10. Paulo Coelho passeia em São Paulo

Antes de viajar, Paulo Coelho havia combinado com Christina Oiticica que ela não deveria contar pra ninguém que ele ia para o Brasil, para todos os efeitos ele estava em casa. Não era tão difícil, porque há anos ele havia restringido sua agenda ao máximo, quase como uma aposentadoria; não havia mais necessidade de atender todos os jornalistas, aparecer em todos os lançamentos de livros e participar de todos os encontros. Sua fama estava estabelecida e, mesmo se houvesse ainda o que alcançar, ele não tinha mais pique. E, particularmente, avisar que estava no Brasil era sempre complicado, porque por mais tempo que ficasse, nunca era possível fazer tudo.

Ser um escritor famoso era um tipo ótimo de fama, muito melhor do que ser um ator de Hollywood ou um astro de rock. Num evento literário, as pessoas vinham atrás dele, tiravam fotos, filas de espera e falta de espaço. Já no dia a dia, na padaria ou andando pelas ruas, era apenas uma pessoa ou outra que o abordava, geralmente as pessoas ficavam na dúvida. Aí, com os poucos que não se deixavam vencer e se aproximavam, ele sorria, tirava as fotos que pediam… e ia embora o mais rápido possível, antes que crescesse demais.

Quando finalmente se viu em São Paulo, descansado, sem compromissos e sozinho, Paulo Coelho sentiu uma euforia por estar de volta ao seu país natal que só quem vive longe é capaz de entender. O menino que apareceu na sua casa e agora em vídeos não tinha mais a menor importância. Agora estava perto do Ibirapuera, do MASP, do museu da América Latina, de pastéis de feira, de pessoas falando português nas ruas.

Justamente para estar mais perto de tudo, Paulo Coelho se hospedou num hotel que ficava na Avenida Paulista, perto de tudo o que ele queria ver ou da estação de metrô que o levaria até lá. Ele mal colocou os pés para fora da porta do hotel, o direito ainda suspenso no ar e buscando o solo, quando alguém veio na direção contrária e lhe deu um esbarrão tão forte que por muito pouco seu nariz não bateu no chão. Paulo Coelho viu os prédios inclinarem e voltarem ao normal enquanto uma mão muito firme puxava o seu antebraço – tão firme que talvez a queda tivesse sido um prejuízo menor. Ainda meio confuso, ele olhou para cima e viu um homem com mais de um metro e noventa, lenço na cabeça, brinco de argola na orelha, colete preto, camisa vermelha… enfim, um cigano. Paulo Coelho jurou que aquele homem lhe diria: “eu sou a encarnação de Dom Pepe e vim falar com você”. Mas o rosto do cigano perdeu qualquer autoridade quando ele lhe deu um sorriso largo e o chamou de “senhorzinho” enquanto pedia desculpas. O cigano estava acompanhado de uma Mulher Maravilha, um padre enlaçado numa freira e um palhaço. Paulo Coelho se condenou mentalmente por estar impressionável.

Paulo Coelho seguiu por entre os prédios, redescobrindo-os por debaixo de cartazes e pichações. As placas das lojas haviam ficado menores – uma lei nova, ele ficou sabendo – e janelas que estavam há anos tampadas acabaram surgindo. Ele estava assim, reparando em pinturas e detalhes quando sentiu seus pés baterem em algo duro e quase se lançar para frente (de novo); olhou para o chão e havia quase pisado num mendigo, que estava sentado com as pernas estendidas da estreita calçada. Paulo Coelho pediu muitas desculpas e vasculhou os bolsos à procura de dinheiro para tentar compensar. Praticamente só havia Euros na sua carteira, e seria uma piada de mau gosto dar uma daquelas notas a um mendigo. Entregou para o mendigo umas moedas perdidas, ainda da outra vez que tinha vindo pro Brasil e tinha tomado um café por aí., sem olhar e sem saber direito o quanto havia dado. Dois passos depois, já de costas, Paulo Coelho ouviu um barulho metálico suave à sua frente – o mendigo atirara nele a moeda que havia acabado de receber.

Respira, foi apenas o que ele pensou. Paulo Coelho não fazia ideia do valor e estava ali para relaxar, se divertir, matar as saudades do seu país, e não para querer se indispor com ninguém, menos ainda com um mendigo. Ele ainda estava pensando e contra-argumentando consigo mesmo quando passou por uma vitrine e viu, de canto de olho, um velho com uma expressão muito amarrada – era ele mesmo. Parou, soltou o ar, desanuviou a expressão. Por detrás do seu próprio reflexo, percebeu que estava diante da vitrine de uma barbearia e não seria má ideia, pensou, aproveitar a conspiração do universo pra aparar aqueles fios desorganizados que cresciam no seu rosto e couro cabeludo.

Veio lhe atender um rapaz de roupa muito colada e mascando chicletes; ele nem se deu ao trabalho de chegar perto de Paulo Coelho, foi andando até a cadeira para ser seguido. Aquilo não ajudou na melhoria do humor – por mais que fosse um salão mais simples, dirigir-se ao cliente era uma questão de educação. Colocou a toalha morna do rosto de Paulo Coelho com a mesma atitude, não tentou puxar conversa e nem ser simpático. O salão era dominado pelo barulho da TV colocada no canto. Sem ter o que fazer, Paulo Coelho olhou para ela. Anunciaram um ranking de “sucessos da internet”, e depois de mostrarem uma galinha bicando as pintas de um cachorro, um bebê que fez careta depois de cheirar a própria fralda e uma moça sendo surpreendida enquanto cantava no chuveiro, o vídeo escolhido como mais engraçado da semana foi, que dúvida, o do Expedito.

Assim que o vídeo dele apareceu na tela, o clima no salão mudou – as conversas foram interrompidas, todos os rostos se voltaram para a TV. Os apresentadores riram, o barbeiro riu, os outros clientes riram. Paulo Coelho não entendia o que todo mundo via naquilo, nem era tão engraçado assim, era apenas meio ridículo. Uma chegou a dizer que já viu o vídeo dezenas de vezes, e ria em todas elas. Seu barbeiro, até então inacessível, se entusiasmou, disse que era fã do V-Boy, que o seguia e que V-Boy tinha “mais de 10K no IG”, frase que Paulo Coelho não entendeu direito, apenas que mostrava popularidade. No meio da conversa que surgiu por conta do vídeo, Paulo Coelho falou que conhecia Expedito e foi um desastre: o barbeiro virou os olhos pra cima e fez expressão de desgosto, dois seguraram riso, a que parecia ser dona do salão mudou de assunto rapidamente, constrangida. Aquilo realmente o tirou do sério: quem mandou fazer questão de ser simples, entrar num salão qualquer, com um rapaz mal educado e não dizer quem ele era, dava nisso. Quando passou o cartão de crédito e a mocinha do caixa fez menção de reconhecê-lo, Paulo Coelho fez questão de confirmar que ele realmente era quem ela estava pensando, e saiu imediatamente, sem dar a ninguém a chance de tirar foto.

Paulo Coelho decidiu que naquele momento o melhor era ficar quieto, no escuro, sem interação. Foi direto até o Centro Cultural FIESP e comprou um ingresso para um filme que começava em uma hora, o horário mais próximo que havia.

Já passava das duas horas da tarde, mas Paulo Coelho ainda estava no fuso horário suíço e entrou no restaurante do Centro Cultural. Estava quase vazio, o horário era mais para lanche da tarde do que almoço. Quis comer algo bem brasileiro e pediu uma moqueca, que no cardápio dizia que era para compartilhar, mas ele estava sozinho, então perguntou para o garçom como era a porção, porque não viria mais ninguém. Nessa conversa sobre o prato, o garçom o olhou demais, Paulo Coelho falou demais e acabou que o sujeito o reconheceu. Pronto: o chef apareceu para falar com Paulo Coelho, bateu papo, tirou selfie, alguns clientes idem, e o que era pra ser uma pausa rápida virou um evento. Na cozinha, quiseram caprichar no prato porque era para Paulo Coelho e mais de quarenta minutos se passaram e o prato não foi servido. Para não ter que engolir tudo correndo, Paulo Coelho disse que tinha que sair, a sessão ia começar dali a pouco, ficaram constrangidos por deixá-lo com fome, desculpas de ambas as partes, muitas mesuras, e no final ele se sentou para ver o filme faminto e atrasado.

A sessão estava quase vazia. Uma das poucas pessoas eram um casal com uma criança, que corria entre as cadeiras. Crianças correndo entre cadeiras, num cinema passando filme Cult não costumavam ser uma boa combinação. Discretamente, Paulo Coelho procurou uma fila bem longe deles, entre o grupinho de rapazes e o casal com cara de professores. A criança explorou todas as fileiras e cantos possíveis e ainda estava por aí quando as luzes se apagaram. A mãe começou a chamar o menino com uma voz dengosa: “Pepe, volte aqui!”. Paulo Coelho apurou o ouvido, achou que de repente ela poderia ter dito “bebê”, mas ela se repetiu e realmente falou Pepe. Que o tal Pepe – sério, destino? – ficasse quieto quando o filme começasse, Paulo Coelho pensou. Logo na primeira cena, a tela já mostrava o tom amarelado das ruelas orientais. Era um filme de nome esquisito, Paulo Coelho havia comprado mais pelo horário do que qualquer coisa, ele nem sabia do que se tratava. Cena com ruela oriental era um bom prenúncio.

De ruela vai pra uma mulher de avental cozinhando. Surge uma jovem de grandes olhos pretos e ar preocupado e a observa, as duas tem intimidade, são parecidas, mãe e filha. Paulo Coelho se delicia com o R gutural rasgado e ao mesmo tempo suave das palavras delas. A cozinha é apertada e está cheia de comida, tudo ainda feito de maneira muito natural – folhas recém colhidas, os animais em postas grandes e quase inteiros, vegetais com suas raízes. Hum, melhor deixar as mágoas pra lá e fazer uma nova tentativa no restaurante, assim que o filme terminar- eles ficariam felizes por ele ter voltado, ele poderia comer bem, todos sairiam ganhando. Enquanto as duas mulheres cozinhavam, uns homens davam uma passadinha rápida por ali, marido e outros filhos, alheios ao que acontecia. O filme falava do conflito de gerações, a mulher, esposa e mãe, bastante tradicional, com a filha que desejava conhecer o mundo. A mãe passava o tempo inteiro cozinhando, a filha queria mais da vida. Deve ter sido filmado num take só, levava muito descascar sementes. Tão bonita, a moça em breve ia casar e precisava aprender a lidar com a casa, a mãe dizia. Quero outra vida, não quero casar, a filha dizia.

Enquanto conversavam, a mãe depenava a galinha, a filha cortava os legumes. Pedaços brancos da carne eram colocados na panela com água fumegante, temperos coloridos eram moídos, a fumaça passava entre as duas, e o estômago de Paulo Coelho roncava. A comida era inteira colorida, brilhante, gordurosa, e à mesa a família se fartou, comeu com os dedos, as sementes grudadas nas frutas caramelizadas de sobremesa; enquanto comiam tão bem, mãe e filha tentavam achar uma saída que satisfizesse o que as duas acreditavam ser o melhor caminho, a filha aprendia as técnicas a mãe, a mãe se via na filha e tentava encontrar uma solução conciliadora. Que filme bonito, tanto amor, que fome. Enquanto, na cena do aniversário do pai, todos beberam vinho tinto e comeram carneiro, Paulo Coelho começou a pensar em, talvez, avisar alguns amigos que estava em São Paulo e sair pra almoçar com eles.

O filme já ia pra lá de uma hora e, como era de se esperar, Pepe começou a se agitar na cadeira. Paulo Coelho ouvia a mãe tentando acalmar a criança, prometendo doce se ele suportasse mais um pouquinho. Ele tentava se concentrar no filme, mas a falta de firmeza da mãe o irritava. A criança batia o pé, ela murmurava, choramingo de manha. Paulo Coelho ficou contra a mãe: o filme não parecia estar nem na metade e era quase todo de diálogos, não fazia o menor sentido para uma criança, o certo seria sair com ele da sessão. Mas eles continuavam, a mãe pedia paciência, agora prometia levar no cavalinho e Pepe voltou a andar entre as cadeiras. Apesar do barulho e da fome, Paulo Coelho estava disposto a ficar até o fim, porque realmente queria saber aonde aquela história ia parar. No meio das panelas fumegantes, um vizinho de rosto chupado veio pra jantar e admirar a moça, parecia que a família iria fazer ela se casar com ele.

POF. O som seco de algo caindo no chão poderia passar anônimo, se não tivesse sido seguido de um choro agudo que impediu qualquer outra coisa de ser ouvida. Pepe, aparentemente, tentou correr como estava fazendo antes, mas agora estava escuro e ele se estabacou. O menino gritou, a mãe gritou, todos se viraram pra eles. Do lugar onde estava, Paulo Coelho via apenas a agitação das cabeças e ficou muito feliz quando as viu se afastarem em direção à saída. Quando voltou o olhar para a tela, havia um cigano. De onde e por que, numa rápida virada de cabeça, um cigano entrou no filme. Um close persistente, lenço na cabeça, olhar ladino, traços, tudo bem cigano. Paulo Coelho nem quis esperar pra saber o que iria aconteceu: ele saiu da sessão e foi direto pra um Mac Donalds resolver seu problema mais imediato. E, depois, iria de uma vez para Curitiba.