É o que tem pra hoje pra vocês

Lembro do dia que uma amiga veio conversar comigo porque havia começado a namorar um estrangeiro que estava há pouco tempo no Brasil e ele era mais novo. Como são as coisas: mais de uma vez, homens com idades que seriam muito mais compatíveis com a da minha mãe, se aproximaram de mim muito confiantes de que eram uma alternativa viável – enquanto isso, nós, mulheres, tendemos a evitar homens mais novos porque temos medo de que aquilo seja alguma brincadeira, acidente, aposta com os amigos, ou que eles saiam falando que “pegaram uma velha”. No meio da sua imensa insegurança, minha amiga me veio com a teoria de que talvez estivesse até se aproveitando do moço: “pense comigo, se ele estivesse mais tempo no Brasil, se ele tivesse mais amigos, se tivesse tido mais oportunidades, estaria ao lado de uma mulher mais nova e mais bonita”. Aí eu lhe disse: e a vida não é assim mesmo? Não estamos todos de alguma forma sempre em épocas erradas? Uma hora estamos lindas-solitárias e ninguém entende a falta de homem no mundo, noutras bem quando estamos acima do peso, o gato doente e cheias de dívidas, aparece alguém. As condições perfeitas que unem auto-estima, popularidade, rotina saudável e momento profissional ótimo quase nunca ocorrem.

Deixa eu fazer – temporariamente – um comentário insensível: quando eu vi a série da Netflix sobre o Luís Miguel, em três temporadas eles tiveram bastante tempo para mostrar o que é a vida de um super famoso. É realmente difícil uma engrenagem cheia de dinheiro girar em torno de você, estraga suas relações com as pessoas, tira os pés do chão. Mas no filme sobre o Elton John, Rocketman, não houve tempo para entrar nesses detalhes. O que vemos no filme é alguém super talentoso que alcança rapidamente o sucesso com uma fórmula que funciona muito bem, mas depois ele se sente preso ao que ele mesmo criou e não conseguia mais continuar naquele papel sem se manter feliz. Não consegui ter empatia pela crise imensa que ele teve por chegar na maturidade sem saber mais quem ele era em meio a tanto sucesso por um motivo simples: também estou na maturidade e sem saber quem eu sou, mas sem grana e nenhum sucesso, cada vez mais consciente da minha mediocridade. Quem me dera ter uma obra tão maravilhosa da qual me orgulhar.

Foi quando eu fiz balé, e estava toda errada em idade porque estava com quase trinta, tipo físico por não ter en dehors, ter quadris largos e uma flexibilidade apenas um pouco acima da média e falta de talento e expressividade em geral, e ainda assim estava fazendo aulas, admirando bailarinos, comprando roupas e fazendo apresentações, que eu me dei conta que de que somos nós, a multidão dos admiradores, que formamos a base da piramide para os poucos privilegiados que representam o topo de uma arte. A mesma coisa para escrever, as editoras dispensam muitos sonhadores porque existe a diferença entre escrever e ESCREVER – e ninguém saberia que essa diferença existe se não fossem as tentativas, as pessoas que escrevem bem e formam a base, para que quando surja algo excepcional as pessoas sejam capazes de reconhecer – “uau, peguei o livro pra dar uma olhada e não consegui desgrudar mais!” ou “Como é que essa moça consegue levantar o pé até a orelha com cara de quem não está fazendo esforço nenhum?”

É disso que falamos quando falamos em ambiente cultural. As pessoas, o capital, o egoísmo ou seja o que for, preferiria pinçar apenas os melhores e oferecer tudo a eles e nada aos outros. Apenas para citar um exemplo, já se tentou fazer isso com a psicologia, nos primórdios do teste de QI. Francis Galton, influenciado pelo seu primo Charles Darwin (que não teve nada a ver com isso, quem é que pode ser culpado pelo que os primos fazem?), tentou fazer um aprimoramento da população humana através da seleção artificial. A ideia foi pegar indivíduos com QIs altos e fazerem eles se casarem e terem uma prole geneticamente superior. A experiência não teve resultados significativos, e o fracasso da experiência se deveu, dentre outras coisas, à ineficiência dos testes de QI. Tentativas de eugenia nunca deixaram de existir, e pra isso melhora-se a metodologia para descobrir os fatores que tornam uma pessoa superior – seria sua genética, seu cérebro, os estímulos recebidos na infância? No fundo, ainda se segue a mesma lógica de buscar a maior eficácia, oferecer os recursos a quem pode usá-los de uma maneira superior à média.

O mundo não está divido apenas em Elton John x Pessoa que desafina no chuveiro. Um dos primeiros problemas que se descobriu nos testes de QI é que eles confundiam inteligência com cultura – as pessoas com maior escolaridade sempre pareciam ter QI maior porque os testes, de alguma forma, estavam ligados ao acesso à informação. Sempre que se fala de alta performance estamos falando em especialização, em uma habilidade extrema; qualquer habilidade, seja por alcançar níveis de excelência cada vez maiores ou mudança de paradigma, pode se tornar obsoleta ou até mesmo uma exigência básica. Por exemplo: índices olímpicos do passado de vários esportes nem classificariam o atleta para disputar de uma vaga hoje em dia, porque a técnica evoluiu muito. Antes, para ser astrólogo, era preciso ser bom em matemática, e hoje qualquer site faz os cálculos com facilidade, o que torna a interpretação dos dados muito mais importante. Quando todos se tornam melhores, o que era a excelência se torna comum e é preciso arranjar outro degrau para subir. Então precisamos sim de alta performance, mas precisamos também do imprevisível, que cria territórios novos e leva o saber para outras direções. Eu lembro que uma vez disse a um amigo escritor que, quando lia Borges, eu perdia a vontade de escrever, sentia que ele era tão bom que a minha escrita era totalmente dispensável. Ele me respondeu: “eu adoro Borges, mas não quero ler Borges o tempo todo”. Eu não sou Borges, mas é o que tem pra hoje pra vocês. Ele não está vivo, ele não escreveria em blog, ele não fez balé e não ajudou amiga namorando estrangeiro. Eu sei que ele faria melhor, mas ele não está aqui.

Queixas sobre se sentir totalmente perdido pela fama massiva são tão constantes na biografia dos super famosos que são praticamente uma regra, ou seja, não é saudável para o indivíduo. Nós, os medíocres, assim como não temos a capacidade de produzir um trabalho com a qualidade deles, também não conseguimos entender as dificuldades da super fama, o que os tornam duplamente isolados. Claro que sempre existirão os mais talentosos e os que fazem as humanidade avançar alguns passos a mais, mas deveria haver uma forma de reconhecer a genialidade sem acabar com a saúde das pessoas. Gosto de uma citação de Darcy Ribeiro que dizia que cada objeto produzido pelos índios era uma forma de arte; havia sempre uma personalização, um detalhe que tornava aquele objeto único, não apenas entre todos os já feitos pela mesma pessoa, assim como de uma pessoa para outra. Por isso que eu vejo com muita simpatia o fenômenos das sub-celebridades e os famosos de twitter, acho mais saudável. O fenômenos dos super famosos me parece ser jogar sobre um o que deveria estar distribuído por toda sociedade – que fôssemos todos reconhecidos como artistas, ou que todo fazer fosse reconhecido como artístico, porque tudo num ser humano é irrepetível.

Os piores conselhos possíveis

Um dos muitos motivos que me levou a abandonar a psicologia foi por achar que eu não teria paciência para entender o longo processo que é acordar para o que se tenta negar. O insight tem a característica de ser súbito e extraordinário, mas a verdade é que ele costuma ser o fim de um processo, uma busca cheia de idas e vindas, uma tatear na parte clara, igual o cara da metáfora que perdeu as lentes de contato longe do poste, mas procurava ali porque era aonde tinha luz. Para quem está de fora a decisão mais saudável pode parecer cristalina, resumível em uma frase, mas de nada adianta apenas dizer, o sujeito tem que chegar nela por si só. Enquanto não chega, ele arranjará substitutos, motivos, falsas soluções, doenças, respostas criativas e ridículas, tudo para não encarar o que lhe parece ser uma dor insuportável demais para ser enfrentada. Um bom psicólogo deve ter equilíbrio para entender o processo e não tentar apressar o que não pode ser apressado. Mas às vezes pode ser angustiante demais esperar e a assistir o outro se debater na sua incapacidade. Então, que bom que euzinha não tenho obrigação nenhuma com relação ao aconselhar.

Eu já fui partidária da verdade a todo custo, no chorar todas as dores, em colocar os podres na mesa. Aconteceu comigo o que acontece com todos idealistas: eu virei adulta e descobri que só funciona nos filmes. Abrem-se buracos ainda maiores, as mágoas vão atingindo histórias do passado que não tem mais fim, as palavras possuem significados pessoais tão diversos que fica impossível controlar o que chega do outro lado. Pensar que dizer o que nos atinge para alguém na esperança de que isso despertará o seu senso crítico é quase como esperar que políticos não sejam corruptos. É fácil entender: nós mesmos não somos lá muito auto-críticos. Mesmo quando achamos que somos, quando praticamos constantemente o olhar sobre o que fazemos, criticamos sempre os temas que nos são caros, não conseguimos sair da mesma lógica. Eu me preocupo em tratar bem as pessoas e estou constantemente me vigiando, julgo quem hierarquiza, avalio os outros pela maneira como eles lidam com estranhos ou com quem os serve, e assim me sinto uma boa pessoa. Alguém que diga que muito mais importante do que tratar bem estranhos é tratar primeiro os que nos são mais próximos, ou seja, a nossa família, já joga por terra tudo o que eu faço e me coloca no hall das pessoas ruins.

Lembro de uma época que estava tentando vender meu trabalho artístico e encontrei um site ligado ao banco. Era uma proposta de vendas que teria uma grande visibilidade e seria internacional, mas deve ter sido um desses projetos experimentais e sem apoio dentro da própria instituição, porque no fim era apenas uma página feia visitada pelas próprias pessoas que se filiaram nela. Eu tinha uma amiga mais ou menos na mesma situação que a minha – artista sem visibilidade -, e indiquei o site a ela. Era uma pessoa de quem eu gostava e aquela indicação nos afastou. Embora fosse uma filiação gratuita e sem nada a perder, essa amiga passou a me perguntar diariamente se eu garantia, se era bom mesmo, se estava dando certo, que ela queria ter certeza. Pra mim aquela tentativa dentro do site já era algo pesado pois, assim como ela, eu também tinha um histórico de fracassos e de nunca alcançar visibilidade. Eu só quis ajudar e arranjei alguém que me cobrava diariamente por algo que eu não tinha controle.

Nunca esqueci esse episódio porque ele talvez seja o mais comum quando tentamos ajudar. Mais de uma vez quis saber o que certos amigos ouvem em terapia, porque de longe me parece muito claro que eles estão andando em círculos e a terapia me parece tão ineficiente quanto tentar se alimentar de luz. Tenho a fantasia que alguns deles decidem conversar a sério comigo, pagando uma sessão e dando a mim o status de sua psicóloga, e posso uma única vez lhes dizer o que penso, para o que eles não acordaram, o que devem fazer, e a partir daí eles vão conseguir ajeitar suas vidas e não serei obrigada a vê-los sofrendo de maneira repetitiva – se é pra sofrer, que pelo menos sofram com novos temas. Mas a verdade é que eu não lhes diria o que penso e agiria como as psis deles agem. O que tenho em mente nas minhas fantasias são Os Piores Conselhos Possíveis. São conselhos selvagens, conselhos que jogam para um ideal que nada tem a ver com o que eles conseguem e sim com o que poderia ser. Nessa fantasia, eu os estimularia a serem corajosos, diria que quem tem razão é Guimarães Rosa, citado na posse da Dilma, citação que ganha uma grandeza ainda maior se levarmos em conta o que aquela mulher viveu e aonde ela chegou: “o correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Num vídeo recente, um astrólogo chamado José Millán disse num de seus videos algo mais ou menos assim: “Viver é menos sobre buscar a felicidade e mais sobre tentar tornar essa experiência algo interessante”. Eu fiquei surpresa em alguém colocar em palavras algo que eu achava que era muito meu. Assim como meus Piores Conselhos Possíveis, eu também sou campeã das Piores Decisões Possíveis e me encontrar, aos meus quarenta, solitária e iniciante em tantos níveis. Se ninguém olha para mim e deseja ser como eu, também não posso ser alguém que diga aos outros o que fazer – percebi isso bem claramente pela maneira como meus conselhos amorosos são totalmente desprezados. Sem dizer que eu desconfio que haja também na questão dos conselhos uma diferença geracional, o tal do “essas novas gerações não suportam nada”. Uma conjunção de fatores muito difícil de mapear tornou as novas gerações menos aptas ao sofrimento, isso é fato. Na minha era comum dizer: “se você tem como se sustentar, separa desse canalha e pronto”. Nós sabíamos – ou achávamos que sabíamos – que no começo seria difícil e que depois tudo se ajeitava, valeria a pena. A verdade é hoje que dá medo aconselhar. Parece que com qualquer conselho mais corajoso, se seguido, quebraremos a pessoa em mil pedaços, ela vai estar deitada numa cama e cheia de remédios, sem conseguir sobreviver e repetindo que foi tudo culpa nossa, por ter lhe dado o Pior Conselho Possível. O mais fácil é deixar a pessoa ficar na sua roda de hamster.

Quantas bocas a cidade vai abrir pruma alma de artista se entregar

Eu fui ver a exposição Os Gêmeos – Segredos no Museu do Olho e fiquei bastante tocada. Eu já conhecia o trabalho deles e achava bonitinho, reconheceria aquela figura em qualquer lugar. Como toda exposição badalada, as fotos começaram a aparecer nas minhas TLs e eu achei que já sabia o que veria. Não sei como a exposição fica montada em outras cidades, mas aqui é preciso subir alguns lances de escada para chegar nas obras, e nesse percurso vamos conhecendo o próprio percurso dos dois. Eu sou TOC demais para passar por tanto material sem parar diante dele e ver, mas confesso que fiz isso com uma certa impaciência; há desenhos de infância, anotações, fotos de pichações, coisas que só pais muito zelosos – ou certos da genialidade dos filhos – são capazes de guardar. Mas aquele material foi me informando sobre os dois de uma forma que fui me sentindo familiar, como se fossem vizinhos meus: dois irmãos tão inseparáveis que são até colocados em salas diferentes para aprenderem a interagir com os outros, crianças que amam desenhar e se dedicam mais a rabiscar seus cadernos do que fazer as lições, adolescentes que vão pras ruas, dançam, picham, somem pelos becos sujos, andam entre os trilhos e parecem que nunca serão ninguém na vida. E os desenhos persistem, e como qualquer atividade com uma dedicação insana de horas, eles vão se tornando bons, até que chega um momento que tudo parece se encaixar. Depois de tantos desenhos bonitos e feios, chega uma hora que falamos: opa, chegaram Os Gêmeos. E quando subimos no Olho, na exposição das obras propriamente ditas, vemos a biografia deles em cada detalhe. Eles são os meninos com a camiseta cobrindo o rosto, eles estão parados em turma fazendo pose para foto, são eles encostados no muro, eles abrem os braços pro céu cinza e respiram fundo o óleo diesel dos carros. É sempre a mesma coisa – o personagem amarelo, na cidade, em muros e metrôs, roupas estampas, fundos coloridos – e sempre se renova, cada obra consegue acrescentar outra informação e despertar nosso interesse. Olhar o trabalho deles foi como estar diante de uma árvore frutífera em plena saúde.

Não devo ter sido a única pessoa que já soube de psicólogo (ou pedagoga) tentando criar o filho para ter altas habilidades. Em escolas de música, também aparecem pais que querem colocar crianças muito pequenas, que mal têm coordenação motora, para aprenderem algum instrumento. Quando se diz a criança não atingiu a idade mínima, eles não querem obedecer, porque o objetivo é justamente que a criança “saia na frente” das outras. Cada área possui informações sobre o que torna um indivíduo excepcional e é claro ter informações privilegiadas nos faz querer aplicar. No caso de ter altas habilidades, o segredo está no papel do estímulo e as janelas de oportunidade do cérebro da criança ainda muito pequena. O meio artístico também tem suas fórmulas. Na minha curta carreira como escultora, eu recebia como reprimenda não ter foco. Eu produzia muito, mas a cada escultura eu tentava algo diferente, e as pessoas diziam que assim meu trabalho não se tornaria marcante. O grande artista necessariamente tem um estilo característico, uma constante que permeia seu trabalho. Ao longo da minha vida convivendo com a busca (minha e dos que me cercam) pelo “grande talento”, já vi pessoas abraçarem as ideias mais esdruxulas na tentativa de ter esse “quê”, algo apenas seu. Era essa a pressão que eu sofria, de ter alguma marca muito específica, qualquer que fosse – e como foi uma carreira fracassada, quem sou eu para dizer que não estavam certos. Nos Gêmeos há temas claros: urbano, periferia, hip hop. Mas, quando vemos a trajetória deles refletida em inúmeros registros ao longo da vida, todos aqueles desenhos de infância, não me parece que eles tenham tido a preocupação de escolher e focar, e sim que eles estavam ocupados vivendo. Eles viviam e desenhavam. Outra coisa dos Gêmeos é que às vezes dá a impressão de que apenas se pinçou uns pichadores e se colocou holofotes sobre eles, tamanha a representatividade do trabalho. Essa é outra característica de grandes artistas: conseguirem expressar uma época.

Lendo a biografia de músicos, escritores, artistas plásticos e dançarinos, é raro que os grandes de uma época não estejam todos nos mesmos lugares e festas, sempre parece haver algum Bloomsbury Club. Artistas que conseguem se manter relevantes durante décadas parecem ser sempre aqueles que incorporam o novo do seu trabalho. Pode ser algo orgânico, como me pareceu ter sido o interesse dos Beatles na literatura e na arte – mesmo porque foram eles uns dos primeiros a inaugurarem a fama mundial. Pode ser também uma necessidade, justamente porque o precedente já foi criado. Numa série ótima sobre o Frank Sinatra, que já saiu do catálogo Netflix, vemos que aparecer ao lado de Elvis na TV foi uma escolha totalmente mercadológica, Sinatra detestava rock. Ele também se vestiu mariachi, dançou quando a dancinha estava na moda, fez o que foi preciso para continuar sendo relevante. Ou seja: se você quiser ser grande, foque. Mas também desfoque.

Eu sempre penso numa moça, filha de um cantor de uma dupla sertaneja famosa, que passou anos tentando ser cantora também. Ela teve os melhores professores de canto, o melhor look, o melhor repertório e a melhor publicidade que o dinheiro era capaz de comprar, mas nunca deslanchou. Numa maneira mais cínica de olhar o assunto, poderíamos dizer que são as roubadas, as dúvidas, os bares sujos, os trabalhos mal remunerados e o convívio com o fracasso que realmente forjam o artista. Mas Chico Buarque (Vinicius de Morais, Jorge Amado, etc.) nasceu muito bem, teve acesso a tudo e conheceu o sucesso muito jovem, então também não é necessariamente por aí. Lembro de uma descrição do livro “O burlador de Sevilla” (2000), de João Gabriel de Lima que dizia mais ou menos assim a respeito de uma personagem: ela é uma dessas pessoas que tem uma vocação artística, mas é algo difuso, então ela passeia por diversos tipos de arte, sempre sendo boa, mas nunca excepcional. Acho essa descrição uma facada, de tão maldosa e precisa. Foi apenas quando eu me apaixonei por balé, toda velha e toda fora do biotipo, pagando pra ter aula e subitamente apaixonada por todos aqueles acessórios cor de rosa e desenho de sapatilha, que eu entendi que o artista excepcional é o topo de uma piramide – centenas de milhares de apaixonados, com graus diferentes de mediocridade, que fazem com que aquela arte não morra porque a financia e assiste. É justamente a nossa incapacidade que nos faz dimensão do quanto eles conseguiram de especial. A grande arte é algo que passa pelo incontrolável, ela precisa despertar paixão. Como se desperta uma paixão? Podemos nos fazer bonitos, arranjar um lugar romântico, falar as palavras mais agradáveis… e mesmo assim pode não acontecer.

Ah, essas novas gerações…

O fato de não ter filhos retira da minha vida questões que pais sempre enfrentam. Lembro de acompanhar de perto o convívio de uma amiga com a filha e minha idade ficava justamente no meio das duas, e me identificava com as duas. No início da idade adulta – que fica cada vez mais tarde – ainda somos crianças o suficiente para achar que nossos pais devem nos dar tudo – inclusive as coisas intangíveis como a liberdade -, e fazemos o jogo de sempre pedir várias coisas na esperança de obter algumas. Então o filho diz: me dê dinheiro, me dê roupa, me deixe sair e voltar a hora que quero, me deixe me trancar com o namorado no quarto. Já os pais estão cansados deste papel, mas também não podem e não sabem como dar aos filhos a liberdade plena de um adulto. Então: eu te dou dinheiro para cortar o cabelo, mas não pode fazer loucura com ele, eu te busco na balada e tenho de aprovar (a)o candidato(a) a genro(nora).

Mas por estar sempre em contato com a geração mais velha – imagina se adolescente vai querer ser meu amigo -, o que eu mais ouço são as queixas dos pais. Um dos momentos que eu considero mais interessantes é quando falamos de coisas que na nossa infância eram consideradas sem riscos e hoje são impensáveis: com menos de dez anos pegávamos ônibus sozinhos até a escola, éramos colocados no porta malas durante viagens longas pela estrada, ficávamos apenas com outras crianças o dia inteiro sem que ninguém soubesse aonde estávamos e por onde havíamos andado. Fatalmente a conversa termina com: como é mole essa nova geração dos nossos filhos. São uns mimados, não têm metade da nossa força, não têm iniciativa, não são capazes de nada. A grande culpa costuma ser jogada sobre a tecnologia: “Eu digo pro meu filho, a vida é muito mais do que ficar o dia inteiro com o celular na mão”. Mas há também o reconhecimento em dizer: eu sei que eu protejo demais. É puro conflito, um conflito que – dizem! – nossos avós não tinham, filho não tinha voz e pronto.

Eu tenderia a concordar, os jovens adultos de hoje também me impacientam. Mas o fato de sempre ter andado com pessoas mais velhas me fez viver a experiência de ter vinte e poucos e conviver com uma mulher de sessenta. Isso foi na época que eu era escultora, nós nos conhecemos no atelier e ela via em mim um grande talento e queria me ajudar. No fim nada deu certo, mas a tentativa nos levou a conviver muito. Eu me lembro como ela me achava sem força, sem iniciativa e incapaz quando comparada com ela, que na minha idade já advogava, já tinha se separado e sustentava sozinha os dois filhos, etc.

Os mesmos pais que reclamam da inutilidade dos filhos os deixam na porta do vestibular e ficam mais de quatro horas trancados nos carros esperando eles voltarem (moro perto de um local de prova, via isso todos os anos). Eles não conseguem evitar. Dizem que os ônibus são perigosos, que o prejuízo de perder uma prova dessas vale mais do que uma possível lição sobre responsabilidade, enfim, que a vida é dura. E nisso eles têm muita razão. Eu lembro que meu pai achou que o certo, depois que eu me formasse, era ir pra uma cidade de interior e aceitar um estágio qualquer numa clínica com a esperança de subir de cargo. Talvez na época dele tivesse funcionado, mas na minha não funcionava assim e sem dúvida hoje está muito pior: a melhor maneira de conseguir emprego “começando de baixo” de hoje requer graduação, pós, segundo e terceiro idioma, carro próprio e disponibilidade de horário. Com esses requisitos, é possível ter um emprego ruim e crescer, sendo que a outra alternativa é simplesmente ganhar mal. Perder um ano porque perdeu um vestibular hoje pesa muito mais do que antes e quem quer se arriscar a usar um momento desses para fortalecer caráter de adolescente?…

Quem acompanha este blog há mais tempo, antes dele ficar tão sério, sabe que sempre fui uma grande usuária de ônibus, diria até uma apaixonada. Sempre tentei mostrar que pegar ônibus não é esse desastre e perigo que se atribui. Usar ou não transporte coletivo, descobri, faz parte de uma ampla discussão (da área de Arquitetura e Urbanismo) sobre a ocupação do espaço urbano. Quando as pessoas desocupam o espaço público, ele se torna perigoso – sendo que as pessoas o abandonaram alegando que era perigoso, num círculo vicioso cada vez mais difícil de romper. Se as pessoas param de andar nas ruas, não veem mais o lixo no chão, a lâmpada queimada e a falta de lugares para sentar, a rua se torna um lugar cada vez mais hostil e só as pessoas que não têm opção vão passar ali. O que salva o espaço público é gente passando, descansando nos bancos, passeando com os cachorros, fumando cigarrinho enquanto conversa com os amigos. Na minha infância, o sistema de transporte de ônibus de Curitiba era motivo de orgulho e muito utilizado pela classe média, que preferia deixar o carro na garagem porque andar de ônibus era mais fácil. Hoje é comum as pessoas acharem que bastou cair a tarde e fica perigosíssimo estar dentro de um ônibus. Perigoso, eu digo, é estar sozinha num carro em movimento dirigido por um desconhecido que tem seu endereço.

O que fica muito claro pra mim é que ninguém está educando os filhos como quer. Mesmo que um pai desses resolvesse sair desse conflito e apenas aplicar com os filhos a pedagogia tal como fomos criados, o Conselho Tutelar iria bater na sua porta – onde já se viu, deixar uma criança de dez anos exposta, sozinha, aos perigos das ruas? O mundo apressado, violento, desigual e hipersexualizado que estamos vivendo faz com que apenas os desprotegidos socialmente não prolonguem o infantilismo dos seus filhos pra lá dos seus vinte anos. Porque nós sabemos que não é a pura acomodação que faz com que o jovem de hoje saia de casa cada vez mais tarde, e sim os salários baixos e a total falta de perspectiva. Com a necessidade de conviver com um adulto em casa cheio de hormônios, as relações entre pais e filhos foram se modificando, as regras ficaram mais tolerantes e ficar na casa dos pais se tornou sim mais livre do que era antes. Mas quando fazem isso, os pais se culpam por estarem atrasando ainda mais o ingresso dos filhos na idade adulta, sendo que “na idade dele eu já estava casado, trabalhava, tinha um filho, etc.” Dizem que os filhos são criados para o mundo, e eles são também o mundo. Os filhos trazem para dentro de casa o mundo tal como ele é hoje – um mundo que não se parece com o nosso e está bem longe de ser como gostaríamos que fosse. Entre nossas pequenas ideias e lembranças de como uma educação deve ser, o que acaba prevalecendo é a força do coletivo, fazer mais ou menos como todos os outros pais estão fazendo, o que possibilita aos nossos descendentes uma base para construir o futuro.

Pitacos grosseiros sobre pedagogia

Lembro que uma das minhas professoras de psicologia, que também estava começando a carreira docente, fez uma pesquisa antes de assumir a disciplina e nós, alunos, nos queixamos do cansaço, do formato convencional das aulas, da impossibilidade de digerir tanto conteúdo na nossa carga horária. Ela decidiu fazer algo a respeito e, bem… Devo dizer que nós achamos admirável que ela não se conformasse em apenas ler o conteúdo da matéria e escrever no quadro, vimos que ela se esforçou. Lembro de chegar em uma aula, ver vários grupos sentados em círculo e um quebra cabeças, semelhante a um cubo mágico, com cada um. Fiquei cansada só de pensar que passaríamos por aquilo de novo, semanas e mais semanas de discussões em roda sobre algum brinquedo. O resto do grupo estava com tanta má vontade quanto eu. Sabem o que é alguém te dar um balão, você ter que discutir com o grupo e a partir daí chegar ao pensamento Construtivista? Era isso o que ela tentava fazer.

Eu me lembrei do causo porque finalmente decidi não apenas ler sobre Paulo Freire e sim ter a minha própria impressão de Paulo Freire. Me dou ao direito de ser piegas: estou achando lindo. É daquelas leituras que nos fazem vislumbrar um mundo melhor e querer caminhar até lá. Mas eu me perguntei o que eu faria, se fosse professora, impactada pelo Pedagogia do Oprimido, para mudar minha pedagogia no dia a dia. Eu não poderia fazer uma pesquisa de campo e, baseada na realidade dos meus alunos, construir com eles o que seria ofertado como disciplina naquele ano. É o velho problema entre teoria x prática, curto prazo x longo prazo; Paulo Freire propõe uma reforma ampla, uma política de Estado. Talvez aquela minha professora de psicologia tenha sido leitora de Paulo Freire. Depois de semanas desastrosas, ela acabou desistindo das aulas “desconstruídas” e se queixou de ter tentado nos ajudar – nós havíamos nos queixado do formato tradicional, mas, quando tivemos chance, não aderimos ao novo. Lembro que nós sentíamos que o que ela propôs não estava dando certo, mas tampouco éramos capazes de dizer aonde estava o erro, o que poderia funcionar. Nenhum de nós – professora e alunos – tinha no seu repertório a vivência de construir o conhecimento juntos, como Paulo Freire propunha. A boa intenção foi vencida pela ignorância.

Meses antes do início da pandemia, eu arrumei um emprego temporário como aplicadora de prova. Era uma prova parecida com um vestibular, que servia para avaliar a escola e decidir sobre futura distribuição de verbas. Embora os alunos recebessem todas as questões num só caderno, eram quatro provas e pra cada uma havia um tempo estipulado, que era meio longo. Na maioria dos colégios tudo foi bem; o tempo sobrava, os alunos começavam a ficar impacientes, rolavam umas conversinhas e eu chamava atenção, nada sério. Até que na última escola deu tudo errado. Quando comentei do trabalho, que iria para escolas públicas, cheguei a ouvir que corria o risco de levar navalhada na cara, e as oito aplicações que havia feito contrariam os esteriótipos com louvor. Naquela última sexta-feira fui parar numa turma F, de repetentes. O combinado entre as escolas e a Secretaria de Educação era que nos corredores, enquanto a prova fosse aplicada, haveria um funcionário para escoltar o aluno que pedisse para ir ao banheiro e ajudar o aplicador a acalmar a turma, caso fosse necessário. Justamente nesta escola não havia ninguém. Apesar dos meus avisos, os alunos fizeram as quatro provas de uma vez, e por consequência sobraram duas horas antes que eu pudesse liberá-los. Foram muito longas duas horas trancada com eles, sem o menor controle sobre a turma, sem ter pra quem pedir ajuda ou pelo menos poder propor alguma atividade. Lembro que um chegou a comentar: “se foi moleza assim essa, imagina no vestibular” e eu pensei – “no vestibular, você mal vai olhar pro lado e o fiscal vai te expulsar da sala sem apelação, e você vai tempo, dinheiro e um ano de estudo”.

Quando finalmente a porta abriu, eles saíram como se eu já não existisse e eu os odiava. Eu pensei nos professores que lidavam com eles todos os dias, como deve ser abrir os olhos de manhã e lembrar que era dia de entrar na turma F. Agora, depois de ler Paulo Freire, penso nas distorções que o nosso modelo “bancário” de educação – onde o conhecimento é apenas depositado no aluno – causa no convívio entre as pessoas. Se por um lado, o que oferta o conhecimento detém todo poder, por outro ser o que recebe coloca a pessoa numa posição onde ela não se responsabiliza em nada pelo processo. Se o professor se sente frustrado porque não conseguiu dar aula, se estar em certas turmas destrói vocações, se quase todo tempo é gasto em pedidos de atenção, o aluno acha que não tem nada a ver com isso. Eu lembro do meu tempo de aluna, de como me soavam mimizentos os professores que reclamavam de nós – eles que deveriam saber nos controlar, eles que deveriam entender as sutilezas que faziam com que alguns tivessem autoridade e outros não, era normal agir de forma que fosse conveniente apenas para nós.

Aquele mesmo aluno barbado de quase dois metros de altura, que se queixou que tinha problema de saúde e a mãe dele viria fazer um escândalo se eu não o deixasse ir no banheiro i.me.di.a.ta.men.te, dependendo da situação da sua família, naquele momento poderia estar num emprego. E, estando num emprego, ia ter que segurar o xixi e o tom de voz, porque por muito menos o chefe o mandaria embora sem hesitar. O contraste entre uma situação e outra é muito grande e, na fase da vida que ele estava, ainda não sabemos o quão frágil somos, o quanto uma queda de status pode ser repentina. Num dia se é aluno e tudo é permitido, no outro o mundo do trabalho se dá ao direito de legislar sobre coisas ínfimas e punir à vontade. Um tom de voz, um superior que não vá com a sua cara, uma mudança na economia e a pessoa pode se ver na rua, sem condições de comprar comida. Por isso que ninguém quer ser adulto, por isso que todos querem ser cliente! Adulto engole sapos, cliente tem sempre razão. Ao que é servido, porque está pagando, damos o direito a tudo; o ônus do equilíbrio, maturidade, comprometimento e auto-controle fica inteiramente nas mãos de quem serve.

Quem sabe se o conhecimento fosse algo construído nas escolas, também aprenderíamos a ter relações mais maduras, que não alternássemos os papéis de oprimido x opressor o tempo todo. No Educação como prática da liberdade, Paulo Freire relaciona a maneira como fomos colonizados à verticalização extrema das nossas relações, onde poucos tudo possuem e tudo podem sobre uma maioria ignorante. Nós sabemos que algumas profissões (por exemplo, o telemarketing) são verdadeiros moedores de carne, elas adoecem a todos, não existe vocação ou temperamento que resista a tantos maus tratos. Outras, como ser um professor, não deveria ser, mas muitas vezes acaba se tornando também um moedor de carne, porque o que o professor menos faz é se preocupar com o conteúdo das aulas, de tantos problemas que ele enfrenta. A única compensação que surge quando se fala de tais profissões é um possível aumento de salário, confirmando que realmente se crê que qualquer coisa está à venda, que tudo pode ser compensado financeiramente. O mundo que Paulo Freire me faz vislumbrar e querer chegar lá é um onde não há extremos entre tudo pode x nada pode; quando as pessoas não se eximem das suas responsabilidades e são capazes de enxergar o outro, talvez não seja mais necessário ou aceitável pensar que alguns precisam adoecer ao servir, tudo para garantir sua própria subsistência.

O relaxante aroma do fracasso

Eu estava no caixa rápido de um supermercado caro onde vou poucas vezes para fazer uma compra fresca: pães especiais. Era um horário de pouco movimento e não tinha fila nas cestinhas. Haviam duas caixas sentadas lado a lado, sem fazer nada, e elas continuaram a conversa enquanto uma delas me atendeu.

-Estava pensando em fazer faculdade, mas acho que não vou fazer. Tanto empenho pra depois não conseguir trabalho do mesmo jeito. Conheço um monte de gente que fez faculdade e estão todos desempregados.

-Meu marido é um desses. Ele é formado em biologia.

Eu pensei várias coisas. Um lado meu dizia que ela tinha razão, que faculdade realmente não garantia emprego, veja o meu caso. Mas também ouvi a voz da minha mãe que sempre nos dizia que era importante fazer uma faculdade, qualquer uma, nem que fosse apenas para ter um curso superior, que ter um diploma era um ganho – colocação com que tendo a concordar, acho que conhecimento sempre vale a pena. Lembrei também da minha experiência mais do que recente no pior tipo de emprego do mundo, e pensei no quanto é duro querer que alguém abra mão do pouco de tempo e energia que tem, durante anos, para talvez ajudar no futuro. E, na realidade, quando você está dentro de uma empresa ninguém tem a menor pressa em te promover porque você está qualificado demais (também o meu caso no pior emprego do mundo). Mas o que encerrou minha discussão interna foi lembrar de uma cena que assisti há alguns anos.

Por um acidente no destino, num papel que eu chamo de “pobre de estimação”, eu estava numa mesa enorme de uma casa enorme. Eu entrei em contato com poucas pessoas realmente ricas na minha vida, mas quando aconteceu foi tão marcante que seria impossível não notar. A ostentação e a mesquinharia que tanta gente que se diz rica tem apenas atesta sua falta de origem; pessoas ricas há gerações podem se dar ao luxo de serem idealistas, dedicarem sua energia a projetos humanitários da ONU, ao mesmo tempo que são completamente insensíveis ao não saberem como soa falar que vai pagar oitenta mil reais num vestido “simplesinho”. Num dado momento do café que nos reuniu naquela mesa digna de novela, a pessoa rica virou para uma das convidadas e falou:

-Tem aquela sua neta que está fazendo direito, não é? Ela está na área de família?

-Não, ela foi pra área criminal, está super entusiasmada, trabalhando bastante…

-Ah, que pena. Estamos precisando de uma advogada lá no escritório, queria chamar a tua neta.

Eu quase cuspi o que estava comendo. “Então é assim que gente rica arranja emprego”, repeti furiosamente, como um mantra, durante dias. Numa conversa em um café, só por ser neta da Fulana, a menina ia arranjar emprego num dos escritórios de advocacia mais importantes da cidade. Não sei nem se a pessoa conhece a tal neta pessoalmente. Enquanto isso, nós, os comuns, perdemos tempo enviando currículos, vestimos roupas especiais para entrevistas, ficamos de olho nos classificados, estudamos o que dizer e como nos comportar! Aí tudo tem que ser perfeito, porque senão… “Não passei na entrevista porque não sabia harmonizar as cores com meu tipo de pele”, “não consegui porque demonstrei nervosismo na maneira de cruzar as mãos”, “foram aqueles minutos que atrasei porque fui no banheiro que me impediram de conseguir o emprego dos meus sonhos”.

As meninas que estavam conversando no caixa tinham razão, era bastante provável que ela não conseguisse emprego nenhum com aquele diploma. Não apenas porque estavam num caixa de supermercado, isso era mais um agravante – muita gente sai da faculdade com um papel, sem parentes na área, sem ter como investir mais ainda em pós-graduação, num aluguel de sala ou um emprego que na prática não sustenta, mas é aonde se deve estar por “contatos”. A desigualdade no ponto de partida é a diferença entre fazer um ângulo de 90º ou desenhar no olho um que parece ter essa medida, mas tem 89º. Lá na frente, não vai ter mais nada a ver com um ângulo reto. Muitos anos depois, quando já estamos velhos e entendemos mais o funcionamento do mundo, dá vontade de encontrar o Eu do Passado e dizer: “relaxa, você nunca teve a menor chance”.

“Relaxa”? É estranho, mas não encontro verbo melhor. Porque enquanto a pessoa não percebe que esse é um jogo de cartas marcadas, com vencedores pré-determinados, ela se maltrata. Ela vai se sentir um fracasso, achando que nunca fez o suficiente. Ao não passar no concurso super disputado, vai lamentar sua falta de inteligência ou sentir culpa por não ter estudado horas o suficiente, enquanto os filhos de alguns receberam o gabarito a domicilio. Vai se sentir obtusa porque não se tornou fluente num segundo idioma com aulas pré-gravadas – quem sabe um mochilão na Europa durante meses não teria ajudado, caso papai e mamãe tivessem dinheiro pra tanto? Posso listar esses contrastes sem parar. Existe sim, em todos as áreas, a tal da UMA grande oportunidade, geralmente uma Bolsa, disputada por pessoas de todo país; é verdade, a tal Bolsa pode fazer a pessoa alcançar o que mais ninguém da sua origem sequer sonhou. A existência dessa chance única salva poucos indivíduos, mas seu impacto no imaginário coletivo é enorme: através dela, o sistema alimenta a crença de que a ascensão é perfeitamente possível, basta fazer por merecer. Como se diz em sociologia, é a exceção que confirma a regra. Mas enquanto de um lado se cobra nada menos do que a genialidade, do outro lado basta que o herdeiro faça o básico. Quem nasceu bem e faz apenas o que lhe cabe – escolhe algo e se dedica -, vai longe. Aos outros, por causa daquele desvio de 1º lá no início, as oportunidades se tornam cada vez mais limitadas e mal pagas.

Amar a nossa mesma falta de amor

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

Eu lembro minhas colegas de faculdade, quando começavam a namorar, perguntarem umas para as outras: “então, ele é Ele?”Ninguém precisava de manual para entender o que queria dizer o segundo ele: A Pessoa, um encaixe perfeito de um ser humano no outro, e que só com ela conseguiremos ficar felizes para sempre. Mesmo quem se considera muito racional acaba agindo com base nessa ideia. Aqui, do lado “mulheres ocidentais heterossexuais”, isso parece ser uma busca que nunca é totalmente colocada de lado. Se enquanto adolescentes esse Ele podia encarnar todo tipo de qualidades, quando mais velhas e já calejadas por outros relacionamentos, até podemos baixar bastante a lista de qualidades necessárias, mas em ambos a possibilidade sempre parece um sonho.

Vi um desses memes postado em um historys no Instagram e quase respondi – não o fiz porque me sentiria uma idiota respondendo à sério não apenas um meme, mas um meme num history. Nele dizia algo como: “neste momento, o amor da sua vida está sendo muito bem cuidado pela pessoa errada”. Na minha primeira leitura, aquilo me doeu. Já pensei que em algum lugar, enquanto eu estou sozinha com uma cadela idosa, certamente o homem dos meus sonhos estava com uma bela morena no colo, viajando, fazendo sexo, com os amigos, sendo muito feliz. Lembro da Cantiga da Bailarina, de Chico e Edu Lobo: “Sujo atrás da orelha/ Bigode de groselha/ Calcinha um pouco velha/ Ela (a bailarina) não tem“. Todos sabemos que as pessoas parecem muito mais felizes nas redes sociais do que na realidade, e ao mesmo tempo estamos sempre caindo no truque, sempre achando que todos levam vidas emocionantes menos nós. Talvez eu até tivesse continuado com ciúmes do homem que ainda não conheço, mas me chamou atenção ter sido um homem quem postou aquilo. “Não é verdade que o amor da sua vida está se divertindo com alguém. Ela está levando um monte de match no Tinder, tentando filtrar quem vale a pena por detrás de um monte de pedidos de nudes e se sentindo mal porque ela nunca parece ser boa o suficiente para que algum homem queira mais do que um pouco de sexo”. Do lado de cá, os homens nunca parecem estar sozinhos ou desejando um amor. Do lado de cá, toda essa liberdade sexual associada a nenhuma necessidade de intimidade parece ter realizado os homens de tal forma que eles não querem mais nada. Não conheço a obra de Bauman a fundo para saber em detalhes o que ele disse, mas acho importante salientar que a liquidez das relações da qual ele tanto fala têm diferenças de gênero – ao masculino o aspecto da variedade (com sua consequente dificuldade de escolha) me parece muito mais acentuado do que ao feminino.

Li uns artigos que falavam da proliferação de grupos de homens com ódio de mulheres; de acordo com eles, só os machos de queixo quadrado, boa genética e muito dinheiro obtém atenção feminina. Coincidentemente, a atenção que os dois grupos de homens – os alfa e os celibatários involuntários – gostariam de ter também é das mulheres favorecidas pela genética (ou pelas plásticas). Se é assim, a maioria das mulheres reclamam e os homens não-alfa também reclamam. Então os que estão se relacionando por aí são uma minoria bonita, enquanto os mortais comuns assistem de longe e invejam? Por que tanta frustração de dois lados que dizem buscar um ao outro?

Eu acho que a maior dor que pode existir para um ser humano, daquelas que fazemos todo tipo de coisas insensatas para não encarar, é aceitar que alguém que esteve com você, olhou nos seus olhos, soube da sua vida, quem sabe até tenha compartilhado da sua intimidade, e não liga a mínima. Não é certo, não é o que entendemos como ser “humano”. Quando começamos a frequentar demais os mesmo lugares, e somos atendidos pelas mesmas pessoas, o normal é começarmos a saber seus nomes e nos importar, mesmo que de maneira leve. Aquela pessoa não é mais uma estatística, não é mais uma Maria, é alguém cujo modo de andar, a fisionomia, o tom de voz e os trejeitos nos são familiares. Dentro de nós, somos os protagonistas sempre, então é inaceitável quando alguém nos reduz a um nada. Que nos ame, que nos odeie, mas que não diga que nem sequer existimos.

Nós sabemos que as estatísticas nos explicam. Se o Facebook assumiu que sabe com facilidade se vamos começar a namorar, imagine o resto. Eu acho que existe uma antipatia natural pela Sociologia ao se saber que ela se propõe a nos explicar pelo coletivo – e devo dizer que, mesmo para quem é apaixonado por ela, às vezes a gente se sente meio idiota de ver que escolhas que nos pareceram tão íntimas quando tomadas são apenas reflexo do grupo e época em que vivemos. Mas o sonho de todos nós é que, ao invés de perceber o grupo, que percebam o que há de único, porque todos somos também uma combinação tão diversa de fatores, cicatrizes, gostos, geografias e oportunidades. Só a velocidade e variedade que a tecnologia nos proporciona torna os encontros tantos e tão rápidos, que as pessoas se tornam um apanhado de imagens impossíveis de conhecer, então desumanizados e somos desumanizados o tempo todo. Gosto muito de uma citação de Amós Oz que diz, em O Judeu e as Palavras, que cada pessoa é uma forma da Deus vivenciar algo que Ele nunca vivenciou antes. Alguns dizem que toda carência humana por amor é uma saudades de um Amor Ilimitado que nos vê como únicos. O ilimitado sempre foi impossível, agora a luta é pelo menos obter o único.

Um bruto sucesso em Quixeramobim

Eu tenho uma relação com a música “Até o fim“, do Chico Buarque, que foi mudando ao longo dos anos. Ouvi pela primeira vez em casa, bem criança, e achei divertida. Gostei da ironia, gostei dos IIs, não me tocou mais do que isso. Na adolescência, ela passou a ser uma lembrança muito dolorida: num dos raros momentos que meu irmão mais velho se abriu comigo, ele disse que se identificava muito com a música; meu irmão sentia que ele “estava predestinado a ser errado assim”. Depois eu cresci e foi a minha estrada que entortou enquanto a dele ficava reta, o que fez com que esse trecho perdesse pra mim o ar trágico que me parecia ter antes. Hoje eu sei que estradas entortam e para muitos é justamente essa a beleza estar vivo. Sobre ser sucesso em Quixeramobim, que me parecia motivo de riso, hoje me parece ótimo. Tentei ser boa em tantas coisas, talvez em mais coisas do que a média: já tentei ser psicóloga, escultora, socióloga, professora, bailarina, empresária, do lar, escritora, funcionária… e em nenhuma dessas atividades tive um bruto sucesso. Fazer sucesso em Quixeramobim, numa cidade inteira? Seria meu sonho, nunca cheguei nem perto de fazer sucesso nem num bairro.

Eu recebo uma newsletter de uma linha de astrologia védica bem tradicional, daquelas que tem sede na Índia, gurus, livros sagrados e todo aquele imaginário que temos a respeito de cultura indiana. Para começar, todos os cursos de astrologia costumam pedir os dados de nascimento, embora eu acredite que por aqui ninguém tenha coragem de recusar um aluno por causa do mapa. Existem alguns aspectos específicos que indicam que a pessoa seria um bom astrólogo, como ter ativada uma das casas que tratam de pesquisas em ciências ocultas e/ou um Mercúrio muito bom. Mas não pára por aí: de acordo com o e-mail que eu recebi, eles também verificam no mapa se o aluno estará apto a ser professor e transmitir o que aprendeu. E destes que possuem o aspecto que lhes permitem ser professores, ainda há o cálculo de quantos alunos ele pode ensinar. Era uma conta de multiplicação, que variava tanto que era possível ter uma centena de aluno ou apenas um.

Minha primeira reação foi achar tudo isso insano. Já não é muita gente que se dispõe a entrar numa escola de astrologia, menos ainda que tenha um mapa que indique que será bom astrólogo, aí você vai afunilando mais ainda em dizer que nem todos podem ensinar e aí quando o sujeito pode é só pra um? Assim a escola não vai para frente, nunca cresce! Então percebi que essa escola funciona sob outra lógica. Primeiro: a astrologia (no geral, mas a védica mais ainda) nunca foi pensada como um conhecimento popular e sim algo que se transmitia numa linhagem ou a indivíduos com características especiais. Depois: que nem todos vão sair de lá e ensinar, é fato. Nem mesmo de faculdades de pedagogia todos saem professores. E isso me faz chegar ao terceiro ponto, que é o que quero tratar aqui: a visão que temos das coisas, que tende a medir sucesso ou qualidade em termos numéricos. Nossos professores são pessoas que se dirigem a turmas com quarenta pessoas, várias turmas por ano e durante anos. Mas a essência do que é ser professor não está – ou não deveria – no número de pessoas e sim na transmissão do conhecimento. Se pensarmos assim, uma pessoa que tenha apenas um aluno durante a sua vida inteira, mas transmita a ele o que for necessário, também é professora.

Vivemos em cidades, temos meios de comunicação em massa, então o nosso pouca gente já é bastante em relação a épocas anteriores. Então uma doceira que faz muito sucesso na sua vizinhança e antes poderia ficar por isso mesmo, hoje pode ter uma conta no Instagram, credenciar-se no IFood e ter serviço de entrega, estimular os clientes postarem nas suas redes sociais, quem sabe até abrir franquias. Mas… será que precisa?

Ter que dizer isso e escolher um exemplo feminino me dói, porque as mulheres sempre foram convidadas a isso: ser boa apenas no âmbito doméstico. No inesquecível Um teto todo seu, Virginia Woolf, partindo do exemplo do mundo literário, fala do quanto as mulheres são convidadas ao trabalho por amor, à escrita por amor, ou seja, a não receber o devido reconhecimento do que elas fazem como um trabalho e, como tal, serem remuneradas. E o que é encarado como hobbie não permite o sustento e nem que se dê importância ao tempo que é dispendido. Persistir numa atividade que não lhe dá validação nem em termos de dinheiro ou reconhecimento, torna-a uma “perda de tempo”. A mulher que ao invés de cuidar da casa e dos filhos está escrevendo, está colocando o capricho acima do que é realmente seu dever. Ou: que ela possa escrever, apesar de ter casa e filhos para cuidar, é um luxo, uma concessão. Então Virginia Woolf conclui que é muito importante sim remunerar as mulheres, tirar a literatura ou o que quer que elas façam do âmbito de “por amor” e validar da mesma forma como validaríamos se fosse feito por um homem.

(Voltando aos dias atuais de precarização do trabalho, não estamos todos sendo convidados a trabalhar “por amor”? Primeiro a pessoa oferece seu trabalho de graça na internet, para ter visibilidade, e lááááááá no futuro ter clientes pagantes. Ao invés de oferecer oportunidade de reconhecimento às mulheres, estamos tornando todos “mulheres”?)

Eu lembro da minha dentista (e estou quase querendo fingir que é um dentista) que uma vez mudou de endereço e eu era atendida num casa enorme, de esquina. Ela havia montando aquela clínica, onde tinha um grande escritório, sua própria sala e mais duas ou três para alugar, laboratório, arquivo, dois banheiros, além da recepção e um subsolo que só soube mais tarde que existia. Eu reparava que a cada dia que eu chegava havia um sistema novo de segurança e imaginava que a casa chamava muita atenção. Meses depois vi pelas redes sociais dela que agora ela atenderia num novo endereço, e fui encontrá-la numa clínica de outro dentista, alugando uma sala. Aquela clínica de esquina deu tantos problemas que eu não saberia listar, muito além da segurança que eu havia reparado. A manutenção da casa era dispendiosa e mesmo o aluguel das salas estava dando tanta dor de cabeça que por fim ela mantinha aquelas salas paradas. Depois de chegar no que parecia o auge – ter uma linda clínica -, minha dentista resolveu dar muitos passos atrás e ter a tranquilidade de ter que lidar apenas com os pacientes e seus dentes, e não mais ser empresária.

Eu comecei a cortar o meu cabelo curto aos quinze anos e lembro do quanto eu fiquei triste uma vez que li na Capricho que apenas 18% dos meninos achavam bonito meninas de cabelo curto. Aquilo acabou comigo – isso queria dizer que 82% dos meninos me achariam feia!? Uma vez me disseram uma definição de estatística que era assim: “estatística é como biquíni – mostra muito, mas esconde o essencial”. O que realmente buscamos? Eu sei que números buscam números e empresas buscam um crescimento que nunca pára e é totalmente fora da realidade. As empresas medem o tempo médio de atendimento e vendas, e quando o funcionário tem um ótimo dia e consegue atender mais rápido ou vender mais, acaba sendo “premiado” com uma meta ainda maior, ou seja, precisa transformar o excepcional em regra. O que se chama de estagnação, às vezes nada mais é do que o tempo de recuperação dos recursos – do psiquismo do ser humano à própria natureza, nada acontece de um dia para o outro. Uma música sem os silêncios é apenas um monte de barulho, até mesmo para se manter vivo é preciso alternar atividade e pausa. A noção de crescer sem parar, conquistar tudo, atingir todos os públicos, vencer todas as batalhas e provar de todos os sabores me remete aos Imortais descritos por Borges, em Aleph.

A morte (ou a sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por se dissipar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem valor do irrecuperável e do casual. Entre os Imortais, por sua vez, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que esteja como que perdida entre incansáveis espelhos. Nada pode acontecer uma última vez, nada é preciosamente precário. (p.21)

Tal como o protagonista do conto dos Imortais, achamos que estamos buscando o melhor, enquanto na verdade estamos sendo apenas insensatos. A vida dos massivamente famosos, ricos e/ou belos nunca é boa, isso é unanime em todas as biografias. Será que, enquanto pessoas e sociedade, estamos condenados a refazer esse caminho continuamente, de buscar o crescimento infinito e só parar quando estamos esgotados?

A berinjela da não-violência

De abelhas a ratos, parece que para outros organismos na natureza o trabalho desinteressado, em prol do coletivo, parece muito fácil. Das abelhas todos sabemos, então deixa eu falar sobre os ratos. Depois que eu li o Todos os ratos do mundo, de Francesco Santoianni, passei a ter um medo respeitoso por eles. Não é à toa que no Guia do Mochileiro das Galáxias eles aparecem como a espécie mais inteligente da Terra. É muito difícil desenvolver veneno contra ratos, e o olfato apurado é apenas um dos motivos. Além de serem inodoros o suficiente, os venenos para ratos precisam ter uma eficácia atrasada. Quando encontram um alimento que lhes parece suspeito, apenas um deles come, e ele é posto em observação durante alguns dias, para só então decidirem que é seguro para o resto do bando comer. O livro também conta a história de um navio que estava infestado de ratos. A tripulação foi retirada, todas as saídas foram lacradas e pequenos tubos com veneno foram introduzidos na tubulação do navio durante vários dias. Não adiantou -ratos maiores se introduziram nos tubos e os entupiram. Quando colocados em cativeiro, sempre no mesmo espaço e com a mesma quantidade de comida, em pouco tempo os ratos param de se reproduzir. Eles parecem sempre ser capazes de tomar as melhores decisões em prol do bando, sacrificando o menor número de membros para isso.

Pensei nesse exemplo porque, caso vocês não saibam, eu me tornei budista e colaboro semanalmente com o instagram da minha sanga. O texto que acabei de escrever fala sobre Ahimsa, o princípio da não-violência. Tentar não o fazer mal é um princípio que parece muito simples, uma abdicação de comportamentos maus: eu poderia me vingar e não vou, eu poderia jogar na cara tal atitude e não vou, eu poderia aproveitar a situação e fazer a pessoa se sentir mal e não vou. Depois, vamos levando o princípio adiante e ele se torna cada vez mais complicado: é válido que eu coma carne, já que com isso estou fazendo mal aos animais? Eu tenho moeda na bolsa e o mendigo me pede, é válido que eu minta e não dê? E se levamos mais a sério e tentamos ser bons e não violentos a todo momento, o problema volta a nós mesmos, como a cobra que morde o próprio rabo. Ouvi a história de uma outra praticante que disse que veio uma criança na rua lhe vender um saco de laranjas. Ela não queria comprar laranjas, mas aquela criança apareceu na sua frente, pequena demais para estar longe da escola e vendendo na rua, então ela ficou penalizada e quis ajudar. Quando perguntou quanto custava o saco de laranjas, e a criança lhe cobrou uns trinta reais pelo saco, extremamente caro, e a moça pagou. Depois, ela voltou para casa com aquelas frutas que nem queria e se sentiu trouxa. Sem dúvida, por detrás daquela criança havia um adulto que sabe o efeito que uma criança pequena vendendo frutas nos causa, e por detrás daquele preço havia a esperteza de quem sabia que era muito mais um auxílio do que uma compra. O principio de não violência e a vontade de fazer o bem nos leva a essas perguntas do que é o bem, e como fazer o bem aos seres. Mas, quando falamos de favorecer os seres, também estamos falando do próprio praticante. Naquele gesto de pagar caro pelas frutas, a moça não fez bem a si mesma. Mas ela fez um bem à criança e aos seus pais – ou à pessoa esperta que colocou a criança naquela situação. No final das contas, foi um gesto bom?

Por isso meu pensamento em abelhas e ratos, porque tenho a impressão que todo gesto bom só faz sentido se pensado junto com o social. Não temos, por natureza, acesso ao que o outro pensa, muito menos ao que sente. Para estar consciente do sofrimento do outro, precisamos buscar, ver, fazer um esforço para imaginar uma troca de lugar. O Covid tem nos mostrado o quanto é difícil agir em prol do social – enquanto uns sofrem entubados, os saudáveis sentem que usar uma máscara que deixa a sua respiração menos livre é sacrifício demais. Agora a doença está espalhada em todos os grupos, mas no início o Covid foi identificado como doença de velhos ou pessoas de saúde fragilizada – então os jovens e saudáveis acharam demais ficar em casa, deixar de ir a festas, enfim, se privarem de “viver” em prol de pessoas frágeis que eles não conhecem e não se importam. Mesmo àqueles que se cuidaram muito no início agora se mostram mais descuidados – o quanto e durante quanto tempo o indivíduo é capaz de abrir mão do seu prazer para melhorar a vida do coletivo? Quantas pessoas não estão alegando a manutenção da própria sanidade como justificativa para o seu comportamento totalmente egoísta? O quanto de sacrifício é justo pedir?

Quando se lê sobre o sistema de castas indiano, parece muito lógico e coerente. O sistema de castas, de acordo com a tradição, divide as pessoas conforme a sua vocação: aqueles que tem um temperamento voltado para a conquista e comando, são Kshatryias, a classe guerreira; os de temperamento religioso e voltados ao estudos, Bramanes; os que gostam de lidar com comércio, Vaishyas; por fim, os que fazem trabalhos pesados, Shudras. Cada um trabalharia naquilo que faz de melhor e receberia o que combina com seu temperamento: quem gosta de guerrear, lições de luta e administração; quem tem um temperamento voltado para os estudos, não ter que lidar com questões materiais, preocupar-se apenas na aquisição de conhecimento; aos que gostam de lidar com comércio, apenas lições que os ajudem a comercializar ainda mais; os de trabalho pesado, a proteção dos seus líderes e o trabalho braçal mecânico e sem preocupações. Um dos grandes problemas dessa questão é decidir quem tem vocação para o quê. Cada um tende a olhar para si mesmo de maneira a se favorecer. Quantas vezes na vida você conheceu alguém e disse: “Fulano é muito melhor do que eu, mais talentoso e mais capacitado, vou abrir mão do que eu tenho e entregar a ele, porque ele merece mais e fará melhor do que eu”? Acredito que nunca. Vi um vídeo curto da Cardi B cortando uma berinjela que exemplifica bem o que eu quero dizer. Ela tem unhas enormes, mal consegue segurar a berinjela, diz que é muito desajeitada em serviços domésticos, e no fim se emociona e declarar: “É por isso que Deus me abençoou e me tornou rica e famosa. Ele sabe que eu não sei ser dona de casa. Eu não nasci para ficar na cozinha. Eu nasci para contratar chefs.”. Somos todos assim, todos nos vemos como nobres que não nasceram para passar dificuldades, os Shutras são sempre os outros.

O trabalho pesado dos Shudras jamais seria uma opção, em qualquer tempo? Se a diferença de remuneração entre um advogado e um pintor não fosse tão grande, todos continuariam sonhando em ser advogados? Escolho estes dois exemplos porque um advogado uma vez me disse que adorava quando o chamavam para uma reforma, que ele adorava trabalhos exaustivos, pintar paredes e montar móveis. Já o trabalho dele, bem, ele fez concurso e pagava as contas… Já comentei num texto anterior: nossa sociedade paga mal os serviços mais essenciais, os mais exaustivos, os mais sem significado, os que existem apenas para fazer a roda continuar funcionando. Somos empurrados a estudar mais, porque com mais diplomas o mercado nos paga mais, mas não necessariamente gostamos de estudar ou nos interessamos pelo assunto; somos convidados a amar a nossa empresa, a “vestir a camisa”, porque se você não demonstrar por ela mais interesse do que o básico no horário do expediente, outra pessoa o fará, e ela será favorecida nas promoções, ou seja, vai ter um salário melhor e uma vida mais confortável. Até sobre promoções: mesmo que nunca receba nenhuma, você não pode ser um funcionário que diga que só quer ganhar o básico e levar uma vida boa, porque isso demonstra falta de interesse. E mesmo que não pensemos só na questão do salário, existe também o valor social; de um lado, algumas profissões são pura privação, enquanto em outras o sujeito têm valor, respeito e dinheiro. A verdade é que não temos a menor noção de qual seria nossa vocação sem tamanha pressão, porque somos forçados à ambição em busca de dignidade.

No meio a tanta competição e mais-repressão, pensar no bem comum é distante e confuso demais. Fica o gesto isolado de pagar caro por laranjas, de economizar a água do banho enquanto o agronegócio gasta muito mais do que todos os banhos curtos de uma vida inteira, a vontade isolada de quem tenta fazer o seu melhor no dia a dia. O triste de ser pequeno e insignificante é que não sentimos que nossos esforços consigam melhorar o mundo, mas sem dúvida não fazer o que nos cabe o torna pior. Se engenheiro tivesse feito um bom trabalho, a fiscalização tivesse alertado, se o alerta tivesse sido levado adiante, se o departamento tivesse liberado a verba… será que teríamos barragens que estouram e inundam cidades inteiras com terra? Prisões injustas, encanamentos que estouram, pessoas que não recebem atendimento, até no atraso porque o ônibus quebrou – sempre estamos em algum lugar da engrenagem, nossas ações têm impactos que vão além de nós mesmos.

O silêncio é de ouro ou quem cala consente?

Uma das vezes que eu viralizei no twitter foi quando comentei que uma caixa da padaria aonde eu vou teve que ouvir, em pleno natal, um cliente lhe dizer que ele estava comprando e ela trabalhando porque ele havia estudado e ela tinha sido má aluna – havia o detalhe, que ele ignorava, de que ela saía dali e fazia supletivo, porque não tinha tido oportunidade de estudar quando criança. Essa moça não trabalha mais lá, foi mais uma que sumiu na vida e não sei o que aconteceu, porque seria demais considerar que eu sou uma amiga, eu sou apenas uma cliente boazinha. Há outras, eu sempre acabo conversando com todas as moças do caixa; uma delas, com quem converso desde que estava grávida, tem me preocupado cada vez mais. Logo que a vi, pela sua maneira de falar e todo seu gestual, tive a sensação de estar diante de uma pessoa muito doce. Enquanto estava grávida não passava bem e me dizia ter que continuar por ali porque senão não pegaria bem, que chegou a ouvir indiretas de ter engravidado para não trabalhar. Não a vi durante os longos meses da pandemia, e agora que nossos horários coincidiram de novo, tudo parece estar ainda pior. Ela mora tão longe que acorda todos os dias às 4:30 para conseguir chegar no primeiro horário e chega em casa por volta das 18h. Entre os cuidados com o filho e a casa, nunca consegue dormir antes das 24h. Com os olhos fundos como não tinha antes, ela me contou que há poucos dias uma mulher ficou muito impaciente porque atrasaram a abertura da porta por quatro minutos. A atitude da mulher estragou o dia da moça, que atendeu o telefone chorando quando o marido ligou. Ele lhe disse que aquela reação estava sendo desproporcional. “Faz tempo que tento marcar com psiquiatra, não estou conseguindo horário. Eu choro por qualquer coisa, preciso de um remédio contra ansiedade”. Digo que se pelo menos ela conseguisse dormir mais, já ajudaria – e então fui embora, porque vieram outros clientes.

Esta história renderia muitas discussões, poderíamos falar de maternidade, de saúde mental, de trabalho… mas o que eu gostaria de falar é da minha frustração de me sentir sempre dentro da música Sinal Fechado, do Paulinho da Viola, quando ouço essas histórias. Ouvi-las, oferecer um olhar de solidariedade e sair do caixa com meus produtos me parece tão cruel como alguém que ouve um se afogando e ignora. Te ouvi, achei pena, agora voltarei para a minha vida confortável e você voltará a não existir. Só que “minha vida confortável” também não é lá muito no topo da piramide, também sou dessas cujas finanças do mês ficam comprometidas com o preço do botijão de gás. Para algumas pessoas que convivem comigo, eu que sou a moça na situação difícil e elas me ouvem com pena, sem saber o que dizer. Leio reportagens como as que dizem que o Keanu Reeves ajuda desconhecidos por aí e penso que faria o mesmo se tivesse tanto dinheiro quanto ele. Mas a minha sensação, a sensação das minhas amigas e a sensação de você que me lê deve ser mais ou menos a mesma: eu não consigo te ajudar, também estou lutando para manter a cabeça para fora d´água.

Eu achei triste quando soube – extra-oficialmente, claro – que quando o pretendente a uma vaga no mestrado dizia que precisaria da bolsa para estudar, aquilo contava como um ponto negativo. Meu primeiro pensamento foi: se vamos selecionar quem não precisa porque já ganha bem ou tem uma boa base, jamais daremos chance de ascensão àqueles que precisam – ideia que vai de encontro àquilo que consideramos como a missão da educação. Mas, de forma bem mais concreta, o problema era assim: as bolsas eram poucas, levavam meses para serem liberadas, e ainda por cima atrasavam. Isso sem falar que se exige dedicação exclusiva de aluno bolsista. O que fazer se esse aluno com a bolsa atrasada começar a interpelar seu orientador ou o coordenador da pós-graduação (cargo que todos os professores parecem detestar assumir) expondo o quanto é difícil pra ele ficar comparecendo em reunião de grupo de estudo ou uma discussão qualquer com a conta de luz atrasada ou sem ter como atender seu filho recém-nascido. Ninguém poderia ajudar, então queriam evitar de ter de passar por isso.

Quem sabe se houvesse a garantia que esse aluno, mesmo sem dinheiro para o ônibus e para o filho, faria todas as suas atividades como se não houvesse nada de errado com a sua vida financeira. Os professores olhariam para ele sabendo que a bolsa estava atrasada e que isso certamente criava dificuldades, mas poderia continuar cobrando o que precisavam cobrar sem que isso estragasse o seu dia com queixas. Todos nós já fomos essas pessoas – mantendo a dignidade por fora enquanto nos sentimos destruídos por dentro. Quando a gente ouve uma queixa sem fazer parte do problema temos vontade de pedir por quem está sendo prejudicado. Às vezes a pessoa pode não estar sendo particularmente prejudicada, apenas não consegue suportar a pressão. Mas, para quem está dentro da situação, o sensível e o queixoso são apenas um fardo. Para fazer com que o sensível não se sentisse mal, todo trabalho estressante teria que ser espalhado entre as outras pessoas, ou seja, o queixoso/sensível tornaria mais pesada a vida do grupo. E queixas não são uma régua justa para medir sofrimento psíquico, pode ser pura falta de maturidade ou até mesmo noção. Então acabamos preferindo isto: se você não está aguentando sua rotina e chora a todo instante, tome um ansiolítico. Não podemos fazer nada a respeito da sua falta de tempo ou de saúde porque mora longe do trabalho.

O tal “lugar de fala” é incômodo porque subverte o que é esperado. Existem coisas que é adequado dizer e coisas que nunca devem ser ditas em público. Quanto ganha a pessoa que trabalha logo acima de você? Talvez o único modo de saber seja assumir esse cargo no futuro e, uma vez ocupando-o, você também guardará segredo. Li uma vez um artigo (não lembro onde, lamento) que dizia que organizamos nossa sociedade de maneira a que, quanto mais essencial a função no nosso dia a dia, pior a remuneração. O artigo exemplificava dizendo que se o pessoal que recolhe o lixo da minha rua não aparecer uma vez, me fará falta em poucas horas. Já se o CEO do banco ficar uma semana de folga, eu nem fico sabendo. Gostamos de dizer que cargos hierarquicamente inferiores ganham mal porque exigem pouco em termos de inteligência ou responsabilidade, mas basta olhar para a questão com um pouco mais de sinceridade para perceber que não é verdade. O motivo real dos cargos mais baixos ganharem menos provavelmente passa pelo fato de nunca serem essas pessoas que decidem a distribuição de dinheiro. Quem pode garante o melhor pra si, simples.

Quando nada é dito, ou é dito de uma maneira muito privativa, o problema permanece muito particular. Nós nos queixamos aos nossos cônjuges, fechados no consultório do psiquiatra, com o cliente que passo no nosso caixa, e acaba aí. A ironia é que a popularização da internet tornou possível tornar nossa privacidade algo público e, mesmo assim, continuamos que cada indivíduo é auto-determinado, que o “sucesso” é reflexo do seu “esforço” e etc. Continuamos sendo apenas indivíduos com problemas semelhantes, milhares de posts e twittes falando de dietas frustradas, solidões e segundas-feiras, mas é tudo coincidência. Já não buscamos nos outros soluções coletivas, não nos parece nem que seja possível. A esfera da decisões que buscam impactar de maneira favorável a vida de muitos deveria ser a política, mas o comum é ouvir: “eu nunca precisei de nada com política na minha vida”. Não se faz mais a ligação do problema cotidiano com a política; a política passou a significar votar de vez em quando, ler sobre escândalos de corrupção e se sentir impotente. À pessoa comum, cada vez mais pressionada, tem restado apenas a adaptação e o silêncio. Tenho a impressão que o único lugar aonde é possível ter o problema acolhido e uma comunidade que busca de soluções é nas igrejas – não é à toa que elas estejam tão populares e metidas na política.

All the lonely people/ where do there are come from?

Hoje é muito fácil ver e fazer vídeos, quando eu era criança a professora precisava solicitar o vídeo cassete à direção e íamos para uma sala especial, aonde traziam a TV, o vídeo e deixavam tudo instalando para nós. Por isso, na minha época era importante e acho que, quando mais recuamos no tempo, mais importante ainda ela era: a taxidermia. Para quem não sabe, a taxidermia era a habilidade de empalhar corpos, geralmente de animais selvagens. Íamos aos museus e tinha lobo guará, raposa de não sei onde, todos em posturas que imitavam como eles eram em vida. Eu vi em vários programas americanos que algumas pessoas empalhavam seus animais de estimação. Entrevistava o Fulano na sua sala de estar, cheia daquelas cabeças de caças, e também estava no canto o Woolf, companheiro canino que o ajudou em tudo aquilo. A lembrança me veio à mente quando a minha cadela Dúnia ficou doente e pensei que ela morreria, aí me perguntei se eu seria consolada se pudesse olhar para ela todos os dias, sem jamais perder sua presença física. A resposta é não, mas confesso que pela primeira vez percebi que não é totalmente loucura empalhar um bicho de estimação. Algo que me relaxa como poucas coisas na vida é acariciar a Dúnia, enquanto me abaixo e respiro fundo para sentir o seu cheiro.

Tentei achar um vídeo muito engraçado que vi há alguns anos que era sobre o fato de quase todas mulheres solteiras que viviam sozinhas terem gatos. Como um bom vídeo de humor, ele invertia a lógica: as mulheres não teriam gatos por serem solteiras e sim continuavam solteiras porque seus gatos boicotavam os relacionamentos. O ápice do vídeo é quando um gato escreve na cabeceira da cama, com cocô: “quer casar comigo?” apenas para o pretendente e apaga a prova do crime antes que a dona saia do banheiro. Os nossos bichinhos de estimação nunca foram tantos e tão importantes, tanto em quantidades de lares como nos gastos, no nosso investimento emocional. Há também a piada que diz que, quando os filhos entram na adolescência, é importante adotar um bicho de estimação para que a pessoa vivencie alguém demonstrar felicidade na sua volta para casa. Nossos bichos viraram nossos filhos, muitas vezes a nossa fonte primária de amor – ou até mesmo a única. Somos pessoas solteiras trancadas em apartamentos pequenos com bichos de estimação, carentes de contato e incapazes de obter isso dos nossos vizinho, também trancados nos seus pequenos apartamentos e sem amor…

Eu lembro a primeira vez que a minha mãe me contou a tradução de Eleanor Rigby . Eu gostava muito dos cellos e adivinhava que era uma música triste. Quando ouvi a história, na típica simplicidade infantil, disse que era um problema muito fácil de resolver: bastava apresentar a Eleanor ao Father McKenzie. Minha mãe não soube me explicar o porquê, apenas disse que seria bom se fosse tão simples.

Uma das coisas mais tocantes que eu já li foi a primeira história que Oliver Sacks conta no seu livro Um Antropólogo em Marte. Ele encontra uma autista que trabalha tentando reduzir o sofrimento dos animais no abate. Ela conta o seu ponto de vista, como autista: quando criança, ela tinha a sensação de que as outras crianças conheciam uma linguagem secreta que ela não, que compartilhavam algum segredo, porque ela estava sempre por fora e não conseguia entender o que era. Eram os sinais não-verbais, tão claros às outras pessoas, e que seriam sempre difíceis para ela. Ela não se sentia parte da espécie a que deveria pertencer, ela era como uma antropóloga em meio a marcianos. A criança cresceu e virou cientista, estudou seu próprio diagnóstico, encontrou estratégias para lidar com ele e tinha uma vida organizada, era uma profissional bem sucedida. Conhecemos os autistas como pessoas que têm dificuldade de contato, inclusive a falta de contato visual é uma das características mais fáceis de detectar na infância. A dificuldade em aceitar o toque pode nos fazer pensar que eles não desejam e não sentem falta de nenhum tipo de toque, que são seres completamente independentes nas suas mentes. Pois bem: ela mostrou ao Dr. Sacks que havia inventado um aparelho que lhe transmitia a sensação de um abraço. Levou muito tempo para ela ajustar a maciez, o calor e a pressão certa, mas ela conseguiu fazer uma máquina que transmitia a sensação de conforto que ela tinha dificuldade de pedir e aceitar com outras pessoas. Quando a vida estava muito árida, ela se colocava dentro do seu abraço particular e se deixava ficar ali, até se sentir melhor. No final da história, Oliver Sacks lhe dá um abraço – e termina dizendo que achou que foi correspondido.

Gosto muito de imaginar essa cena porque sei que estavam ali duas pessoas com muito afeto e pouco abraço e que fizeram, naquele momento, uma grande superação das suas próprias barreiras para demonstrar seu afeto. O Dr. Oliver Sacks, que se tornou famoso quando seu livro Tempo de Despertar foi transformado em filme (1990), era uma pessoa extremamente tímida. Eu não tinha clareza disso até ler os livros de fases mais adiantadas da sua vida, como Tio Tugstênio e o Diários de Oaxaca. As suas obras me transmitiram um afeto e uma curiosidade tão grande sobre as pessoas que eu sempre o imaginei aberto, sorridente, abraçador. Quando vi que não era, que ele é muito mais a pessoa que passa uma excursão inteira sem mal interagir com seus colegas de viagem, entendi perfeitamente, porque também sou tímida. Às vezes nós, tímidos, podemos ter muito amor e curiosidade sobre os outros e só conseguir exprimir isso por escrito. Pessoalmente são muitas as barreiras, o medo da inadequação, a incapacidade de pedir; o tempo da escrita acaba nos dando muito mais liberdade de sermos francos.

Acho que todas as religiões deístas insistem na ideia do amor divino. Deus nos ama, por isso criou o mundo, por isso o mantém, e de vez em quando manda um filho ou encarna pessoalmente para demonstrar Seu amor por nós. Cantamos canções que ressaltam esse amor, vemos os sinais dele quando coisas boas nos acontecem e em momentos inspirados conseguimos sentir e acreditar que sim, há um Deus e ele sente muito amor por mim. Mas por mais que o fiel se esforce, ainda é muito abstrato. Talvez por isso, por mais que as mesmas escrituras que falam do amor divino alertem sobre falsos profetas ou que não vai haver outra encarnação divina tão cedo, as pessoas continuam querendo acreditar que o amor divino está perto. Elas acreditam que algumas pessoas representam Deus ou que estão muito próximas Dele, e isso lhes dá a autorização de serem lideres e pedirem favores. De grandes curandeiros de renome internacional até o pastor num vilarejo, periodicamente aparecem notícias de vítimas de gente inescrupulosa (ou apenas maluca) que age em nome de Deus. Semelhantes aos golpes de homens que pegam dinheiro de mulheres solteiras maduras, parece que nenhum alerta consegue evitar que esse mal aconteça, continuamente. Eu acho fácil entender o motivo: amor divino abstrato não é nada diante de ser amado por alguém de carne e osso. Ser amado como coletivo não é nada quando comparado a ser especial a alguém.

Eu sou muito mais do que isso!

Gosto muito como no hinduísmo o mito da Criação não acontece com tanta naturalidade como é na visão cristã. Na Bíblia lemos que Deus foi criando cada coisa de uma vez, via que era bom e deixava ficar, num crescente de complexidade e qualidade. Já Brahma criando não é tão simples. No Srimad Bhagavatan vemos que, ao nascer, ele nem sabe quem era e o que deveria fazer. Depois de descobrir que deveria criar o Universo para Vishnu, ele começa a trabalhar e são várias tentativas, muitas idas e vindas. As primeiras criaturas fantásticas que ele cria, os quatro Kumaras, de tão fantásticas e iluminadas, se recusam o ocupar o mundo material. Num raciocínio que nos parece muito lógico, eles se recusam a mergulhar na matéria e querem se manter no mundo espiritual. Brahma entende, mas ao mesmo tempo também se irrita, e nesse conflito interno franze as sobrancelhas enquanto tenta se controlar, e daquele ponto vermelho e furioso entre seus olhos surge um bebê que grita a plenos pulmões, e essa criatura furiosa recebe o nome de Rudra e ela sim aceita povoar o mundo. Rudra é dividido em macho e fêmea, Rudras e Rudranis, e saem por aí se reproduzindo e ocupando a matéria. Mas, como são criaturas muito furiosas e destrutivas, ao se reproduzem quase destroem toda criação, o que faz com que Brahma tenha que fazer outras coisas… Brahma cria e vai melhorando, usa o que tem, se esforça, erra, pede ajuda. Igualzinho ao processo criativo humano.

Poucos de nós temos trabalhos criativos e talvez todos nós quiséssemos. Uma vez fui num restaurante aqui, famoso por ter apresentações de dança do ventre durante o jantar. Apesar de termos feito reserva para muitas pessoas, o restaurante não guardou mesas o suficiente e foi fácil descobrir o porquê: era uma noite comum e o lugar estava lotado, mais parecia uma casa noturna do que um restaurante. Entre as mesas onde praticamente só haviam homens, as bailarinas passavam e ondulavam com pouca roupa; enquanto elas estavam por ali, não havia ninguém para olhar para nós, mulheres comuns… mas quando elas se retiravam, os homens passavam a nos olhar, desesperados para despejar em alguém toda aquele desejo que não tinha aonde se despejar. Eu tinha uma amiga que era do meio da dança de ventre e ela me disse que as bailarinas daquele restaurante se desentendiam muito entre si, que a disputa de egos era intensa. “São moças comuns, que no dia a dia trabalham como recepcionistas, atrás de um balcão de loja, empregos simples. Ali é o momento delas, onde elas brilham e são artistas, dançar ali é muito importante para elas”.

Eu já ouvi de músicos que o pior meio era o deles, cantores dizendo que eram os cantores, bailarinos dizerem que é o meio da dança, atores falarem que é o seu o pior meio, artistas plásticos… O que parece bem claro é que, de perto, o meio artístico é sempre difícil. Eu acho que um dos fatores é justamente aquilo que eu disse lá em cima, é algo que todos nós gostaríamos, o que faz com que existam muitos diletantes, muitos admiradores, muita gente que faz bem feito, o que exige daqueles que querem ganhar dinheiro com isso uma maestria acima de média, por isso a disputa. Lembro de um amigo físico que estava nos EUA, com uma bolsa de estudos, e que também era um dedicado pianista. Ele poderia ser até melhor pianista do que era físico, mas para receber uma bolsa nos EUA ele não precisou ser nenhum fenômeno, enquanto quantos concertistas clássicos famosos o mundo comporta? Digo o mesmo da área que me é muito cara, a escrita. Teoricamente, basta ser alfabetizado para entrar na disputa de ser um escritor. Mas vai afunilando: as pessoas que escrevem, a que escrevem histórias, as que conseguem que elas sejam publicadas, as que conseguem ser lidas, as que… Como eu disse neste post, o difícil não é juntar as palavras e sim passar a impressão de dizer algo que ninguém disse, embora tudo já tenha sido dito.

Minha opinião é que o que coloca tanta pimenta nas relações entre artistas e candidatos a artistas é o tal do Talento. Em matemática, um caminho pode ser muito elegante e parecer lógico, mas se leva a um resultado errado, ele está apenas errado. Para a maioria das coisas existe apenas uma questão a ser respondida: funciona? Se chamo alguém para vir arrumar algo na minha casa, de computador a encanamento, eu só quero que funcione. Para quase tudo há a maneira certa e nós sabemos mensurar se ela foi alcançada. Na arte, geralmente sim, mas não necessariamente. Sempre é possível alguém com menos esforço atingir um resultado muito bom porque há dentro dele um Quê, a Pitada que faz com que ele seja percebido. A vontade de ser essa pessoa, a impossibilidade de fabricar isso, a ameaça constante dos aspirantes que surgem todos os dias, o alto investimento egóico em se ver como artista – tudo isso coloca uma pressão maior no trabalho artístico do que nos mais rotineiros.

Preferir ser a bailarina sedutora a recepcionista da firma de engenharia não é apenas uma forma de se apresentar ao mundo, e sim uma forma de se ver e se amar. Quando Marx falava da exploração da classe trabalhadora, que vende sua força de trabalho para sobreviver, ele não fala apenas da miséria no sentido econômico. Quem se der ao trabalho de realmente ler os textos verá a indignação pelo trabalhador ser roubado no sentido do seu trabalho, de ser impedido de viver seu lado criativo; Marx constata que ser reduzido a uma parte desimportante duma engrenagem muito grande é desumanizador. Ao longo dos anos vi muitas pessoas se apresentarem como escritoras sem nem ao menos haverem publicado um livro, ou terem publicado apenas um de poemas, na adolescência, numa edição paga pelos pais. Vi muitos avatares no Facebook de pessoas no palco, vestidos com roupas flamencas, mesmo anos depois de terem abandonada as uma ou duas aulas que faziam. No Estigma: notas sobre a manipulação da personalidade deteriorada, de Erving Goffman, ele fala do processo natural de buscar para si uma identidade da qual gostamos mais. Não falo de cima da montanha quando cito os artistas dos avatares de Facebook: toda minha escrita é também uma tentativa de me ver como relevante, mesmo sem o menor eco na realidade. Existem os que trabalham demais, os que são retroalimentados pelo seu trabalho e que não sentem que as horas que passam dedicados a ele sejam apenas horas gastas para sobreviver. Eu conheci algumas pessoas da área médica e parece ser comum que eles trabalhem demais. Não acho difícil entender o motivo: nos outros empregos as pessoas não costumam ouvir que são abençoadas e salvam vidas. Todos nós queremos ser importantes, amados, salvar vidas – nem que seja apenas a nossa, nem que seja durante poucas horas num restaurante lotado.

Você não é todo mundo!

Existe um conceito na sociologia que é límpido, fácil de entender, praticamente auto-evidente e que muda a vida das pessoas que o conhecem: posição de classe. Este conceito diz que o indivíduo tende a ver o mundo de acordo com a classe social que ele ocupa. Então não é surpresa nenhuma que eu, que moro em Curitiba, quando encontre com um homem que seja heterossexual, branco, religioso e com curso superior, quase certamente estarei falando com um bolsominion (ex ou ainda minion). As estatísticas estão aí pra provar que esse é o perfil típico. Os lugares que ele frequenta, as pessoas que ele conversa, seus parentes, as relações que ele estabelece com empregados e empregadores, tudo o leva a esse caminho. Uma vez, antes da eleição de 2018, ouvi de um homem (branco, hetero, etc): “eu não sei como a Dilma ganhou, eu não conheço ninguém que tenha votado nela”. São pessoas que estão nos mesmos lugares e ouvem as mesmas conversas, por isso compartilham a mesma visão de mundo e se reforçam mutuamente. Às vezes isso é bastante decepcionante, não? Você conhece alguém que “apesar de” tudo o que o cerca, parece superar os seus pares em sensibilidade, em olhar do ponto de vista do outro e querer ser uma pessoa melhor. Aí vem algo como uma eleição e todo esse verniz de sensibilidade e simpatia cede ao mais fácil, ao mais fundamental, e a pessoa professa as mesmas opiniões que se espera do meio de onde a pessoa vem. Ou seja, a posição de classe vence.

E antes que os anti-B se achem mais esclarecidos e críticos, tenho que lembrar que isso vale para o outro lado também: você que sempre detestou o Bosto deve frequentar também pessoas e lugares que o detestavam, provavelmente artistas, gays, intelectuais, pessoas de esquerda. Os raros cuja opinião não concorda com a sua posição de classe, provavelmente frequentam meios híbridos e se identificam mais com um lado do que com outro. Como, por exemplo, as advogadas que eu conheço e que nunca foram lava-jatistas. Uma delas sempre esteve envolvida com o movimento negro e outra com as pautas Lgbtq+. Devo dizer que elas, como todos os que não aderem automaticamente às opiniões que se espera da sua posição de classe, sofrem com essa falta de adesão, seja pela solidão ou até mesmo por represálias.

Mas, então, aonde está a Verdade? Qual a opinião certa, qual a posição que dá a visão mais exata da sociedade? Se tem algo que é preciso se acostumar quando se estuda Humanidades é que nunca se pode bater o martelo para definir uma Verdade. E nós acreditamos que a beleza é justamente essa.

O interessante é que os homens costumam se pensar com essa capacidade universal. Uma das cenas mais engraçadas do filme Melhor é Impossível (1997) é quando o personagem de Jack Nicholson, que não apenas tem TOC mas também é uma pessoa muito desagradável, encontra uma de suas fãs. Ao contrário de tudo o que ele é em pessoa, nos livros que ele escreve há muita doçura e romance. Então a fã já se dirige a ele com um olhar que sabemos que irá irritá-lo. Ela lhe pergunta:

– Como você descreve uma mulher tão bem?

– Eu penso num homem e eu retiro dele racionalidade e responsabilidade.

Apesar de nos verem com um conceito tão baixo, os homens jamais tiveram pudores em escrever personagens femininos, porque acreditavam que não teriam a menor dificuldade em apenas tentar inverter seu olhar e falar do ponto de vista “debaixo”. E até que parece que eles se saem bem, até você pegar o primeiro romance escrito por uma mulher e perceber o ineditismo dos temas, os pontos de vista que um homem jamais poderia prever. Para dar um exemplo bem concreto: eu reli a série O Tempo e o Vento há alguns anos. Na edição que eu li, Érico Veríssimo reconhecia que ele não conseguiu se aprofundar em várias dinâmicas dos personagens femininos. Um dos momentos que me chamou atenção foi que a matriarca Ana Terra vivia no casarão e a mulher de Rodrigo foi dividir o teto com eles. O autor resume a questão toda em “ela se ajustou rapidamente às regras da casa”. Do ponto de vista de um homem que passa o dia inteiro fora e só precisa que a casa esteja limpa e com comida na mesa quando ele chega, é fácil pensar que uma questão de poder como esse resolve-se por si só. Como mulher, pensei no que deve ser sair da casa dos pais e entrar em outra, onde uma mulher de idade e personalidade forte já está estabelecida e não tem disposição em ceder. Pensei nas lutas simbólicas, nas ordens desobedecidas, em objetos que não podiam ser mexidos, nos erros que foram cometidos pela falta de troca, no teatro de mostrar ao homem da casa que está tudo bem enquanto há uma guerra acontecendo debaixo daquele teto. As mulheres sempre se moveram em espaços destituídos do poder visível e oficial, o que não quer dizer que não exista lutas pelo poder na vida das mulheres. E como um homem, que foi educado para olhar o privado, a cozinha, o cuidado e toda feminilidade como uma espécie de floreio, poderia descrever com precisão o ponto de vista feminino? Nunca puderam, e convido a todos a procurarem romances escritos por mulheres para se enriquecerem.

Com a popularização da informação, o mundo se tornou muito mais complicado pra todos. Se antes um antropólogo podia passar meses com uma tribo e voltar para a civilização e escrever o que quisesse, hoje é provável que um membro da tribo apareça no dia da defesa da tese e se levante e diga “isto está errado!” diante de um absurdo. Antes não, era possível juntar um monte de artefatos, que vinham de diversos lugares do mundo e montar qualquer teoria a respeito deles, chamá-los de inferiores com a maior naturalidade, concluir que há parentesco entre egípcios e maias porque ambos faziam piramides. Eu já ouvi se queixarem da visibilidade da pauta gay, que é desnecessária, por quê não fazer como antigamente que todo mundo tinha aquela figura do “tio bonito e solteirão”, tão amoroso e discreto, que provavelmente era gay e ninguém havia se tocado. E alguém se perguntou se esse tipo solteirão não teria preferido viver com alguém e poder dizer em voz alta o que se passava com ele?

Quando vejo mulheres que se dizem contra o feminismo, negros que falam que há muito mimimi em pautas racistas e outros exemplos do tipo, sempre me parece que o que essas pessoas estão dizendo é: “nesse mundo que você acusa de ser injusto porque era governado por homens brancos e heteros, nós éramos mais felizes e vivíamos mais seguros. Queremos esse mundo de volta”. Quando as mulheres foram colocadas para trabalhar nas fábricas durante a II Guerra, ninguém estava pensando em lhes dar mais liberdade e pensaram que elas voltariam para os seus lares quando os homens retornassem. Depois que eu vi Casamento à Indiana (Netflix), os casamentos arranjados passaram a ter outra perspectiva para mim, achei algo muito lógico e que tem tudo para dar certo. Infelizmente, por mais auto-destrutivos que possamos ser no nosso desejo infantil de nos colocar sob respostas fáceis, a flecha do tempo possui uma única direção. As mulheres que experimentaram os trabalhos nas fábricas não eram mais as mesmas, eu que fui criada para casar com amor não consigo simplesmente combinar um casamento, o sujeito classe A e B não consegue conversar com a sua empregada e daí entender todas as dores pela qual ela passa. Não existindo uma única Verdade, o melhor que podemos fazer é abraçar o maior número de verdades possíveis, dar cada vez mais espaço, enriquecer cada vez mais o debate. O primitivo que vai numa tese de antropologia e diz “Isso está errado” pode parecer um incômodo à primeira vista, mas de quantas vergonhas a Antropologia teria sido poupada se a voz dele tivesse sido ouvida desde o início. Já que ninguém consegue, sozinho, representar a voz de todos, que todos tenham sua própria voz.

A morte da magia, agora sim racionais e perfeitos

Embora eu nunca tenha chegado perto de viver isso por ter me afastado da profissão, sempre me dá um arrepio quando vejo notícias de tragédias e violências terríveis – daquelas que nos fazem perder a fé na humanidade só de ficar sabendo, quanto mais vivê-las – e ela termina com a notícia tranquilizadora de que a pessoa já está recebendo tratamento psicológico. Eu me coloco no lugar desse terapeuta, eu o imagino entrando numa sala com uma pessoa totalmente ferida e ter que ser, para ela, o veículo de restaurar uma psiquê feita em migalhas, como se num só indivíduo tivesse sido despejado um caldeirão inteiro de maldade, uma violência que representa classes, gerações, algo muito maior do que os próprios participantes. Há dores que são inevitáveis, mas há também dores que ninguém deveria viver. O que é possível dizer? Às vezes não há mesmo nada a dizer. Nada para dizer, eu acho que uma das coisas mais difíceis é não ter nada para dizer e realmente se calar. Lembro de um amigo ateu que perdeu a mãe e recebeu várias condolências falando de Deus, as pessoas chegavam a escrever “eu sei que você não acredita, mas vou dizer do mesmo jeito: que Deus…”. Ou quando dizem para uma pessoa com depressão não ficar daquela maneira ou sair para tomar um ar. São frases de consolo que servem muito mais a quem diz do que a quem recebe.

Quando eu fiz faculdade, não existia coach; o mais próximo de coach naquela época era a chamada Terapia Breve. Ao invés de ficar muito tempo revirando seus pensamentos, na terapia breve a pessoa já chegava dizendo seu objetivo e em poucas semanas o terapeuta a ajudaria a chegar lá. Dentre as opções que me foram oferecidas, eu me encantei com o psicodrama de raiz, digamos assim, o que tinha raízes no teatro (mas não atuei porque ele precisava de mais uma pessoa). Hoje existe a Constelação Familiar, que pelo pouco que sei bebe um pouco da fonte do psicodrama, soube que pra divisão dos diversos papéis usam até cavalos. Para turbinar o currículo, o lance era fazer as Pós-Graduações e depois passou a ser MBA, soa muito mais FGV. Para não ficar só no acadêmico: eu fiz a dieta Dukan há alguns anos, emagreci bastante (e depois recuperei), comi tanto queijo minas (fazer uma dieta baseada em carne quando não sei come carne é complicado) que a padaria aqui perto de casa só faltava vender queijo minas em fardos. Lembro que quando eu era criança existia a Dieta de Beverly Hills, tinha que fazer refeições só de fruta – e só uma fruta! -, porque diziam que era assim que os homens (os nossos amigos caçadores e coletores) faziam nas origens. Agora tem Gluten Free e não sei se ela ainda está vigente ou se surgiu outra e não estou sabendo. Sobre procedimentos estéticos podemos citar que antes era o Botox e agora é a Harmonização Facial, sobre internet podemos falar de Blogueiros que deram lugar aos Influencers, enfim, para cada setor existe o último, o novíssimo, o revolucionário que AGORA SIM. Não que houvesse nada de errado com o que havia antes, e muitas vezes são os mesmos conteúdos/procedimentos/pessoas sob novos nomes, mas o simples fato de ser o antigo parece diminuir a eficácia.

Objetos sagrados costumam ser separados dos objetos comuns, mesmo se puderem ser limpos ou sejam idênticos. Não se pode pegar um prato comum de cozinha e usar num rituais, lavar, comer, usar em rituais de novo. Objetos mágicos “sujam” se forem usados para fins profanos. Para entrar nas igrejas católicas subimos escadas – às vezes de muitos degraus e que nos deixam esbaforidos -, o que nos tira gradualmente do mundo comum para entrar no sagrado. Já dentro do ritual, os Oficiantes têm roupas diferentes do seu dia a dia, nem que seja apenas um manto que cubra a roupa normal. Mas o ideal mesmo é quando é possível retirar o Oficiante da vida comum, vivendo em casas separadas, sem ter que ganhar seu sustento como um assalariado, muitas vezes sem poderem constituir famílias. Tendemos a acreditar em pessoas que falam em cima de púlpitos, vestem roupas diferentes e que não vemos fazendo coisas banais. O psicólogo junto de quem viveu uma tragédia pode não ter muito mais o que fazer do que ouvir e chorar junto, mas ele é O Psicólogo. (Assim como se ele disser algo inadequado, será muito pior por ter sido um Psicólogo).

O engraçado é que a morte da magia já foi decretada inúmeras vezes. A Antropologia nasceu quando os Europeus descobriram os Outros, e os chamaram de incivilizados, porque os Outros, estranhamente, sempre perdiam em critérios de civilização: não usavam calças, não frequentavam escolas, não reverenciavam a rainha da Inglaterra. James Frazer – que, se não me engano, é o mesmo antropólogo que disse “Deus me livre!” quando questionado se gostaria de encontrar pessoalmente algum dos nativos que estudava -, inventou uma escala que dizia que o pensamento humano evoluía da Magia, passava pela Religião e culminaria na Ciência. Os povos primitivos, coitados, ainda pensavam que um machado ungido num ritual podia fazer mal a uma pessoa que estava a quilômetros, ou seja, não entendiam nada de física, por isso ainda estavam na Magia. Já os europeus haviam passado pela Religião e já estavam, no séc XIX, predominantemente na Ciência, quase de todo racionais e perfeitos. Chegamos no futuro fazendo coisas impensáveis há poucos anos, como interagir com facilidade em tempo real com pessoas do outro lado do mundo – que agora muitos acreditam que é plano.

Decretar o fim da magia e qualquer tipo de lúdico parece ser uma fantasia iluminista que ainda carregamos. A mim, a tentativa de fazê-la desaparecer como água só a espalha em pedaços menores ainda mais difíceis de rastrear. Lembro de uma vez que fui buscar meus florais na farmácia de manipulação e lá encontrei uma das minhas professoras, que na época também ocupava um cargo importante na universidade. Assim como eu, ela foi buscar florais, e eu percebi que ela ficou muito sem graça quando me encontrou. Mas quando se convive com muitos professores, doutores, cientistas e pessoas “racionais” em geral, menos temos a visão ilusória de que são pessoas guiadas apenas pela razão. Como qualquer psicólogo poderia confirmar, quando negamos uma parte essencial do psiquismo na ilusão de fazê-lo desaparecer, apenas criamos um monstro que não conseguimos controlar. A publicidade nos captura com pura magia, fazendo com que o consumidor se identifique com a modelo, se emocione com a música, deseje o cenários e compre um produto (que não é nenhum dos três itens) acreditando que tudo aquilo virá até ele espontaneamente. Irmã cada vez mais íntima da publicidade, a magia está presente na política, que definitivamente agora investe puramente no emocional. As pessoas estão votando em heróis contra vilões, em purezas, em soluções rápidas, em paraísos na terra e cada vez menos em projetos políticos, aqueles detalhes chatos do dia a dia como decidir prioridade de verbas, traçar um plano de ação, atender demandas de grupos, etc.

Mas a magia também está nos relacionamentos, no amor, em olhar para um ser humano e achar que ele é essencialmente único. Eu gosto da frase que diz que “casar de novo é a vitória da esperança sobre a experiência”, porque acho que é isso mesmo. Apesar dos fatos apontarem para o contrário, de quem já casou saber das dificuldades diárias, é muito humano ficar inundado de esperanças e fazer tudo de novo – casar de novo, montar uma família de novo, acreditar que pode controlar o destino de novo. A magia está na arte, que é produzida diariamente, até que uma combinação de notas ou cores muito específica atinge as pessoas com uma força inesperada e as emociona, cria um novo mundo, passa a fazer parte de suas vidas. Hoje até mesmo a ciência se rende ao poder curativo das rezas, do efeito da meditação no cérebro, da força interior que as pessoas encontram nos momentos difíceis apenas porque creem numa explicação. Magia não é realmente desacreditar de leis da física (como acreditavam os primeiros antropólogos) e sim se permitir uma relação muito mais orgânica com elas.

Em busca de um lugar quentinho

Quando eu li a série Sapiens, de Yuval Harari, especialmente o primeiro livro – Sapiens: uma breve história da humanidade -,fiquei com a sensação de que o autor é fã dos caçadores e coletores. Tudo pode ser apenas um recurso, porque ele precisava refutar um pensamento que está tão entranhado em nós que nos parece muito natural: se nós sobrevivemos a outras espécies, é porque somos melhores. Ou: o fracasso de padrões do passado atesta a superioridade do padrão do presente. Harari nos aponta que, em vários itens, os caçadores e coletores eram melhores do que nós, os sedentários. Um deles é a inteligência. Como vivemos em sociedades complexas e cheias de tecnologia, temos a impressão de sermos muito inteligentes, mais inteligentes do que jamais fomos; o autor nos aponta que, coletivamente, por causa da construção histórica do pensamento, podemos ter nos tornado mais inteligentes, mas como indivíduos não. O homem contemporâneo é, em comparação com seu ancestral caçador e coletor, pouco habilidoso, pouco desafiado, conhecedor de um número pequeno de rotinas, logo, menos inteligente. Além da inteligência, perdemos em força, em criatividade, em integração com a natureza, até mesmo em saúde… mas escolhemos esse caminho sem olhar para trás, em busca de algo muito caro: segurança. A segurança da barriga quentinha que apenas a agricultura pode nos dar. E a proteção gerada pela vida comunal.

Existe uma corrente filosófica chamada Contratualismo, da qual todos nós já ouvimos falar um pouco, e dela vem a ideia de Contrato Social. Todos os autores da corrente falam desse Contrato, apesar de diferentes concepções de homem e de como e porquê o Contrato é feito. Para Hobbes, com a ideia do “homem lobo do homem”, somente um poder absoluto e autoritário é capaz de impedir que os homens vivam em guerra constante. Já Locke acreditava num homem essencialmente bom e o Estado surge do consenso, para garantir os direitos naturais do homem. O Estado que não defende esses direitos perde a sua legitimidade e pode ser deposto. Quando estudei essa linha de pensamento pela primeira vez, achei que a teoria fazia sentido mas que havia algo estranho, algum ponto cego, e não sabia dizer o que era. O estranho está na noção de que exista algo antes do contrato. Não existem homens solitários, que falem a mesma língua e que vivam sozinhos tempo o suficiente para depois fazerem uma grande reunião e decidir um contrato. Linguagem, vestuário, moradias, instrumentos, direitos, deveres, cultura, ideais, leis – tudo surge ao mesmo tempo, tudo junto e misturado, gerado e modificado sem parar no convívio. Podemos sonhar com Tarzãs e Meninos Lobos, mas sabemos que um homem criado fora do convívio humano é apenas um animal em desvantagem. Ser um humano não se resume a ter um corpo humano.

Eu acompanhava a série Star Trek (primeira geração) quando era criança e tive a oportunidade de rever muitos episódios depois de adulta. Xinguei muito o Capitão Kirk! Mais de uma vez, a tripulação encontrou planetas que eram como paraísos. Eles tinham algo nas suas atmosferas que acalmavam as pessoas e lhes davam paz, então todos ficavam contemplativos e não queriam mais viver aquela vida de exploração espacial. (Imagine aquele típico cenário Star Trek, só com pedras e fundo colorido, e a tripulação deitada e conversando como se estivesse num festival da maconha). Kirk era sempre o que não se deixava contaminar e ele dava um jeito de arrancar todo mundo daquele estado. Era pra ficar infeliz e trabalhando mesmo. A justificativa dele era que aquilo era contra o espírito humano, que era a luta, a incompletude, a insatisfação, a ambição, em resumo, a infelicidade que nos tornavam grandiosos.

Seria Kirk retrato da época que a série foi lançada? Hoje acho que ninguém faria (e repetiria) uma defesa tão apaixonada de viver sob pressão, talvez porque estejamos vivendo pressão demais. Freud concordaria com Kirk ao dizer que uma vida toda voltada ao prazer não nos leva a nenhum avanço civilizatório; que o Princípio de Realidade, ao negar a satisfação imediata do Princípio de Prazer, apenas contribui para aumentá-lo. Não é difícil perceber que faz sentido; o alívio de um prazer represado é muito mais profundo do que um que se deixa realizar assim que o desejo surge. Eu tendo a concordar com Marcuse, que em Eros e Civilização, diz que o desenvolvimento do capitalismo fez com que nós pervertêssemos o Princípio de Realidade com a “mais-repressão”, jogando a satisfação da libido cada vez mais longe, até simplesmente ignorá-la.

Como os Estados Unidos venceram a Guerra Fria – não se pode dizer que um país que não existe mais possa ter ganhado, não é?- o sistema que eles representam é o padrão que venceu. Se venceu é porque é melhor, certo? Quando caiu o Muro de Berlim e as duas Alemanhas puderam se olhar, eu lembro das reportagens falando do quanto a cidade ocidental era mais bonita, colorida e conservada. Agora eu percebo que existe um movimento de olhar para esses mesmos restos de outra maneira. De olhar para os kommunalka – apartamentos comunais da antiga URSS – e ao invés de pensar que são feios, reparar que são grandes. O meu pai tinha um indisfarçável desprezo pela poucas conquistas dos filhos, que aos quarenta ainda não eram nada e não tinham nada, enquanto ele aos quarenta tinha casa própria, carro, sustentava a própria família e a da ex-mulher, viajava e gastava muito. No excelente documentário The True Cost (que não está mais na Netflix), além de mostrar a pobreza e a exploração daqueles que produzem as nossas fast-fashion, somos obrigados a encarar a nossa pobreza, nós, os consumidores. Se antigamente a pessoa tinha duas camisas e usava uma enquanto a outra lavava, ela também tinha a perspectiva de economizar bastante até comprar seu terreninho. Agora não, o terreno ou a casa própria se tornaram tão distantes para a maioria que o único luxo possível é o imediato, o da roupa bonita. Da minha parte, tenho pensado que estou bastante cansada do tal espírito humano insaciável e ambições sem fim.

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí

Emicida – AmarElo

Pedir para dez pessoas que viam e depois se tornaram cegas é trazer à tona experiências dolorosas. Teve um detalhe de um dos depoimentos que me doeu pela sua simplicidade. Um dos entrevistados contou que, certa vez, foi contratado por uma empresa apenas para fazer número. Ele foi deixado numa sala vazia na parte de cima do prédio sem ter nada o que fazer. Além da situação em si já ser deprimente, era ainda mais doloroso que o deixavam sozinho também no elevador. Ele entrava no elevador e, quando parava nos andares, as pessoas não entravam com ele. Aquilo me doeu porque vi a dor com que ele me contou, mas também porque eu também poderia ter feito o que aquelas pessoas fizeram. Elas ficaram tão sem saber o que fazer que preferiram fingir que não estavam lá, na esperança de que ele não percebesse.

Depois de ler a série de Philippe Ariès sobre a morte, eu nunca mais vi a cremação da maneira como via. Ele é um historiador do que se chama de História das Mentalidades e/ou História de Longa Duração e trata o caminho que fazemos desde a Idade Média até os tempos atuais para mostrar a nossa relação com a morte. As pessoas eram mais íntimas dos cadáveres, putrefação e morte em geral. As pinturas estão cheias de sangue, pessoas sendo degoladas, tripas de fora, cadáveres esverdeados. Há registros de pessoas que anunciavam que viveriam apenas mais alguns dias, e com isso tinham tempo de reunir a todos e resolver as pendências antes de partir – elas diziam que iam e iam mesmo! Os funerais eram longos, de uma semana pelo menos, e se enchia o recinto de flores para suportar o mau cheiro. Aqueles dias serviam para dar tempo para as pessoas se despedirem, viagens de carroça e cavalo eram demoradas… Mas também servia para se ter certeza de que o falecido havia realmente morrido e que não ia levantar de repente de uma catalepsia – fenômenos imprevisíveis para a medicina da época e que davam a impressão de que a pessoa foi e voltou do além. Fomos nos afastando de tudo isso, desse convívio carnal a morte, e ela foi se tornando tabu. Não queremos nem falar, como se isso atraísse e a morte em si não fosse inevitável, dizemos até Aquela Doença para não usar a palavra Câncer. O cadáveres foram ficando fisicamente distantes, sendo cuidados em lugares especializados e quase em segredo, e hoje rejeitamos até que reste um corpo. Queimamos, jogamos as cinzas no mar, apagamos qualquer resquício de fisicalidade.

O nosso afastamento do carnal fez com que Norbert Elias, já no século passado, lançasse a previsão que no futuro seríamos cada vez mais vegetarianos. Ele disse que explicaríamos isso de várias maneiras, como o amor pelos animais, os nutrientes, a preservação do planeta e etc., mas o que permitia fazer uma previsão segura sobre isso era a maneira como estávamos nos afastando da carne. Enquanto qualquer nobre educado precisava saber destrinchar um porco com elegância na frente de seus convidados, hoje compramos a carne preparados, cortes e bandejas higiênicas que dissociam aquele alimento de qualquer animal ou de morte. O problema com a morte não segue direção única, então não apenas rejeitamos a morte dos animais: também vivemos, ainda de acordo com Elias, um movimento de afastamento de pessoas velhas. A decadência física dos velhos nos lembra nossa própria decadência, e isso é desconfortável. Quando uma pessoa velha demonstra amor à existência carnal, como por exemplo fazendo sexo, ficamos horrorizados, sentimos aquilo como indecente – queremos acreditar que velhos são puros e esterilizados, iguais as bandejas de carne. Os velhos têm marcado no corpo a passagem do tempo e na presença deles é impossível esquecer a morte. Amamos a juventude, fazemos de tudo para parecermos eternos adolescentes. Aos velhos cabe o asilo e os lugares escondidos, porque assim quando eles somem também não fazer nenhum barulho, ninguém nem vê o corpo.

Uma vez indiquei para uma pessoa preconceituosa que assistisse Ru Paul´s Drag Race. Eu queria que ela conhecesse. E a defini como preconceituosa, mas era mais complexo do que isso – a maneira como foi criada e suas crenças religiosas lhe dizem que homossexualidade é errado, mas ela tampouco consegue aprovar que as pessoas sejam maltratadas por isso. Para ela, o desejo pelo mesmo sexo é como um problema sem solução, uma prova da imperfeição do mundo. Eu queria que ela visse, com Ru Paul, a história daquelas pessoas, que em vários momentos do reality falam de suas dificuldades com a família, emprego, imigração, relacionamentos. Mas eu queria que ela visse também o grande talento daqueles profissionais, as provas muito difíceis, como as drags precisam conhecer seus próprio estilo, encontrar maneiras de tornar o corpo mais feminino, serem interessantes, representar, dançar, atuar. Assistir o programa nos faz enxergar drag menos como algo folclórico e mais como um trabalho feito por pessoas comuns. Mas a pessoa a quem sugeri ver o programa não quis, alegou que achava tão doloroso ver como os gays sofrem que ela não ia ver. E fim.

Já me aconteceu mais de uma vez de contar dramas aqui do “nosso lado” (esquerda) e ser desmentida sem dó. Você conta algo como o que está acontecendo com a Manuela D´Ávila, de enviarem ameaças de estupro para sua filha de cinco anos, ou histórias difíceis de racismo ou preconceito de classe e o ouvinte carimbar: “é mentira”. Para algumas pessoas, quanto mais violenta e injusta a história, maior a prova que “a esquerda inventa essas coisas para se vitimizar”. Negros exageram quando dizem que pessoas menos qualificadas ficam com as vagas de emprego, mulheres andam por aí se insinuando e não mencionam isso quando reclamam de assédio, entregadores de aplicativos atravessam a cidade em bicicletas por gosto, etc. Eu vejo que não é a mim ou as vítimas das histórias que essas pessoas desmentem, e sim o mundo que é descortinado. Como encarar o fato de que o mundo pode ser tão ruim e continuar vivendo; que existem pessoas que fazem o mal sem a menor culpa e algumas delas podem ser meus vizinhos; que enquanto estou tranquila outros são tão injustiçados; que existam problemas tão grandes e sem solução? Elas se recusam a ver o lado ruim, menos ainda que possam estar envolvidas nisso quando abraçam certas idéias. A intenção das pessoas que não entravam no elevador porque havia um cego lá dentro jamais foi magoar ou serem preconceituosas – mas foram, e muito. O problema é que somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo que calamos e o que preferimos não lidar.