, mas que no futuro o nosso desenvolvimento técnico vai superar isso. No lugar de muitas formiguinhas, um técnico e muitas máquinas. Então, milhares de pessoas vão deixar de ter função econômica. Teremos uma riqueza gigantesca concentrada numa minoria totalmente independente de outras milhares de pessoas. O que fazer com isso, como não deixar essas pessoas inúteis à míngua? A conclusão lógica, se você tem uma visão um pouco mais humanitária, é que essas pessoas devem receber o suficiente para existir, mesmo inúteis. Ou seja, um futuro mais justo para a humanidade passa pela capacidade de superar esse sentimento tão difícil e doloroso que é ver o outro receber sem ter feito por merecer.

Curtas com pitadas feministas

elenão

Independente do resultado das urnas, depois destas eleições, candidato nenhum vai ousar ser machista. Um assessor vai impedir que publiquem, ele será falso e dirá frases decoradas, o que seja. O que vimos foi um desrespeito total e absoluto, tão grande e evidente, tão certo de que não teria consequências.

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Eu estava no ônibus, sentada, e quando ele chegou no terminal, uma moça que ficou do meu lado falou em voz alta para um rapaz, algo sobre que nunca acontecesse com a mãe ou irmã dele. Ele começou a chama-la de feia, dizendo ela que queria aparecer. Outra mulher levantou a voz, e disse que depois de tudo o que a moça havia passado o sujeito ainda fazia isso, que o marido dela o encheria de porrada se estivesse ali. O sujeito vestiu o capuz e se calou, sentindo o meu olhar e do ônibus inteiro contra ele. Uma cena dessas seria impensável antes.

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Comprei com amigas a camiseta “Lute como uma garota”. Como não foi só comigo, posso dizer: é uma experiência andar com ela. Uns aprovam, outros parecem lançar um olhar quero-ver-se-é-lésbica-abortista. Não sei se a associam com a Manuela D´Ávila ou sabem que faz parte de algo maior. Por outro lado, também dá muito orgulho sair com ela.

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Tô lendo a biografia do Churchill, culto, herói, divertido, aquilo tudo que sabemos. É um livro meio arrastado pela quantidade de detalhes. Não sei se ele muda de ideia depois, mas nas cartas que ele escreveu na juventude, ele é terminantemente contra o voto feminino, porque “elas podem dominar o mundo”. Deveríamos mesmo, viu.

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Apesar de tudo o que eu li e de tudo o que eu já sabia, foi uma experiência muito marcante pra mim ver o filme sobre as Sufragistas. Tem na Netflix. A gente não tem dimensão. O que Churchill, esse filme, o candidato e o movimento #elenão me confirmam é que quem não chora não mama. Não dá pra pedir gentilmente, esperar que se toquem e abram mão da sua posição confortável por nós. Nós, mulheres, aquelas que poderiam dominar o mundo e ainda estão caminhando para se enxergar como coletivo.

Pedras arredondadas

pedra rio

Durante muito tempo, eu considerei a minha ex-sogra como uma vilã do meu casamento. Com os anos as coisas foram anuviando, igual uma metáfora que eu vi que as pessoas que convivem são como pedrinhas numa garrafa, que de tanto se machucarem acabam ficando redondas. No final do processo de separação, eu lembro que olhei pra ela – deve ter sido no dia da assinatura do divórcio, ela estava de testemunha – e senti pena do nosso caminho juntas ter terminado. O mesmo sentimento de quando eu saí de casa para casar e sabia que dali por diante nunca mais moraria com meu irmão e minha mãe de novo. Eu mesma fiquei surpresa com o sentimento, porque nunca tive por ela o afeto de uma filha. Fiquei triste pelo ciclo que se encerrava. Fomos pedrinhas que se machucaram muito, detestaram ser encerradas na mesma garrafa, e no final se entendiam mais. Quando deixamos de conviver, eu vi que havia um tempo que faríamos parte da vida uma da outra, que teríamos algo a acrescentar à vida uma da outra, e que ele se encerrava ali para nunca mais – e eu sabia que passamos tempo demais nos detestando. Tenho certeza que com a nova nora dela, ela pegou muito mais leve e demorou bem menos para mostrar seu lado agradável; da minha parte, se um dia que voltar a ter uma sogra, cederei muito mais do que cedi com ela. Quem sabe o legado que tínhamos para deixar fosse esse. O que me tocou muito foi ver que, tivéssemos cumprido ou não o que tínhamos que cumprir, o nosso tempo havia acabado. Agimos como se as coisas fossem durar para sempre e na verdade o mais comum é que durem pouco – cinco anos, uma década, muito raramente duas décadas. Cada um segue a sua vida, esse evento único e complicado; algumas pessoas andam alguns metros do nosso lado e depois se vão. O ideal é que seja caloroso, o ideal é que sejam boas lembranças. Nós não temos obrigação de ficar, os outros têm o direito de partir.

Curtas sobre o sistema de caixa acoplada

caixa acoplada

Estou ficando boa nessa história de ser adulta, de pensar o que uma pessoa sensata faria no meu lugar e fingir que sou ela. Uma das lições essenciais para agir sensatamente é: abrace o prejuízo. Já deu errado, você vai ter que sair correndo, comprar o que não tinha planejado, pagar o que o cara te pedir, entrar no cheque especial. É assim mesmo.

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Eu ouvi um barulho estranho e tentei ajustar a válvula da descarga à noite. Uma mangueirinha se soltou e ficou dentro d´água. Na manhã seguinte, fez mais barulho, fui ajustar a válvula, ela quebrou na minha mão, a água começou a espirrar sem parar. “Por que, meu Deus, que infelicidade, que inesperado!”. Bem, fora o fato que eu não uso aquela privada há mais de um ano porque ela tem um vazamento incurável …

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Conclusão: sempre me achei das espertas que se antecipa aos problemas. Esse povo que não faz terapia, que procrastina, que isso, que aquilo, eu não, minha ansiedade e perfeccionismo nem deixam. Quem sabe até seja verdade que eu me antecipo aos problemas, apenas não quando eles são hidráulicos.

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O sujeito não vinha voando como eu gostaria, e muito sensatamente aproveitei aquelas horas para comprar um sistema novo. Sensatamente desliguei o registro. No que pareceu um excesso de cuidado, comprei um sistema novo inteiro de uma vez, para não correr o risco de comprar a peça errada. Depois, o cara me disse que fui muito sensata, porque a peça que deu problema justamente é aquela que não vendem separado. Sensatamente, eu tinha um dinheirinho comigo e não precisei ir ao banco. Eu mereço uma estrelinha por tanta sensatez junta, mas entrei no cheque especial e minha futura conta de água…

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“Nossa, você comprou o kit todo, custa uma fortuna e tem peça separada”. Mas olha o que aconteceu: eu contei pra ele que o sistema foi mudado inúmeras vezes e a descarga sempre vazou. Por causa disso ele decidiu desmontar a caixa inteira. Ele me mostrou a peça desgastada e meu banheiro ficou com cheiro de mofo como nunca antes. Deu trabalho e o cara me cobrou bem. Concluo que todas as outras vezes que trocaram o sistema, as pessoas fingiram trocar tudo e não tiraram a peça principal porque a porcelana nunca havia sido mexida. Comprei kits e paguei pessoas à toa durante todos esses anos.

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Outra conclusão adulta: prejuízo que resolve o problema de verdade não é prejuízo.

Cachorros e crianças

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Eu tenho duas amigas que tiveram uma fobia por cachorros que agora está se transformando gradualmente numa tolerância. Elas sofrem muito. A minha vizinhança tem pelo menos três cachorros de rua e alguns que são criados meio soltos – hábito que me deixa com medo quando passeio com a Dúnia, mas sou obrigada a compreender porque meu cachorro durante a infância, o Flock, também era desses. Mas o que eu acho mais chato por elas é a pecha de pessoa cruel que quem não gosta de cachorros pode ter. Eu não as julgo dessa maneira porque tenho o mesmo problema por não ser fã de crianças. Acabo desenvolvendo um carinho muito grande pelos filhos dos meus amigos; quando imagino se um dia uma criança possa ser uma versão de um dos meus irmãos, já amo só de pensar. Mas meu amor por criança é assim, condicional. Sento o mais longe que posso perto delas em lugar público, julgo severamente os pais que levam crianças pequenas para espetáculo e não se retiram quando elas estão chorando. Eu só entendi o amor imediato que algumas pessoas sentem por criança com o amor por cachorros que a Dúnia abriu no meu coração. Estávamos passeando e o vizinho estava com um cachorro de seis meses, do tamanho da Dúnia, e fiquei doida com a cara de bebezão que ele tinha. Já fui de gostar de cachorro pequeno, os que lembram pelúcias, hoje adoro cachorro com cara de cachorro mesmo. Assim como os doidos por criança, quanto mais eles são eles mesmos, mais legal eu acho. Me mostra vídeo de cachorro uivando, batendo as patinhas no chão de ansiedade, apoiando-se nas patas da frente com a bunda empinada para trás, pegando a bolinha, enfim, qualquer gesto bem normal de cachorro, e eu vejo tudo e me derreto. Cachorro pintado de rosa, andando em triciclo ou imitando um humano ao andar de pé sobre as patas traseiras – detesto. Essas coisas podem fazer mal a eles e bonito é cachorro sendo ele mesmo. Hoje eu sei entender a profunda sabedoria que tem na umbanda ter uma linha de crianças, e que ela é a mais poderosa para limpar ambientes: coloca uma criança (ou um cachorro) num lugar e veja ele ficar automaticamente mais leve.

Limpinho e correto

constelações

Eu falei dos ashwinis no último post porque tem a conclusão bacana da parte do meu irmão; se a minha intenção fosse apresentar a astrologia védica, aquele seria minha última escolha. Porque o que eu acho muito legal da história dos nakshatras é justamente eles não serem limpinhos e equilibrados como na astrologia ocidental. Mesmo sem perceber, aplicamos a ela aquela lógica de final feliz de filmes americanos, onde cada ponta solta gera uma resposta. Acho que Ashwini é o que tem a melhor descrição de todos, melhor no sentido de positiva. Mitologia indiana é muito antiga e muito pra lá de politicamente incorreto. Eles não têm a preocupação de dizer que todo signo é igualmente bom e ruim – alguns nakshatras tem descrições tão negativas que você decide que nunca gostaria de cruzar com uma pessoa dessas na sua frente, ou, caso você o tenha, que nunca vai poder dizer pra um indiano que aquele nakshatra aparece no seu mapa, sob o risco dele lhe virar a cara. Na história do Krittika, as coitadas das Plêiades foram expulsas por um adultério que não cometeram e ninguém se deu ao trabalho de desmentir. Tem nakshatra que fala que a vida vai ser muito difícil, de puxa-sacos manipuladores, de bem-sucedidos incapazes de ternura, que predispõe a incesto. Assim como há, quando se vai pensar em mapas para casais, três tipos de pessoas: as que beneficiam e fazem bem a quem quer que esteja do seu lado, as que tem uma troca regular e, por fim, aqueles que se aproveitam e prejudicam o parceiro.

O pressuposto básico da astrologia que uma pessoa é seu local e horário de nascimento, é altamente contestável – mas sabemos que os indianos têm razão, o mundo e as pessoas são mais do que defeitos e qualidades igualmente distribuídos numa balança. Os melhores astrólogos que tenho visto falam a mesma coisa, que a graça não é querer fazer previsões e dizer que é assim ou assado e sim aprender com essas metáforas, entender o que os nossos ancestrais tentaram nos falar, o que temos em comum com pessoas que viveram em outras épocas e também amavam, sofriam e pensavam sobre a vida. Existe algo de atraente nos nakshatras, nos Irmãos Grimm, nas Fábulas Italianas do Calvino; é mais humano do que um autor qualquer possa criar, elas transmitem muito mais do que a nossa mente cheia de tabus é capaz de reproduzir. Tenho me refugiado nos nakshatras porque encontro neles verdade, variedade e tempero, enquanto o mundo lá fora busca a pasteurização, odeia a variedade, nega o diferente.

Ashwinis

ashwini

(Vocês não sabem a dificuldade que tem sido não falar sobre política o tempo todo. Seguimos)

Finalmente consegui baixar um livro que estava a fim de ler faz tempo, sobre nakshatras. Eu tenho uma maneira caótica de estudar, sou obsessiva e consumo tudo, indo e voltando pros assuntos, o que faz com que eu não entenda nada e entenda tudo ao mesmo tempo. Comigo funciona. Algumas coisas que a astrologia védica que eu ao meu respeito são tão dolorosas – e devo reconhecer que acertaram na mosca – que acho que jamais terei coragem de ler um mapa védico pra alguém, caso um dia consiga. Sobre os 27 nakshatras, embora já tenha lido sobre todos, retomo e tento personalizar. É muito mais fácil prestar atenção quando ele fala de você ou de alguém que você conhece. Então o primeiro de todos, o Ashwini, é bastante fácil pra mim porque meu irmão tem a lua em ashwini (o que torna esse nakshatra o seu signo védico, digamos assim) e eu tenho marte e vênus lá.

Um pouco do nakshatra: ele é simbolizado por dois cavalos. A esposa do sol precisava de um tempo, porque o marido dela era literalmente muito quente, e fez uma cópia de si mesma para que ele não notasse sua ausência. Mas ele notou, quando a sua clone tratou mal um dos filhos deles. O sol foi atrás da esposa pela floresta, que se transformou numa égua, e ele se transformou num cavalo, e da união deles nesse estado nasceram os gêmeos Ashwinis. Numa das histórias, para descobrir o néctar da imortalidade, eles substituem a cabeça do sábio que tem a receita, porque um deus disse que cortaria se ele revelasse o segredo. Ele revelou, a cabeça foi cortada, mas era a cabeça de um cavalo e os Ashwinis colocaram a cabeça original no lugar depois. Por causa disso, esse nakshatra tem ligação com medicina, cirurgia, dons de cura. Em outra história, os aswinis quiseram casar com uma princesa que havia estourado sem querer, pensando que eram besouros, os olhos de um sábio, e foi viver com ele na floresta. Os Ashwinis eram fortes, jovens e bonitos, enquanto o marido dela era velho e cego, e mesmo assim ela não aceitou. Eles então ofereceram tornar o marido dela jovem e recuperar a visão, mas a princesa teria que escolher um dos três para se casar e eles estariam muito parecidos. O casal topou e a mulher, muito virtuosa, conseguiu saber qual era o marido dela. Essa história fala dos outros dons dos Ashwinis: restaurar a visão (há outra história com o mesmo tema), beleza, juventude e correção de caráter (por terem cumprido a promessa. No mundo das lendas védicas tem cada uma…). Quando um nakshatra é simbolizado por uma animal, conhecer o comportamento do animal é conhecer a natureza do nakshatra. Por serem representados por cavalos, os ashwinis são rápidos, fortes, inteligentes, dóceis e gostam de espaços amplos.

Eu tinha visto várias referências que diziam que era comum que irmãos gêmeos tenham esse nakshatra. Nunca dei importância, porque não sou. Hoje descobri que é possível que a pessoa tenha como se fosse um falso gêmeo, um outro muito parecido com ela. Aí pensei no meu irmão, e a maneira como nos achavam gêmeos durante boa parte da nossa vida, apesar de termos um ano de diferença. Pensei em nós dois de mãos dadas no recreio do colégio na nova escola e me emocionei. Ele é ashwini, eu também, somos mesmo gêmeos um do outro. Aí fiquei emocionada.

Curtas de necessidades

get cap

Aquele dia que você passa no supermercado sem saber muito o porquê. Passa pelas prateleiras, revisa mentalmente o que tem na geladeira, lembra que fez feira há poucos dias e se decide por um suco e um docinho. Quando chega em casa, descobre que precisa comprar arroz e óleo.

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Meu super poder x-men: empatia. Me pego falando de cachorro com a mocinha do caixa, recomendando kindle pro verdureiro, falando de corrupção com outro verdureiro. Ouço a confidência sobre o homem casado, recebo mensagem de uma inconsolável com uma injustiça. Na hora parece tudo normal, mas depois fico sabendo que foi só comigo. É sem querer.

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Não é de hoje que pensei isso, e talvez soe meio triste: meus blogs suprem a necessidade que tenho de compartilhar coisas que no mundo real não consigo. Quero que vocês assistam Atypical, quero que vocês leiam a biografia do Churchill, quero que mais alguém goste de nakshatras. Quando consigo influenciar uma única vivalma, fico tão feliz.

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“Já perdemos essa eleição”, me disse uma amiga bem desanimada esses dias, “pra que continuar lutando?” Eu lhe disse que temos obrigação. Nem que seja apenas para, no futuro, não se envergonhar. Pelo menos nós não nos omitimos.

Matérias do coração

Enquanto o país se mobilizava com o ataque sofrido por Bolsonaro, eu mal conseguia prestar atenção. O desastre do dia foi a Dúnia não conseguir apoiar a pata no chão. Ela havia passeado normalmente e duas horas depois estava trípede. Já era final da tarde de véspera de feriado e eu teria que esperar até o dia seguinte. Quis entrar em contato com o ex, que ele me acalmasse, instruísse, enfim, que dividisse esse peso comigo. Ele já está casado e eu não gostaria que o meu marido tivesse uma ex que liga em véspera de feriado desesperada com o cachorro. Usei o método de imaginar o que ele faria, a voz da razão que internalizei depois de tantos anos de convívio. Ele não apenas me mandaria dormir, como tomar um bom café da manhã para não passar fome durante ou depois da consulta. No fim deu tudo certo e ganhei mais uma estrelinha de vida adulta. Foi só sair de manhã, entrar em táxi, ver a veterinária e ser cutucada que a Dúnia já estava correndo como um filhote. O diagnóstico foi: frio e velhice. Além do anti-inflamatório, ela vai ter que tomar reposição de cartilagem pro resto da vida; como é meio impossível dar remédio para a Dúnia, isso lhe garantirá um pedacinho de salsicha pro resto da vida também.

Lembrei desta música do Miguel Araújo. Na introdução a ela no DVD do Cinco Dias e Meio, ele diz: “Se há um grande desastre, uma terremoto ou um maremoto na China, morrem milhares de pessoas e a pessoa fica um pouco incomodada; se há uma epidemia, uma doença qualquer na Espanha, e morrem dez, já é um pouco mais; e se morre um vizinho do lado, aí sim o acontecimento fica trágico”.

 

 

Nodo faminto

rahu

Quanto mais leio sobre astrologia védica, mais me parece que não sei nada. E ainda por cima devo estar desaprendendo o que eu sabia da ocidental. Mas tão lindas as histórias! Olha que diferente a maneira como tratam os nodos: os nodos norte e sul existem em ambas, embora a astrologia ocidental dê tão pouca importância ao nodo sul que geralmente ele nem aparece no mapa. São pontos matemáticos relativos à posição do sol e da lua e cobre um eixo de casas opostas, a saber: casa 1 e 7, casa 2 e 8, casa 3 e 9, casa 4 e 10, casa 5 e 11, casa 6 e 12. Se você o nodo sul em uma casa, necessariamente o nodo norte está na direção oposta, nodo sul na casa 1 indica que o nodo norte fica na casa 7 e por aí vai. A astrologia ocidental não gosta de pensar em vidas passadas, então geralmente falam que o nodo sul trata daquele assunto que você já domina, por isso ele lhe é sem graça, enquanto o nodo norte fala daquilo que você deve procurar aprender. Tudo muito limpo e racional.

Agora, à maneira védica: Rahu é o nodo norte e Ketu o nodo sul, também chamados, respectivamente, Cabeça do Dragão e Cauda do Dragão. Ele era uma espécie de demônio, que provou do néctar da imortalidade apesar de não lhe ser permitido. Vishnu tentou detêlo e o cortou – como ele já estava imortal, virou um corpo com dois pedaços. Ketu é a cauda e indica o que já foi feito repetidamente nas vidas passadas. É um corpo sem cabeça, burro; indica facilidade e isolamento, o que vem fácil mas sem o menor sabor, e espiritualidade. Rahu, como cabeça sem corpo, come sem parar porque não tem um estômago pra reclamar que já está cheio. Mais do que o que buscamos nessa vida, Rahu mostra onde temos uma verdadeira compulsão. A sua energia se molda de acordo com o lugar do mapa que ele está, mas numa versão “com esteroides”: exagerado, indomável, apto a tomar atalhos para conseguir o que quer. Enquanto Ketu fica quietinho no canto dele, Rahu quer fama, holofotes, prazeres. Ele é a figura simpática que coloquei para ilustrar o post.

Por mais que os dois termos falem do mesmo ponto matemático, Rahu e Ketu não são muito mais interessantes do que nodo norte e sul?

A fita poderosa

fita cassete

Eu não tenho mais a fita pelo motivo simples que há muito não se usa fita. Ela chegou até mim através de um colega de atelier, que me falou dela como um verdadeiro milagre. Tinha um som repetitivo de fundo, como um metrônomo, que através de estudos científicos que mostravam que uma determinada frequência sonora fazia maravilhas com o cérebro. Começava com um relaxamento e depois o locutor dizia coisas que avançados estudos científicos mostravam que o cérebro ficava reprogramado e a vida da pessoa mudava. Tudo naquela fita era super avançado. A fita pertencia a uma organização secreta e avançada, não se achava pra vender, mas ele faria uma cópia de presente para mim porque éramos amigos e ele confiava no meu discernimento. Cheguei em casa curiosíssima, me tranquei no quarto e deitei para ouvir a fita, conforme as instruções. Ela começava com aquele relaxamento que manda a gente se concentrar em cada parte do corpo. Depois de relaxar cada pedaço, nos pedia para colocar o cérebro num estado tranquilo. No fim, falava umas frases positivas. Isso. Era só um lado, meia hora, terminava com o sujeito dizendo que a gente podia acordar. No dia seguinte eu contei que ouvi a fita, ele perguntou o que eu senti e eu narrei tudo isso que escrevi acima. Meu amigo ficou impressionado: “Você tem um grande poder mental, geralmente a pessoa dorme nos primeiros minutos!” Fiquei orgulhosa do elogio e nunca mais o mereci: depois que eu já sabia o que tinha dentro, o cara mal começava a falar pra se concentrar no dedo dos pés e eu já estava roncando.

Todas as manhãs

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…você chama o seu cachorro pra lhe fazer um carinho, mas chega uma manhã que ele, com a cara já toda branca, prefere permanecer deitado. Na padaria do bairro, de novo, uma funcionária some e nunca se saberá o motivo. Na festa de encontros de ex-colegas de faculdade, além da exibição das rugas e barriguinhas, um casamento não vai bem colide com um coração que está livre. Os tapumes e a sujeira da calçada somem e, como mágica, se transformam em mais um arranha-céu. Na turma da academia, cheia de pessoas da terceira idade, é a jovem que está com câncer. Uma área inteira da cidade, um trajeto de ônibus e um lojinha somem da sua vida, deixam de existir no mapa, porque o motivo pra ir até ali não existe mais. Ser chamada de “senhora” se torna tão corriqueiro que deixa de ser ruim. A peça que estava à venda e já esquecida no meio da decoração da loja finalmente sai e rende um dinheirinho. A filha que nunca passava em medicina finalmente passa no vestibular, ou decide fazer outro curso, mora num apartamento e tem namorado. O calendário ideal, com espacinhos para escrever todos os compromissos do mês, no próximo ano não vai ter mais. Grandes amigos do passado e grandes ódios do passado desbotam e ficam quase iguais. A alça pra abrir a porta do guarda-roupa se solta. O irmão que era galinha se casa, o irmão mais amado não dá notícias. A longa estadia no exterior já foi e já voltou. A comida que era apenas para “se virar” se torna boa. A morte que parecia insuperável se mistura na rotina. Eu prossigo, vocês insistem em mudar.

Não existe mais o Museu Nacional do Rio de Janeiro

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Grande parte da nossa população não entende o peso da perda de um museu. É só pensar na histeria em torno na exposição Queer e a tal performance “incestuosa”. E a parte do país que entende, é elitista demais pra querer educar a outra parte – mais do que isso, tem feito de tudo para reduzi-la à subsistência. Tem dias que é duro demais.

Vai lá, vota em candidato que não quer ter nem Ministério da Cultura.

Curtas de uma mente exausta

Eu queria um sabonete líquido específico, que é sempre tão fácil de achar. Mas, parando pra pensar, eu nunca o comprava naquele supermercado. Olhei fixamente para a prateleira dos sabonetes líquidos, dos sabonetes íntimos, dos sabonetes, fui até a sessão de xampu, voltei para os sabonetes líquidos, fiquei olhando fixamente. Ele não estava escondido e não saltou da prateleira. Um funcionário não apareceu lá pra repor. Foi negação pura.

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Em poucos meses, do time “não sei inglês, nem me mostre”, passei a assistir vídeos sem legenda o dia inteiro e fazer minha primeira tentativa séria de ler um livro em inglês. Tudo por causa da minha curiosidade insaciável pelos nakashatras e a dificuldade de encontrar bons materiais em português. Uma coisa que a astrologia védica acerta e nunca achei uma boa explicação na astrologia ocidental é dizer que sou muito virginiana. O perfeccionismo quase (quase?) doentio sempre foi minha marca registrada.

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Aquele dia que você acorda decidida: cansei de ser forte, a vida é uma merda, vou me entregar mesmo, o próximo mês vai ser só na auto-comiseração. Aí você encontra com a pessoa que está vivendo uma das situações mais dolorosas da vida humana pela segunda vez.

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Este vídeo, tão lindo, mostra a órbita do planeta Vênus. Diz que numa divisão no tempo que Vênus leva ao redor do Sol com ao redor da Terra – ou algo do gênero -, chegamos no número aúreo. Quem estiver com a mente em perfeito estado, pode pesquisar as orbitas e fazer as contas. Mentes prejudicadas podem apenas olhar pro vídeo e ser hipnotizado também.