Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha
de alta classe
De dourado eu lhe vestia pra que
o povo admirasse
Eu não sei bem com certeza porque
foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia
Chico Buarque/ Quem Te Viu, Quem Te Vê
Será que já aconteceu de um dia uma dessas mulheres que sabem se maquiar, andam de salto agulha e se sentem à vontade de blusa de seda no dia a dia dizerem para si mesmas: “acho que este tipo de roupa não me mostra do jeito que eu quero ser vista, gostaria de ser mais básica e não consigo!”. Porque eu sei que o contrário, da mulher básica se cobrar porque gostaria de ser mais elegante e feminina, acontece o tempo todo.
Comigo o “queria me vestir de maneira mais feminina” é uma crise recorrente. Já tentei mudar minha forma de vestir muitas vezes e somente quando, há poucos meses, fui testemunha da crise de uma amiga minha, me dei conta de que não é um problema exclusivamente meu. Minha amiga trabalha sozinha a e está quase se aposentando. Eu a conheci na academia, então achava normal vê-la sempre de roupas de ginástica. Depois comecei a perceber que ela também estava de legging e camisetas dry-fit no supermercado, na concessionária, no trabalho… Ela se arruma nas poucas vezes por ano que precisa ir a algum evento noturno, e vê-la de vestido, jóias, salto e cabelo de salão acaba sendo estranho. Há poucos meses, em meio à mudanças de vida, ela decidiu que não queria mais ser tão básica, que iria usar “um monte de roupas bonitas mofando”. Ela tirou saias e vestidos do armário, tentou novas combinações, usou de forma diferente o que já tinha… Só que, mais algumas semanas sem encontrá-la (pandemia, folks), e vejo foto dela no Facebook com a legging e a camiseta dry-fit de sempre…
O que me frusta nessa história não é o vestir-se em si e sim a questão do livre-arbítrio. Se não conseguimos mudar algo tão simples como a nossa maneira de vestir, o que dizer do resto? Como acreditar em se tornar uma pessoa melhor, descobrir em si um desajuste e tentar arrumar, ter vindo de um lar desequilibrado e tentar ser saudável apesar disso, abrir-se para um mundo novo de possibilidades? Comecei a pensar sobre a questão da roupa, do porquê parecer simples e na prática não ser, o que o tal fracasso revela.
O modelo de mulher vestida de roupas femininas exige tempo e dinheiro pra conhecer as maquiagens, as modas, as diversas opções de combinações, os cortes mais adequados à nosso tipo físico, que roupa vestir em que ocasião. São roupas que têm cortes mais elaborados e feitas de tecidos amassam, puxam fios, duram pouco ou precisam ir pra lavanderia. E existe aquele ideal que vai além da mera combinação adequada de todos esses elementos chamada “ter estilo”… A crise sobre como se vestir não acontecer com a mulher saia-salto-agulha e ser comum pá nóis – que andamos de transporte público e compramos na C&A em vezes – é bem revelador. Esta crise pode revelar uma incapacidade de geral de mulheres com determinados perfis (de renda, de idade, de cotidiano, etc) em se ajustar a um modelo elitizado. Ou seja: é pra ser caro, pouco acessível e nos deixar em crise mesmo. O ser “básica” é o fazemos mais naturalmente, as roupas que são mais fáceis de comprar e combinar, o que é confortável, o que dá pra vestir sem ter muito dinheiro ou passar muito tempo na frente do espelho. O tênis não machuca o pé, enfrenta qualquer tipo de chão, dá pra correr com ele; a mulher de salto praticamente só pode andar devagar porque é o único que dá pra fazer.
Uma curiosidade: sabem que os pés pequenos das chinesas não eram exatamente um fetiche por pés, né? Eles ficavam quase todo tempo enfaixados, porque doíam. A graça estava no fato da mulher ficar com pouco equilíbrio e ter um andar mais ondulante. Quando deu a revolução cultural, as mulheres com pés pequenos nem ao menos puderam tentar fugir, não dava. Nossa versão ocidental tampouco era confortável: os espartilhos não apertavam apenas a cintura como espremiam as costelas e tornavam a respiração superficial. Não é à toa que as mocinhas desmaiam com tanta facilidade e existem tantos quadros com mulheres languidamente deitadas em chaises-longue. Interessante pensar que tornar a mobilidade feminina algo difícil – tanto literalmente quanto figurativamente – seja um atributo que torne as mulheres mais atraentes aos homens.
Às vezes as pessoas tentam aproveitar uma grande mudança na vida para melhorar o resto. Por exemplo: muda de emprego e já aproveita pra chegar no lugar novo com outro corte de cabelo e uma nova forma de vestir. Tenho uma amiga que aproveitou uma mudança de cidade para chegar como alguém que bebe álcool, porque ela vinha de um meio místico que considerava isso errado e a olhavam feio se bebia um vinho. Os novos amigos já a conheceram agnóstica e não tinham nada contra bebida alcoólica. Tudo porque o convívio faz com que as pessoas tenham um julgamento fechado a seu respeito, e contrariá-lo sempre provoca alguma reação. Os “olha que bonita que ela está hoje”, “pra onde é que você vai desse jeito”, “está toda arrumada, deve estar querendo impressionar alguém” não têm nenhuma intenção consciente de punir ou fazer a pessoa voltar ao que era, mas muitas vezes acabam soando como uma reprimenda por não se estar do jeito como sempre esteve. Para alguns, chegar novo num lugar, sem saberem quem somos e nenhuma ideia preconcebida do que gostamos é uma grande oportunidade. Se hoje podemos desejar ser estrangeiros em algum momento das nossas vidas, nas histórias antigas era comum o estrangeiro ser recebido com desconfiança, porque ele era potencialmente mau e sedutor.
Ser estrangeiro era estar numa posição delicada, que exigia prudência por parte do estrangeiro e cautela por parte de quem recebia. Os locais se perguntavam: ele pode ter saído do país dele porque fez algo de errado e fugiu, ele pode seduzir as mocinhas do lugar e ir embora de novo, como saber o que ele está pensando? Então “quando um homem está viajando e é, portanto, estrangeiro, deve evitar ser rude ou arrogante. Ele não dispõe de um grande círculo de relações e não deve, portanto, se vangloriar.” (Hexagrama 56 do I Ching, O Viajante) Não saber como classificar alguém, não ter como puxar um histórico que permita prever o comportamento, pode gerar ansiedade – mesmo que seja apenas Juliette Binoche chegando na cidade pra fazer Chocolate. O estrangeiro pode até ser visto como alguém sem amarras, mas ele sabe o que carrega dentro de si. Será que o estrangeiro que saiu fugido consegue realmente chegar numa terra nova e se estabelecer em novas bases? Ou será que recairá no seu antigo comportamento e quem sabe tenha que fugir de novo? Pensando nas roupas: será que conseguiremos escolher o novo e transformaremos nosso estilo ou pouco a pouco iremos repetir tudo o que fazíamos antes, usando tudo o que já usávamos, recomprando aquilo da qual nos livramos?
Foram as grandes cidades que, de certa forma, nos transformaram a todos em estrangeiros. Esta sempre foi uma das vantagens das cidades e o que as tornavam atraentes: a impossibilidade de conhecer todos leva a não se conhecer nem os vizinhos, então cada um pode ser o que quiser. Cidades como NY se tornaram lendárias, sinônimos de vanguarda, porque todos os que se sentiam sufocados nos seus lugares de origem podiam ir pra lá e sair do seu armário sexual, comportamental ou artístico. Ao contrário do raciocínio que se poderia ter hoje, a uma criada de uma sociedade tradicional de nada serviria tentar usar as roupas lindas de uma dama. Houve época que as roupas eram estritamente ligadas a posições sociais – um nobre se vestia como um nobre, um servo se vestia como um servo. Tentar usar uma roupa que não pertencesse à sua classe soaria apenas absurdo – a quem se poderia enganar se todos conheciam seus lugares na sociedade? A mensagem que a roupa passava e a maneira como cada um deveria se vestir já era muito clara, então não havia muito o que se discutir. Querer que a roupa manifeste algo profundo e pessoal é uma maneira bastante nova de olhar para o assunto, possível pela união de pelo menos dois fatores: flexibilidade dos papéis sociais e uma concepção de um Eu como ser independente. Então, hoje temos uma inquietação com roupas que não existe na humanidade desde sempre; nós achamos que há um diálogo entre a nossa maneira de vestir e a nossa essência.
Essência? Não vou nem entrar nessa questão se há ou não essência, do caminho que foi construído ao longo da história para que hoje seja senso comum acreditar que cada ser humano tem uma, vou apenas soltar que somos – independente do que se acredite em termos de individualidade – um conjunto de hábitos bastante estabelecidos. Antes do hábito é preciso aprender, e para aprender é preciso vivenciar e repetir. Há quem diga que são pelo menos umas dez mil horas de prática para que se possa realmente ter domínio de alguma arte. Talvez quase todas as tentativas de mudar de estilo pessoal fracassem porque partimos de uma abordagem essencialista: eu reflito sobre meu estilo, acredito que busco algo diferente e tento transformar isso em ação; outra forma de abordar o assunto poderia ser behaviorista, de tentar mudar o comportamento através do comportamento e o estado psíquico acompanhará a mudança por consequência. Uma vez eu li (impossível dizer aonde) que mexer no computador, que hoje nos parece tão natural, é uma aprendizagem que leva cerca de seis anos. Para quem nasceu em meio à tecnologia, os seis anos passam sem sentir – uma experiência bastante diferente para os mais velhos, que sofrem preconceito por não conseguirem fazer algo tão “natural“. De maneira semelhante, pessoas que gostam de moda costumam estar sempre informadas a respeito de moda, se expondo às informações em revistas, vitrines, artigos e conversas com amigos, enquanto as que não gostam praticamente só se preocupam com uma roupa na hora de comprá-la. Visto desta maneira, o vestir-se ou não com “estilo” ou o fracasso em mudar não passa por “relação com a própria feminilidade” ou “sensibilidade estética” – como qualquer mudança de hábito, ela é muito mais um não saber fazer, ainda.
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