Amar? Só se eu quiser

“Não compre, adote”. Pra quê cachorro de raça, dizem todos aqueles que já tiveram seu coração escancarado de amor pelos cachorros. Hoje em dia amar cachorros é muito comum, e eu veja se essa experiência não é algo que você viu ou até mesmo viveu: o primeiro cachorro escolhido é um de raça, uma raça que adoramos por um motivo qualquer. Depois de ter o primeiro cachorro, o de raça, o segundo, terceiro, quarto e todos cães que vierem já não precisam mais, pode ser o amarelinho, pode ser pelado, pode ser desproporcional. Todo cachorro vem com o kit de carinha pedinte, maneiras particulares de te fazer entender o que ele quer, capacidade de adivinhar quando você precisa de colo e um companheirismo inabalável. O convívio com o cachorro nos abre o coração de tal forma que percebemos que todos são lindos; se feios, passamos a amar tanto aquela feiura que para nós ele se torna ainda mais lindo por ser feio para os outros. O convívio e o amor incondicional deles são capazes de derreter quase todos os corações – ou a todos os que realmente têm coração.

Nossos parentes, aqueles de quem reclamamos tanto nas festas de fim de ano, mal e mal suportamos porque temos uma história em comum. Gostamos de nos pensar como muito sofisticados, mas a verdade é que basta estar viver algo junto com as pessoas para sentir que temos um laço com elas. Se essa experiência se repetir várias vezes e que ela nos coloque sentindo o mesmo, como por exemplo fazer exercícios na mesma sala, tanto mais nos sentiremos ligados. Apesar das reclamações sobre piadas do pavê e perguntas sobre as namoradinhas, as festas de fim de ano cumprem seu papel ao confinarem as pessoas no mesmo ambiente, partilhando da mesma comida e saírem de lá com as mesmas memórias.

Mas nós não precisamos mais deles e os encontramos cada vez menos. A crise econômica está trazendo os filhos de volta à casa dos pais, ou retardando sua saída, mas nada do que se compare à época que poderíamos ter três gerações vivendo na mesma casa. Quando indagado sobre tantas histórias picantes envolvendo famílias, Nelson Rodrigues se irritava com quem o considerava uma espécie de ficcionista pervertido, ele dizia apenas descrever a realidade. Ruy Castro, em Anjo Pornográfico, descreve essa realidade a qual Nelson se refere, de famílias atulhadas em cortiços, a privacidade dos casais preservadas apenas por paredes finas (quando havia), a proximidade que criava uma inescapável intimidade com os corpos e hábitos dos parentes. Nós nos vemos menos, escandalizamos menos, e também amamos menos. Os filhos se afastarem dos pais parece ser uma tendência inexorável do mundo moderno. Nós não suportamos conviver com o que antes poderia ser considerado aceitável, nossos horizontes são maiores e agora não precisamos mais, necessariamente, que nossa auto-imagem seja atrelada à nossa família de sangue. A internet pode nos tornar muito mais próximos de pessoas que estão do outro lado do mundo, enquanto as que estão da porta para fora nos desconhecem.

Hoje podemos, como nunca, escolher quem amar. Homens e mulheres não precisam mais de casamento para terem seu sustento ou vida sexual ativa. Conhecemos as pessoas predominantemente pela internet, então fica fácil aplicar vários filtros que nos fazem não correr o risco de nos apegar a alguém que tenha características erradas – gostar de gêneros musicais que abominamos, crenças religiosas que não compartilhamos, opções políticas diferentes das nossas, um tipo de alimentação com ingredientes esquisitos ou reprováveis. Mas também, graças à internet, podemos ser iludidos e passar meses conversando com alguém, nos envolvermos, e no fim era apenas um personagem. E mesmo quando a pessoa existe, e somos ambos sinceros, criamos um vínculo, às vezes acontece da outra pessoa apenas sumir. Ficamos sem saber se fizemos algo de errado, se a pessoa morreu, se o silêncio vai durar apenas algumas horas ou a história terminou ali, para sempre, sem a oportunidade de um adeus. Eu acredito que todos nós, em algum momento, já fomos essa pessoa que parte sem dar explicações. Hoje em dia é tão fácil apenas ir embora, que mesmo sabendo que não é correto, acabamos fazendo.

Fazer uma incitação ao amor e ao convívio é também convidar as pessoas a ouvirem piadas sem graça à mesa, se surpreenderem com hábitos domésticos estranhos, não serem mais donas do seu tempo e dinheiro. É também dizer para trazerem para dentro pessoas que não mereciam entrar; quem se abre sempre corre risco, e até mesmo o mais esperto pode ser enganado. (Acho que justamente os mais desconfiados e prevenidos costumam sofrer mais com farsantes do que os que são simplesmente abertos, mas é minha opinião…) Quando deixamos alguém entrar, e a pessoa fica, e dá tudo certo, nunca é um “felizes para sempre”, porque cada dia é um dia. E se dá certo demais, um amor de novela, em algum momento um dos dois vai partir. (Escrevo com a Dúnia aqui do meu lado, meio surda e cega, o momento dela ir embora não tarda.) Amar é maravilhoso, mas também dói. À medida que os anos passam, fica difícil não ver tudo com olhos que reconhecem padrões, e achar que já vimos de tudo, que cada pessoa é apenas um tipo que você já viu e, assim, perder a capacidade de se encantar. Crianças aprendem de tudo e se apegam a todos justamente porque tudo é novo e encantador. Quando velhos, deixamos de tomar decisões insensatas – a experiência faz com que nada mais valha o risco. Amar é um risco.

Mas não deixar ninguém entrar na nossa vida é, de certa forma, colocar como prioridade ter um sofá impecável. Ou se manter atualizado em todas as séries. Fazemos plásticas para nos manter jovens por fora e somos um verdadeiro museu por dentro. Eu te amarei, num futuro próximo, basta que você preencha esse formulário de dez páginas, traga um nada consta e cópia do contracheque… Difícil saber o limite entre a atitude prudente e saudável do caminhar em círculos, no pequeno metro quadrado impenetrável que forjamos para nós mesmos.