Choradores

lenço

Eu lembro que a Regina Casé tinha um programa temático que mostrava a vida de desconhecidos, acompanhava o que eles estavam vivendo, tudo de forma muito leve. Aí um dia eles foram atrás de pessoas fazendo mudanças. Não lembro quantas histórias eram, mas tinha gente empacotando, indo ao aeroporto, fazendo festas de despedida. Lembro de um caso em particular, acho que de uma moça que estava indo pro Japão. Ela contou sem dramas o que estava vivendo, que sem dúvida tinha a ver com a necessidade de ganhar dinheiro. Eu era muito jovem quando passou o programa, então aquela mulher contou que ia embora num tom normal e eu achei que estava tudo normal. No final do programa teve até um mea culpa, a Regina disse que quando pensaram no tema não tinha noção do quanto era difícil, que não havia nada de leve e divertido em sair fisicamente de onde você está para saltar no vazio. O que ficou para mim do programa foi a Regina Casé ao lado da moça, se acabando de chorar. Por ela, por toda aquela solidão, a solidão que a moça não podia se permitir sentir.

Visitação

culto

Eu era tão certinha, não gostava de ir a festas, beber e nenhum dos comportamentos que as pessoas tentam reprimir nos adolescentes, que achavam que seria facílimo me fazer entrar numa igreja – afinal, justo a parte que todos achavam difícil eu fazia espontaneamente. Me convidavam pra ir pra igreja delas e eu ia. Ninguém te convida de primeira a entrar na igreja, você é convidado pra um culto, ganha um livro sagrado de presente. Perdi a conta do número de denominações que eu visitei. Eu queria conhecer, saber como é por dentro. Eu ia, assistia, ouvia com atenção, era apresentada aos outros fiéis, ao grupo de jovens, cheguei até a ir em festinha. Depois perguntavam: e aí, gostou? Interessante. As pessoas são legais? Sim, foram legais. Viu como tem um monte de rapazes sérios? É, tem vários rapazes? E aí, vai voltar? Não. Nesse ponto ficavam doidos, levantavam a hipóteses de que alguém havia me tratado mal, ou eu não achei os rapazes bonitos. O engraçado é que as hipóteses sempre giravam em torno de pessoas e jamais do que eu pensava do que foi dito, do que era pregado.

Pam bam bam bambam

Era uma parte coberta que ficava nos fundos de uma casa, grudada no muro lateral. Em frente a ela, um pequeno jardim, com um banco. Já havíamos comido todos os doces e salgados trazidos pelas meninas e bebido os refrigerantes trazidos pelos meninos. Começamos a parte de dançar. Foi minha primeira festa de dançar. Não tínhamos muitas opções de discos e só queríamos músicas lentas. Por ser a primeira ou a última faixa de um disco de coletânea de sucessos internacionais, colocamos Take My Breath Away. Cada vez que a música terminava, iam lá – acho que apenas o dono da casa, mexer em vitrola era uma operação sensível – e colocavam a música de novo. Na pista sem qualquer luz especial, meus colegas de sala se transformaram em pares. As bonitas. As legais. A gordinha engraçada. Numa distância que me parecia de quilômetros, meninos do lado oposto, no banco do jardim descoberto. Eles se olhavam, cochichavam, até tomar coragem e convidar alguém. A que estava de pé, a da esquerda, a da direita. Até que a música continuava e o banco deles estava vazio. Eu olhei para o lado e havia uma menina da minha idade, com a mesma expressão que a minha. Ela foi embora logo em seguida. Sorte dela – eu passei o resto da noite (que deve ter durado, no máximo, até meia noite) ouvindo Take My Breath Away, enquanto o sofá crescia cada vez mais.

Lembrança datada e com trilha

Eu e os meus irmãos estávamos na casa de alguém, numa festa. Embora, pela proximidade de idade, eu e o meu irmão caçula estivéssemos mais na mesma fase, o meu irmão mais velho e ele se uniam e a guerra entre os sexos era mais forte. Crianças não tinham muito acesso a refrigerante na minha infância; quando bebíamos, geralmente alguém havia aberto uma garrafa de um litro e nos dado um copo. Naquela noite, cada um estava com sua própria coca-cola, na tradicional garrafa de vidro de 250 ml. Eu segurei a minha garrafa com a mão direita, a mão próxima do gargalo, e pus na boca. Era pesada pros meus dez anos. Meu irmão mais velho:

-Olha só, ela está bebendo igual alcoólatra, segurando a garrafa igual a Heleninha. (canta com voz aguda) O meeeeeedo de querer…

A Heleninha era Helena Roitman, de Vale Tudo. E eu jamais teria decorado a trilha sonora das ressacas dela se não fosse esta lembrança.

 

Depois ele me mostrou como segurava a garrafa do jeito “certo”, mais embaixo. Nunca mais helenei.

Está mentindo-tindo-tindoooo!

estatueta

Tem aquelas histórias que se tornam icônicas, pelo menos dentro do seu convívio. Eu li uma do Tio Patinhas em que ele consegue uma pequena estátua que tinha o poder mágico de identificar quando alguém por perto mentia. Ela cantarolava: está mentindo-tindo-tindooo! Lembro de um quadrinho que ele está falando no telefone com alguém e a estátua cantarola, e a pessoa do outro lado fica indignada – “Quem disse isso?”. O “está mentindo-tindo-tindooo!” virou piada interna na minha família há décadas, mas acho que eles nem se lembram mais.

Dia desses, eu estava falando de decisões perfeitamente racionais: não ter outro cachorro ou qualquer animal de estimação depois que a Dúnia morrer. Não é prático, não dá pra viajar, dá uma baita despesa. Sem ela, posso finalmente me mudar e não morar mais em casa. É muito mais o meu perfil um apartamento no centro, quem sabe alugar um mobilizado, postaram uma vez um tão lindo no twitter e eu já estava quase fazendo planos de ir pra lá. Aí, em algum lugar dentro de mim soou o “está mentindo-tindo-tindooo!”. Pior que eu estava falando sério. Mas estava falando, decisão, ego, razão. Acho que o núcleo duro, aquela parte do meu iceberg self que está debaixo d´água, não vai permitir nada disso.

Música italiana

Não sei, simplesmente acho que música italiana era moda quando eu era pequena. Cresci, e como acontece com todas as modas, comecei a achar brega. Aí o youtube, que vive me oferecendo coisas, colocou esta quando eu estava com a mão ocupada demais – na verdade, o corpo inteiro ocupado em tomar banho – e não pude fugir. Quando vi, estava cantando “Io che amo, solo teeeeeee!”. Tem o Chico, que é mais ou menos como colocar cobertura de chocolate num doce. Só que quando pude ver o clipe de verdade – saí do banho e pus de novo – vi a moça nessa atitude inspirada e voltei a achar brega. Outra lembrança infantil: as pessoas só cantam música apaixonadas com as pessoas apaixonadas? Por que elas são obrigadas a fingir que está rolando um clima? Perdoo porque é o Chico, e ele falando que ama solo te olhando pra te deve dar uns comichões mesmo.

 

Trazer alegria

marie kondo

Começou uma onda Marie Kondo quando apareceram os episódios na Netflix e, como sempre parece acontecer na internet, depois das reações iniciais boa, a moda virou e o bacana é detestar a Marie Kondo. Mas mesmo entre aqueles que disseram que não têm paciência com o jeitinho dela, acabam repetindo um conceito fundamental do seu método: trazer alegria. Além de ver os episódios, li o livro, e achei que ele realmente dá dicas valiosas. Percebi que eu me desfaço com facilidade de roupas, mas me dói muito lembranças e presentes. Coisas que nem ao menos gostei quando ganhei, atulham minha vida, e não acho correto me livrar. Ela dá alguns conselhos práticos a respeito e recomendo a leitura – só procurar pelo nome dela no LeLivros, caso você queira baixar.

Conversando com amigas sobre a Marie Kondo interior, eu percebi que consigo me desfazer com facilidade porque minha mãe me fez associar esse descarte com alegria. Limpávamos meus brinquedos periodicamente, e ela sempre destacou que aquele brinquedo que eu nem lembrava mais que eu tinha faria uma outra criança desconhecida feliz. Sempre acabo imaginando que, em algum lugar da cidade, tem uma pessoa com a roupa que não me caía bem ou o bibelô que eu não gostei, e feliz da vida.

Meio história, meio pitaco

luzes balada

Eu estava fazendo faculdade e fazia estágio numa clínica psiquiátrica. Fazia plantão no sábado de manhã. Tinha enfermagem, residente de psiquiatria, funcionários. Eu gostava de fazer esse horário porque era o mais calmo: não tinha mais nenhum estagiário e os pacientes passavam quase o meu plantão inteiro dormindo. O problema era, basicamente, acordar cedo num sábado. Eu saía antes do almoço. Fazia faculdade, não tinha grana e nem tempo pra nada, sempre fui calma e de poucos amigos. Meus fins de semana eram basicamente para adiantar os trabalhos, ver TV e dormir um pouco. Aí lembro do final de um plantão, que tinha um médico novo e gatinho, e eu me despedi dizendo algo como: “agora vou sair e aproveitar muuuuito meu fim de semana”. Aproveitar muito era dormir. Mas eu percebi que ele meio que se encolheu, ficou inseguro. Como se eu vivesse intensamente, uma vida de sexo e festas que ele não tinha acesso. Devia passar os fins de semana dormindo e vendo TV também.

Lembrei disso quando uma amiga que estava visitando a família no interior postou um history com foto dela numa balada. Era uma foto antiga, mas quem visse ia pensar que ela estava saindo naquela noite. Já cansei de falar aqui que estou muito longe de ser um caso de sucesso em termos de relacionamento, ninguém nem me pergunta nada, acham que só posso já ter me casado por milagre (e eu concordo). Mas se fosse dar um pitaco, eu diria que faz mais falta quem se mostra comum do que jogar uma imagem de sucesso intimidante.

O inconsciente tem seus truques. Eu estava indo ao supermercado,

porquinho com robozinho

…passei pelo mesmo lugar de sempre, ninguém no meu caminho e me veio uma lembrança totalmente esquecida há mais de vinte anos. Um sujeito que eu vi algumas vezes pelo corredor, durante a faculdade. Eu tinha um amigo carioca, que tinha sido do exército, era mais velho, ele era o safo da turma. O tal cara era amigo dele, mais safo ainda. O carioca tinha entrado comigo e reprovou uma matéria importante e ficou para trás. Por algum motivo que eu não lembro, fui fazer um trabalho com ele e outras pessoas da turma com que ele estava. Eu me senti naqueles filmes americanos de adolescente. Ficamos juntos umas dez horas no sábado, mais umas tantas no domingo. Conversamos, trabalhamos, comemos pizza, passamos no supermercado, ligamos para casa, rachamos táxi, trocamos confidências, aconteceu um monte de coisas e me diverti muito. No meio de tudo isso estava o tal cara e ele passou o fim de semana me dando indiretas e o carioca disse que o amigo dele queria me dar uns pegas. Eu fiquei lisonjeada, guardei no coração e não quis. Fui bem trágica nas minhas conclusões: eu não conseguiria dizer não, ficaria apaixonada, ele me maltrataria, dia seguinte o curso inteiro saberia o que eu topo ou não na cama. Na época, não pensei em nenhum momento que poderia ser diferente, que eu poderia não ir até o fim ou que ele pudesse não ser um canalha. Mesmo hoje, ainda acho que ele seria um canalha – mas que talvez se eu tivesse sofrido na mão dele, pelo menos teria sofrido na época certa. Pensei no quanto eu fui desproporcional e ao mesmo tempo tão tipicamente eu. Não é o conselho que eu daria pra alguém, mas mesmo hoje teria meus receios. Pensei na continuidade de quem somos, sempre, mesmo vinte anos depois. Ao mesmo tempo, antes eu sofria e agora tenho uma aceitação tão grande do meu ritmo e minha incapacidade de adaptação. Dei um abraço em mim mesma.

Uma bola de sorvete

pelourinho

Eu e o meu pai pegamos um ônibus comum, não o “frescão” que eu pegava quando ia visitá-lo, e fomos longe, até a cidade baixa. Paramos num terminal, quente a beça já de manhã. Andamos por ruas apertadas, lojinhas, comprando miudezas que ele precisava: um fio aqui, uma ampola e seringa ali. Eu adoro andar, e taí uma característica que não dá pra dizer de quem eu puxei, porque até onde eu saiba somos todos muito andarilhos – eu, meu pai, minha mãe, meu irmão. Andamos, andamos, andamos. Paramos num restaurante por quilo pra almoçar. A agenda já estava toda cumprida e ele me disse que me íamos até o Pelourinho, mas por cima, porque ninguém o obrigaria a subir aquela ladeira. Fui incontáveis vezes ao Pelourinho e jamais havia me dado conta que o caminho pra turista ver é sempre subindo. Naquele dia, ao descer, foi tão diferente que eu nem senti direito que estava no Pelourinho, só me senti realmente lá quando chegamos na praça perto da igreja. Talvez por isso tenha parado, pra realizar que estava no Pelourinho. Aí meu pai me perguntou: “Quer sorvete, filha?”. Não sei se é porque o meu pai conhece os meandros de Salvador como ninguém ou se é característico de todas as sorveterias da cidade, mas sempre que me foi oferecido sorvete lá, o “uma bola” correspondia a quase meio quilo de sorvete. Duas bolas, um almoço. Três, nunca arrisquei. Por isso quando ele me perguntou eu olhei pro horizonte com os olhos apertados, repetindo a cabeça pro meu cérebro e pras minhas vísceras – será que eu quero sorvete? Depois de alguns segundos, respondi: “Acho que sim”. Meu pai deu um meio sorriso, daqueles que acompanha um breve movimento de cabeça para os lados e me deu um beijo na testa. Se não fosse esse gesto dele, eu não teria percebido. Um gesto que dizia: típico. Hoje ele não tem dinheiro, mas já teve muito, e era sua filha querida. Sempre tive claro que poderia lhe pedir o céu, meu irmão me disse várias vezes que o pai atenderia a qualquer pedido que eu lhe fizesse, e eu não fiz. Deveria ter feito, acho que ele teria adorado ter a oportunidade de mostrar que me daria o céu. Mas eu era difícil e frustrante – bastava estar lá que andava o dia inteiro de chinelo e camiseta, o boné que me dessem. Ou estava deitada na rede e ou pra praia ali do lado, de camisetão cobrindo o biquíni, só pra visitar o mar. Eu não lhe pedia pra me comprar coisas porque não me ocorria nada pra pedir. Só naquele dia eu percebi que sempre fui assim.

Uma historinha já previamente descontextualizada

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Tenho quatro anos de diferença do meu irmão mais velho. Minha mãe contava umas histórias espíritas para ele – assim como outras tantas, tradicionais, modernas, de memória de livros, ela nos contava muitas histórias. Ela contava pra ele e eu estava por ali, brincando. Aí quando ela resolveu que eu tinha idade pra ouvir, eu achei ruim que entre uma “contada” e outra, ela tinha esquecido de detalhes e eu lembrava deles. “Então você estava fingindo que estava brincando e estava ouvindo tudo?”. “Sim”.

Era um homem muito mau e muito poderoso. Ele ficou a fim de uma mulher, que já era casada. Ele mandou prender o marido dela e disse que só devolveria se ela dormisse com ele. Ela cumpriu a parte dela no acordo, mas ele achou pouco apenas devolver e mandou furar os olhos do marido. Quando chegou a hora de entregar o marido para a moça, ele ficou escondido para ver e dar risada. Achou que ela ia xingar, esbravejar. A moça viu o marido cego e apenas ficou triste e o acolheu com todo carinho. Eu sempre imaginei o homem mau atrás da moita, a câmera por detrás do ombro dele. A moça se ajoelha e ajuda o marido a se erguer, e eles saem juntos pelo pátio de pedra, ela o abraça pelos ombros. Lágrimas silenciosas descem pelo rosto dela. O homem mau não consegue dar risada. Naquele momento surgiu a primeira luzinha de bondade dentro dele.

Um beijo a todos que também estão tristes e abraçados na sua ferida.

O dia que a Milena que ajudou a Maria Angélica

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Eu nunca lembro o nome de ninguém que estudou comigo na infância, mas das envolvidas eu lembro perfeitamente. A minha melhor amiga era a Maria Angélica. Eu lembro que ela tinha sangue português e a sobrancelha bem preta e grossa. Quando aconteceu eu acho que estava mais ou menos na quinta-série. Estávamos numa aula de educação física e os meninos jogavam futebol e nós estávamos esperando ao lado da quadra. Cercando a quadra havia uma tela, e ela estava com um furo bem grande, dava pra passar uma pessoa. Eu fui para perto do furo e fingi me encostar, fiz uma pose falsamente à vontade perto dela, sem colocar o meu peso. Aí a Maria Angélica veio, e sem reparar no buraco foi se apoiar na tela ao meu lado e caiu para trás. A quadra era meio alta e atrás havia grama. Ela caiu, gritou, não chegou a se machucar, mas uma das pontas da tela se prendeu nos fundos da calça do uniforme, e rasgou não apenas os fundos da calça como também a calcinha, cujo tecido branco dava para ver misturado com o verde do uniforme. As crianças se reuniram em torno. A Maria Angélica tentava sair e não conseguia, sentia que algo a prendia e não conseguia ver. Ela falava: “Fernanda, me ajuda, tem alguma coisa me prendendo.” Eu fiquei paralisada: eu me sentia responsável porque ela quis vir do meu lado e achou que eu estava apoiada na tela, mas toda situação dela caída no buraco e a calcinha aparecendo, as crianças rindo, era tudo constrangedor demais. Como fui ler décadas mais tarde, quando estudei estigma social, a pessoa que de alguma forma está desvalorizada socialmente “contamina” quem está do lado dela. Eu queria me afastar da Maria Angélica, não queria aquele ridículo pra mim. Enquanto eu hesitava, surgiu a Milena, que sentava perto de mim na sala, era baixinha e implicante. A Milena pulou por dentro da tela, soltou a calça e a calcinha e ajudou Maria Angélica a sair do buraco, tudo com muita rapidez. Depois eu fui falar com a Milena, elogiei a rapidez dela, e ela nem parou para me ouvir, me jogou na cara o mui amiga que eu era, que estava do lado e não deixei a menina de calça rasgada. Acho que o fato de eu jamais ter me esquecido do episódio diz tudo.

Na Tietê

tiete

Eram tempos pré-celular. Minha mãe havia me alertado que em São Paulo era diferente, que por causa das distâncias, um contratempo, uma chuva mais forte, e a programação pode ir toda por água abaixo e a pessoa se atrasa durante horas. Que uma vez ela tinha combinado de encontrar com o irmão dela, na Paulista, e ele atrasou umas duas horas. Ela ficou lá, de pé, olhando os carros que vinham, tentando reconhecê-lo. A culpa não foi dele, foi do trânsito. Quando ele chegou, os dois conversaram normalmente no carro e só quando chegou na casa dele viu que estava com a maquiagem toda escorrida. Então eu deveria ter calma. Quando meus pais se separaram, nas primeiras vezes alguém ia até São Paulo, e depois até Salvador, depois paramos de fazer aquela escala. Há anos eu não ia para São Paulo, era minha primeira vez sozinha. Minha tia, irmã da minha mãe, ia me buscar. Fui instruída a subir a primeira escada rolante à esquerda e procurar um cartaz muito grande que diz Ponto de Encontro. Minha tia sabia quando eu saía de Curitiba, quando chegava e em que ônibus, estava tudo certo, mas São Paulo era imprevisível. O ônibus foi pontual e cheguei no horário que deveria, subi a escada rolante e localizei facilmente o Ponto de Encontro, que aponta para um espaço vazio. Fui me aproximando e constatei o que já dava para perceber de longe: a minha tia não estava lá. Fui para bem embaixo do cartaz, olhei à minha volta e ninguém me procurava. Podia levar horas, como a minha mãe de pé na Paulista. Eu coloquei a minha mala no chão, sentei em cima dela e tirei uma maçã que havia trazido de Curitiba. Comecei a comer enquanto olhava distraidamente o movimento. Nem havia terminado a maçã quando, de longe, vi duas mulheres rindo na minha direção, que depois percebi que eram minha tia e minha prima. Elas me acharam tão relax, tão low profile, tão tão pra uma adolescente sozinha numa cidade estranha. Desejei que elas tivessem razão.

Uma coisica

vendo tv

Sabe aquelas lembranças que chegam sem motivo e te bate uma luz? Mais: sob esse luz nova você percebe algo que te passou batido na época. Adoro uma tirinha do Macanudo (procurei aqui e não tenho) que ele, andando de bicicleta, se dá conta que a menina que dançou com ele no primário queria um beijo.

A lembrança que tenho para contar não é fofa, mas é o que tem para esta noite de pouca inspiração. Poucos meses depois de ter me separado, ouvi que “quando a pessoa está deprimida ela fica na frente da TV se enchendo de salgadinho”. Eu não percebi que a que me disse isso estava vendo nas minhas roupas caindo – porque eu fiquei esquelética – um sinal de que eu estava ótima, não estava sentindo nada.

 

A moça que não calculava

homem que calculava

Meu irmão estava com um livro no quarto dele, O Homem que Calculava. Ele me disse que era um livro muito difícil, não tinha conseguido passar do terceiro capítulo. Fiquei curiosa e peguei pra ler.

-Então, gostando do livro?

-Ah, meio chatinho.

-Até onde você foi?

-Humm… capítulo 14.

-Tudo isso!? Eu não consegui passar dos primeiros problemas, são cálculos muito difíceis!

-Ah, mas tem que calcular? Eu estou lendo e olho a resposta no final. Impossível aquilo, nem tentei.

Banho no escuro

chuveiro

Há trocentos anos vi o depoimento de um homem que tinha a mãe cega, e ele contou que uma das suas lembranças mais antigas de infância era que ela dava banho nele no escuro. Se eu tivesse que escrever uma história, uma ficção, jamais me ocorreria um episódio desses, mas, ao mesmo tempo, é quase como uma consequência óbvia. Sei lá porque nunca esqueci a imagem. Agora, na academia, eles instalaram aquelas luzes com sensores de movimento. Algumas vezes estou no banho e a luz de repente apaga. A maioria das pessoas faz alguma coisa pra acender a luz, mexe na toalha ou coloca a mão pra fora do box. Eu fico torcendo pra ninguém fazer nada. Tomar banho no escuro é gostoso pra caramba.