Quando a Cia das Letras me leu

Todo ano eu passava no site da Companhia das Letras à procura das datas para recebimento de originais. Normalmente, eles abriam um mês para receber os originais. Daquela vez, estava escrito que eles não conseguiam ler as centenas de originais que chegavam todos os dias. Então, dia tal do mês tal às dez horas da manhã, eles receberiam 130 livros, apenas, e eles seriam lidos e avaliados para aquele ano. Ou seja, estava ali, implícita, a informação que durante todos aqueles anos de negativas, eu e outros provavelmente nem havíamos sido lidos. Daquela vez, pros selecionados, seria diferente.

Eu me preparei com antecipação. Fiz uma pasta onde havia, em formato PDF e títulos explicativos, todas as informações. Havia também o livro, formatado, pronto. Na frente do teclado, num papel, eu escrevi meu RG e CPF, porque às vezes confundo os dois. Havia também o nome do livro, pra caso eu ficasse nervosa e esquecesse, o número de páginas, o número de contos. No papel e no arquivo, eu antecipei todas possíveis informações que eles poderiam pedir, para poder digitar rápido.

Eu não lembro o dia e o mês, mas lembro que era exatamente às 10h. Eu acordei mais cedo do que o normal e já tomei meu café da manhã, pra não ter nada pendente quando eu me sentasse na frente do computador. Quase não consegui engolir. Fiquei zanzando, fazendo as coisas, mas já liguei o computador às 9h e às 9:30 já estava dando F5 na página da Companhia das Letras. Faltando cinco minutos, o site já começou a travar. Eu abri várias janelas, todas travavam, e eu pulava de uma pra outra em busca de alguma aba aberta. Às 10 em ponto nada abria. Às 10:01, uma das abas mostrou o formulário. Pedia meu nome, nome da obra, categoria, pedia os PDFs com dados e a obra em si. Estava tudo na mão. Eu tremia ao digitar e me deu tanto branco que eu acho que teria esquecido o nome da minha mãe se tivessem perguntado. Dei enter, mais demora, a página ressurgiu dizendo que eu não havia preenchido alguma coisa que eu preenchi. Fiz o processo de novo, mais demora, mais desespero, e quando a página carregou, havia uma mensagem dizendo que a seleção já estava encerrada. Foram 3 min intensos de adrenalina e tremedeira.

Abandonei o computador e fiquei frustrada o resto do dia. Meu consolo é que eu havia feito o que podia e o resto não estava sob meu controle. Poucos dias depois, vi um e-mail da Cia das Letras e fiquei de mau humor pensando que eles haviam aproveitado a minha tentativa pra me colocar na lista de newsletter. Em poucas linhas, eles confirmaram a Inscrição e que meu original seria avaliado. Sim, eu havia conseguido, fui um dos 130.

Era uma ótima notícia e, ao mesmo tempo, não era. Um Não sob essa seleção seria um Não definitivo, sem desculpas. Durante a pandemia, enquanto todos sofriam, eu vivi o período mais criativo da minha vida. Havia um ar de “não há o que fazer” e, naquela perspectiva de fim de mundo, eu abandonei todas as minhas preocupações e vivi para escrever. O que saiu foi o que considerei a melhor produção da minha vida. Foi esse material que eu enviei para a Companhia das Letras. Os melhores da vida, aqueles que reúnem ideias, vivências e os aprimoramentos de uns vinte anos de escrita e quase dez de tentativas, o meu milagre irrepetível.

Corta pra seis meses depois. Meu estado mental era o oposto daquele. Meu ex me pressionava cada vez mais pra não me mandar dinheiro e nenhum lugar me queria. Empregos que exigiam curso superior não me queriam, pois muito velha sem experiência, e empregos de curso médio ficavam assustados com a minha qualificação e não me queriam. Eu havia arranjado um emprego, cheio de indicações, exigências e elogios à empresa, que se revelou um puro e simples telemarketing. Como eu não ligaria para a casa das pessoas oferecendo nada, eu apenas receberia as ligações relativas ao site, achei que seria tranquilo. Eram seis horas e home office, então eu poderia continuar minhas outras atividades. A ideia era conseguir crescer naquela empresa, porque havia chefes e eles haviam trabalhado naquela função também, era possível. Na prática, eu nunca cheguei a trabalhar home office – íamos para a sede de máscara, frio de julho e todas as janelas escancaradas enquanto apenas nós, os peões, ocupávamos um andar. Tinha que bater metas de vendas, aguentar pessoas xingando. Ser fluente em espanhol me fez atender os piores casos: gente presa em aeroporto, gringa querendo dinheiro de volta, pessoas que não conseguiam receber o produto apesar de ter pagado. Não sei por qual política da empresa, se eles achavam que não iriamos ficar mesmo ou se era porque precisavam de “maturidade”, o que percebi é que eu e as outras pessoas mais velhas fomos colocadas nos horários mais tarde, sem opção, enquanto aos jovens eles deram horários flexíveis e quase sem problemas. Recebíamos os piores telefonemas. Meu horário era o último do último, até 21:15h, Nunca chegava em casa antes das 22h, nunca conseguia dormir antes das 24h. Eu tinha as manhãs livres e não conseguia fazer nada nelas. Eu ficava no sofá, enrolada em posição fetal, tentando acalmar meu coração e tomando coragem pra sair.

Quem me encontrou naquela época, diz que mal dava pra olhar para mim, que eu parecia estar com anorexia. Não sei dizer porque não me olhava no espelho, não me importava. Eu até tentava comer, fazia um sanduichão e engolia tudo correndo nos meus 15 min de almoço, mas não era suficiente. O telefone não ficava mais do que alguns minutos sem tocar, a ligação entrava de repente, não dava nem pra se afastar da mesa. Eu sentia minhas roupas caírem do corpo. Eu me arrastava até o trabalho, era maltrada por telefone, voltava pra casa e tinha dificuldades pra dormir. Lembro que, quando cruzava com estranhos, eu me encolhia achando que iam descompensar e gritar comigo, igual haviam sido as minhas últimas seis horas. Para muitos foi um período que eu apenas sumi, não tinha vontade de conversar com ninguém, eu sentia muita vergonha. Pela primeira vez na minha vida pensei em procurar um psiquiatra e pedir remédio pra não sentir mais nada. Quando o salário caiu na conta, não comprei nada pra comemorar porque não conseguia desejar qualquer coisa.

Foi nesse contexto que eu abri meu e-mail e vi a resposta da Cia das Letras. Informamos que a sua obra NÃO foi selecionada, algo assim. Eu apenas fechei o e-mail e não comentei com ninguém, não tinha com quem comentar, não quis mais pensar no assunto. Aquele e-mail naquele dia foi o ponto mais baixo da minha vida. Ali, ela parecia estar me dizendo: “você não serve pra nada. Teve a sua chance, pôde sentar e se dedicar apenas à escrever, e nem assim conseguiu fazer algo bom. Você não tem talento. Você não tem nada para dizer. Você não tem o direito de desejar mais do que um subemprego”. Eu credito pelo menos um mês a mais naquele inferno àquele e-mail. E sair não foi um empoderamento, meu corpo não suportava mais e minha mente dizia “mas você não presta pra NADA mesmo, hein?”.

Agora a vida veio me dizer que os contos são bons sim e que serão publicados.